Como o desastre e a tragédia no Haiti desencadearam um movimento radical na música

Conhecida por misturar o político e o profano e denunciada pelas suas raízes vodu, a música rabòday é o som desafiador - e amplamente popular - de uma nova geração haitiana insatisfeita. Enquanto o país se prepara para as esperadas eleições que começam em Agosto (este texto é de 2015), as estrelas desta corrente tornam-se surpreendentemente influentes ao transformar as ansiedades do público em hinos para dançar.

Freshla no estúdio com a cantora Lunise Morse dos RAM. Maria Arago para a BuzzFeed NewsFreshla no estúdio com a cantora Lunise Morse dos RAM. Maria Arago para a BuzzFeed News

PORTO PRÍNCIPE - É tempo de campanha eleitoral em Porto Príncipe e o telefone do cantor Freshla recebe há vários meses mensagens de candidatos presidenciais e vereadores que procuram parcerias. Este é um procedimento comum num país onde os músicos reconhecidos são habitualmente procurados pelas agências e burocratas, na esperança de aproveitarem o poder e influência dos famosos e do estrelato. Após quatro anos de espera e deterioramento do teatro político, mais de cem partidos políticos inscreveram-se para as últimas eleições que decorreram ao longo deste verão e do outono, as quais preencheram todos os cargos do país, um total impressionante de seis mil cargos ocupados no governo local, regional e nacional. E, acontece que Freshla tem uma música criada para a ocasião.

“Kite Ti Pati’m Kanpe”, uma música lançada por Freshla e o seu grupo Vwadèzil para as celebrações nacionais de carnaval em 2015, entrou em intensa circulação em todo o país após o seu lançamento em janeiro. O título, um jogo de palavras, pode ser distorcido de diferentes maneiras, referindo-se tanto a um partido político, um pedaço do bolo ou calão para pénis - “deixa a minha pequena parte/festa em pé”. A música, uma onda de agressões perspicazes contra a política disfuncional haitiana através de pulsões rápidas na bateria e toques leves no teclado, rapidamente entraram na gíria quotidiana. Nas ruas da capital, mulheres e homens que apanharam o mote, começaram a cumprimentar-se com um alegre “ti pati’m!” A minha pequena parte!

“É sobre eleições e ereções”, disse-me Freshla em Crioulo numa tarde no seu carro, fazendo um grande sorriso enquanto nos conduzia por um típico e agonizante engarrafamento em Porto Príncipe. Duplos significados ousados e metáforas são a sua marca registada. Isto é rabòday, a nova moda de música eletrónica que ele e um produtor chamado G-Dolph lançaram em 2010 após o catastrófico terramoto. Em apenas alguns anos, o rabòday invadiu os sistemas de som do Haiti, foi amplificado nas praças de táxi, em torneios de basquete turbulentos e dominando as festas de rua que se espalhavam pelas estradas a cada fim-de-semana.

As definições são incertas, mas as raízes do rabòday eletrónico podem ser encontradas no rara, uma música mais antiga do que o próprio Haiti. Começa com o povo indígena Taíno, misturando ritmos trazidos pelos africanos escravizados, e eventualmente alterado e modernizado num estilo que é hoje tocado e espalhado pelo país. Bandas rara conduzem multidões pelas ruas do Haiti, dançando ao som de flautas de bambu feitas à mão, chifres de metal e pesados tambores pendurados em alças grossas. As bandas são solicitadas durante manifestações, para marchas fúnebres e no serviço religioso Vodu, para tocar músicas que dignificam, criticam, desafiam e divertem. Os ritmos dos tambores têm nomes e contextos, muitos têm a sua origem nos diferentes povos africanos que se fundiram para formar o Haiti, e “rabòday” é o nome que há muito está entre os preferidos pelas bandas de rara. Nos últimos anos, uma nova encarnação eletrónica do rabòday - digitalizado e triturado com urgência frenética - explodiu para se tornar um dos sons que definem uma geração jovem de haitianos sobreviventes às calamidades.

