Cara Fabiana, cara Denise,
Depois de assistir ao filme Pray the Devil Back to Hell (“reze para o diabo voltar ao inferno”, em tradução livre), no qual Leymah Gbowee conta a história da Ação de Massa das Mulheres da Libéria pela Paz, e de pensar em nossas conversas, estávamos nos perguntando poderia haver um discurso político que não posicione o “Eu” contra “o Outro”, e onde e como isso poderia se desenvolver. Para Gbowee parecia claro que ser contra Charles Taylor ou o LURD não faria diferença. Ela descreve que a guerra na Libéria não se dava claramente pelo controle dos recursos naturais e grupos étnicos lutando pelo poder ou por poder, dinheiro e etnia.
Qual é a especificidade da luta contra a polarização e pela paz e justiça que procuramos? Como isso se relaciona com a arte ou com o seu potencial para escolher outra linguagem, outra forma, termos diferentes? Como pode a arte, como espaço com características próprias, melhor apoiar e participar de um conjunto mais amplo de práticas que lutam contra os sistemas de controle e distribuição de diferença e exclusão, contra os textos que construíram os termos e críticas que reproduzem estes efeitos?
Fazia sentido, pensávamos, canalizar para a dança as nossas conversas em curso para um projeto de arte. Por meio da dança poderíamos pensar na não linearidade das relações e na co-implicação: o estado de se emaranhar não só com outro, mas também com o ambiente. Estávamos interessadas, também, no problema de escrever uma história da dança, pois ela torna tangível a impossibilidade de construir a história ao voltar e tomar o mesmo caminho: é necessário ir adiante e compreender a mudança como um processo.
Para nós, fazia sentido focar numa dança que se originou no contexto colonial, através de um processo de troca e influência acomodado por um sensível engajamento físico, mas também dentro de um sistema de exploração global e local. Lundu é uma dança de sedução e prazer que se desenvolveu devido ao intercâmbio entre africanos, espanhóis e portugueses no Brasil dos séculos XVII e XVIII.
Escolhemos nos concentrar numa dança que não pode ser abordada sem pensar no colonialismo, na opressão, na exploração, na escravidão e na raça porque queríamos confrontar a reprodução de certos aspectos das perspectivas coloniais, que se dá até mesmo no pensamento influenciado pelo discurso pós-colonial. Pensamos que poderíamos encontrar algumas maneiras de fazer este confronto disruptivo a partir da dança e da música. Pensamos que, ao nos relacionarmos com o corpo nos sentidos micro e macro, encontraríamos uma maneira de pensar fora dos binários de exploração e dominação, vítima e algoz, sujeito e objeto e, em vez disso, focar na complexidade e na singularidade das relações.
Ainda assim, para este primeiro capítulo não aprendemos a dançar lundu, não investigamos as formas da música que existem hoje. Em vez disso, decidimos começar com duas imagens: uma dupla de ilustrações históricas do lundu pelo pintor alemão Rugendas, datada de 1835.
Então a questão é, claro, por que imagens de uma dança e não a dança em si? Por que – quando consideramos a dança, a música e o corpo, o que exigiria o pensamento através da proximidade e da sensibilidade – insistiríamos na distância de eleger uma representação histórica? É exatamente com essa distância que estamos lidando: a distância que existe entre nós e o evento, sua captura, sua imagem histórica, o espaço da arte e o espectador. Mas essa distância cria também um espaço para pensar acerca do que está em jogo na ideia de que podemos usar o campo da arte para construir uma ponte sobre o tempo e o espaço para pensar em mudança nos dias atuais, e acerca do que está em jogo e consolida a distância no pensamento e na linguagem.
As imagens nos confrontaram com as estruturas que determinam nossa leitura e que, provavelmente, também influenciaram nossa aproximação com o próprio lundu. Apresentaram-nos perguntas sobre a representação moderna, sobre a história, sobre o pensamento iluminista e a interpretação das relações com as quais achávamos necessário lidar. As releituras pós-coloniais de imagens como a ilustração de Rugendas foram impulsionadas por novas definições do que deve ser levado em conta ao olhar para essas imagens: o que não devemos esquecer? De que devemos estar cientes? O que temos de reconhecer a priori? Como levamos em conta o que não é representado? Que posições estamos vendo e de que posição estamos vendo? São questões importantes, mas percebemos que não poderíamos dar as respostas como garantidas porque, se o fizéssemos, correríamos o risco de confundir um consenso moral com um aparato suficientemente crítico que nos impeça de reproduzir exatamente o que queremos criticar.
Portanto, perguntamo-nos: o que fazem essas releituras de imagens coloniais? Para quem? Quando elas reforçam a posição do campo discursivo pós-colonial ou a posição dos oprimidos, explorados ou não ocidentais como outros ao invés de realmente apoiar o devir de um mundo melhor e mais justo?
Como podemos trabalhar para criar uma condição para ler a complexidade, para fazer perguntas que, em vez de fortalecer nossa própria posição, levem-nos a interrogar os modelos e textos que constroem nossa percepção de nós mesmos e dos outros, das relações? Uma das coisas que notamos é que, mais uma vez, precisamos tentar acabar com a duradoura percepção sujeito-objeto nas relações. Outra coisa na qual tentamos insistir é a incompletude, nas dúvidas – e co-implicações – de nossas próprias posições e de outras (não definindo essas posições como fixas), e na possibilidade de leituras conflitantes contra a ideia de que estamos lendo uma “verdade” ou uma nova realidade objetiva da imagem. Significava, como uma de vocês corretamente propôs, abandonar a lógica da descoberta e a emoção da evidência e, em vez disso, imaginar o contrário, em relação ao que só está disponível na imagem como excesso, em relação ao que excede a expropriação colonial, bem como a estrutura da representação moderna. Isso abre um espaço de confrontação, exagero, humor, interpretação errônea, de imaginar para além da “imaginação responsável”, um espaço que pode facilitar conversas reais e onde nossas tentativas individuais podem se tornar uma forma de prática coletiva.
Este texto foi feito para a exposição To Seminar, no BAK, em Utrecht.