Enquanto nos movíamos lentamente através da confusão de carros perto de um cruzamento desordenado, meninos de rua cercaram o carro de Freshla com seus panos de limpeza, cantando aos gritos as suas melodias, enquanto sacudiam o pó e a sujidade diária. Ele queixou-se - é reconhecido em todos os lugares que vai - mas cumprimentou cada menino individualmente pela janela aberta, pondo dinheiro nas suas mãos gastas. Na estação de gasolina e na fila do café, as pessoas param-no para fazer selfies. Recentemente, numa festa de aniversário de um ex-ministro do Turismo, no final da noite, um senhor mais velho colocou o braço à volta de Freshla. “Cada ano lanças uma música que me faz pensar”, sussurrou-lhe. “Eu amo-te.” Num posto de controlo da polícia, agentes carrancudos sorriram quando viram Freshla ao volante, tirando a mão das suas armas para saudar o artista. “Ti pati!” cumprimentaram. “Estás de pé?” “De pé e firme”, Freshla deu a sua resposta típica, e eles acenaram para que ele passasse pelos outros carros com uma gargalhada.

Nascido com o nome de Donald Joseph, atualmente Freshla é conhecido como o Rei do Rabòday. É um título que lhe foi oficialmente concedido no ano passado, pelo prefeito de Delmas, a extensa parte da região metropolitana de Porto Príncipe onde ele e G-Dolph residem - e é um dos candidatos que até agora  prometeu promover na série de eleições locais que acontecem no próximo mês. Uma placa comemorativa está pendurada na parede do seu apartamento de um quarto, mais uma entre a coleção de outros troféus de música.

Ainda assim, apesar da omnipresença do rabòday no Haiti, e apesar dos grandes elogios de Freshla, o género não é universalmente apreciado. Os mais duros golpes contra ele abrem a cortina numa disputa contínua corrosiva sobre como definir o haitianismo; de um lado, aqueles que desprezam o rara e desdenham qualquer coisa relacionada com o vodu, preferindo ignorar essa parte da história; de outro, artistas e académicos ativos na preservação das raízes africanas do Haiti, que recusam essa onda de música de dança ajustada por computador, que veêm como ruído não aprendido e desrespeitoso para com os ancestrais.

A partir do momento em que esta EDM exclusivamente haitiana explodiu, teve que lutar contra o estigma de ser de classe baixa, gueto, um subproduto dos escombros e da desordem. Se não fosse pela dedicação obstinada de Freshla em promover essa música e atrair mais produtores e colaboradores, a tendência poderia ter saído de moda há muito tempo.

DJ TonyMix, um dos DJs mais populares do Haiti e embaixador proeminente do rabòday, numa festa de bloco em Port au Prince.DJ TonyMix, um dos DJs mais populares do Haiti e embaixador proeminente do rabòday, numa festa de bloco em Port au Prince.

Quando aconteceu o terramoto no final da tarde de 12 de janeiro de 2010, Freshla quase morreu duas vezes. Estava a caminho de um ensaio de Vwadèzil e atrasado após esperar por uma transferência de dinheiro do seu irmão nos Estados Unidos. Apesar de atrasado, lembra-se de ter deixado um carro passar à sua frente no trânsito. O chão começou a tremer terrivelmente e um prédio de vários andares desabou na estrada, esmagando o carro que tinha passado à sua frente. O espaço de ensaio em que ele deveria estar também desabou, matando dois dos seus músicos. O tremor de magnitude 7,0 deixou cerca de 220.000 mortos, de acordo com algumas estimativas, e mais de 1 milhão de desalojados. 

“Todos os que tomaram aquele dia como garantido, que morreram sem fazer o que deveriam antes”, disse Freshla, “partiram sem o ter feito”.

Depois do pó baixar e a maioria dos corpos serem enterrados juntos em valas comuns dolorosamente grandes, Freshla estava pronto para gravar uma nova música. Ele chamou o G-Dolph, nome verdadeiro Rudolph Archibald, e os dois foram para o abafado estúdio de gravação do produtor musical, noutro canto de Delmas, para começar a trabalhar.

G-Dolph estava em casa a criar ritmos num computador HP emprestado com uma versão pirateada do software Fruity Loops 7, quando o terramoto começou. Era ainda o início da temporada de carnaval e ele ainda estava verde como produtor, mas os meses anteriores ao Mardi Gras podem ser ocupados por qualquer um com músicas para vender e um estúdio de gravação para alugar para outros músicos. Onde a personalidade de Freshla é descomunal e turbulenta, G-Dolph aparece como mais tímido e sonhador. Ele sorri devagar e grande, mas às vezes fala crioulo tão rápido que as suas palavras se fundem. Ele raramente se aventura longe do seu estúdio, um barracão de cimento construído no quintal da casa que ele aluga com os seus irmãos, coberto de graffiti por fora e tags sharpie por dentro.

Alguns carros despedaçados estão permanentemente estacionados dentro do portão da frente, próximo a uma parede de cimento onde alguém pintou um hesitante “RELAXA?”

Por vezes aparecem amigos para descontrair nos bancos da frente, relaxar ou ouvir música nos seus telefones. Apesar do rápido sucesso do rabòday desde o terramoto, o músico diz que não tem um carro a funcionar. Um aparelho de ar-condicionado sai de uma das paredes do minúsculo estúdio. Quando a energia é cortada - o que é frequente - o espaço sufoca e abre-se a porta para arejar. No teto coberto de espuma por cima da sua cadeira, G-Dolph escreveu: “Jesus é a minha segurança”.

G-Dolph tentou por anos tornar-se um cantor de R&B, e depois com um grupo de rap, mas lutou por uma pausa. Ele cresceu rodeado por música em Artibonite, uma exuberante região de cultivo de arroz no centro do Haiti. Foi criado com os sons de rara, em particular, e outras músicas com tambores que são centrais para a cultura e prática espiritual do Vodu haitiano. G-Dolph tem o cuidado de me mostrar que não pratica Vodu, mas transporta espíritos - e os ritmos fundamentais do tambor - com ele.

“Este estilo, o sabor que está no rabòday, vem do Vodu”, disse G-Dolph. “Diretamente da raiz”.

Tal como G-Dolph, Freshla cresceu imerso nesta tradição. O apelido foi-lhe atribuído pelo estilo e moda irreverente usado no campo de basquete, e tatuou-o no tríceps esquerdo quando era adolescente, NOVO em borbulhantes letras verdes. Conta que a sua avó materna era samba, alguém que era chamado para liderar as músicas rara, comentar, criticar, comemorar e transmitir histórias; o seu avô materno, um houngan, um sacerdote vodu, era conhecido na sua comunidade perto de Miragoâne como curandeiro.

Também como G-Dolph, ele ressalta que não pratica Vodu, mas, ao contrário de um número crescente de haitianos, não chega a menosprezá-lo. Os conservadores cristãos haitianos, seguindo o exemplo dos evangélicos americanos, apontam o Vodu como a razão dos males do Haiti, enquanto os privilegiados do país simplesmente consideram-no fora de moda ou primitivo. Mas para Freshla, denunciar o rabòday por causa dos seus laços com o Vodu - segundo muitos relatos da história, a rebelião que esmagou os colonos franceses começou após um encontro secreto de pessoas escravizadas em 1791, um pacto histórico selado com uma cerimônia de Vodu - é um insulto à vitória dos ancestrais que deu liberdade aos haitianos.

“Mesmo quando tocamos música Vodu, as pessoas dizem: ‘Oh, aquele homem é um demónio’”, disse-me G-Dolph no seu estúdio. Ele encolheu os ombros, recostando-se numa cadeira de plástico em frente ao ecrã do computador, e disse que os haitianos preferem dar valor à música e à cultura importadas em vez da sua. “Eu queria dar outro tipo de arranjo, para fazer as pessoas aceitarem”.

Com o Fruity Loops, ele tentou encontrar uma maneira de passar os sons místicos e os ritmos das ruas da sua infância da sua cabeça para o computador, transformando-os em BPMs explosivos. “12 de janeiro de 2010 foi o gatilho para o rabòday”, disse G-Dolph; alguns meses depois, a sua primeira sessão de gravação com Freshla foi o primeiro tiro disparado.

No verão após o terramoto, eles lançaram “Boule Jou”, vagamente traduzido como “gastar (ou queimar) o dia”. A música era uma chamada pós-tragédia para aproveitar os dias ao máximo, uma lamentação enfurecida das injustiças da vida - trabalhando árduo pelo dinheiro para construir uma casa, apenas para perdê-lo num terramoto - e um ‘não estragues a minha motivação para a festa’. Num ritmo frenético, que se tornaria a assinatura de G-Dolph, Freshla levanta as mãos e implora para que as pessoas fiquem fora do seu caminho - quem sabe se teremos um amanhã, deixe-me aproveitar hoje. Algo sobre a música capturou a tensão dos meses após o terramoto e tornou-se o seu próprio tipo de catarse, um hino de verão para sobreviventes exaustos de acampamentos e traumas.

Os acordes e ritmos de G-Dolph eram familiares, mas ninguém os tinha ouvido assim antes. Outros produtores começaram a tentar passar os ritmos de G-Dolph como se fossem seus, diminuindo a força da sua repentina explosão de popularidade. O tímido produtor foi forçado a reagir e reivindicar a propriedade das suas canções. Quando as pessoas lhe perguntaram: qual é o nome desta música contagiante? ele respondeu: rabòday. G-Dolph chamou as suas canções pelo mesmo nome de um estilo rara que já existia, e esse “empréstimo” do termo antigo iria mais tarde irritar alguns músicos da geração mais velha. Mas, para uma nova geração de ouvintes, a palavra saiu suavemente da língua - rah bo acabou! - e pegou.

“Quando eu ouvi o ‘Boule Jou’, exclamei, ‘Oh, olha a música que este gajo está a fazer’”, disse Thony Mahothière, mais conhecido como DJ TonyMix. Cada vez que ele reproduzia a nova música num espaço ao vivo, observava a pista de dança explodir diante dele. “Eu estava tipo, porra, eu também vou entrar nisto”.

TonyMix, imponentemente alto e com cara de bebé emoldurada por grandes óculos, foi um dos primeiros campeões do novo som. Começou a tocá-lo em festas, misturando-o com rap e música de dança, e lançando misturas de rabòday, tornando-se rapidamente associado à tendência nascente. O seu título não oficial nas ruas é “DJ Peyi a”, o DJ do país ou do povo, um título que o levou a encabeçar festas de quarteirão no bairro, espetáculos privados da jovem elite do Haiti nas mansões arejadas no topo da colina, e lhe proporcionou convites frequentes para tocar internacionalmente. A sua lista de reprodução é ampla, mas ele credita o rabòday por impulsionar o seu perfil - e o rabòday beneficiou-se por ter TonyMix como o seu embaixador.

“Cada país tem o seu próprio estilo, mas o rabòday é haitiano”, disse TonyMix. Ele chama-o de pwodui lokal, cultivado localmente. “Quando é tocado, a multidão enlouquece. ‘Tony, toca rabòday; Eu quero ouvir rabòday! ’”

TonyMix transformou os sons da sua cidade natal numa série de músicas, que tocou num grande concerto gratuito na capital no final de junho, com Chris Brown e Lil Wayne, e parecia fazer de Swizz Beatz um fã. Antes de embarcar no avião para Porto Príncipe, o One Man Band Man de Nova York postou uma lista com J-Vens, TonyMix e outros artistas de rabòday e rap krèyol no seu Instagram. “Sak Pase!” Swizz escreveu na legenda. “Estou a trabalhar nas vibrações da minha lista de reprodução para o Haiti”.

Numa segunda-feira à noite nos estúdios de rádio Sky FM em Petionville, TonyMix estava a reinar sobre seu computador portátil e mesa misturadora enquanto artistas visitantes e amigos deambulavam, acenando ás suas seleções com a cabeça e bebericando em canecas vermelhas descartáveis. Ele estava a fechar o seu último espetáculo de misturas ao vivo antes de partir para uma minitournée nos Estados Unidos, mas quando Freshla entrou no estúdio, TonyMix ergueu os olhos. “FRESHLA! REI RABÒDAY!” anunciou no microfone e estendeu o braço livre para cumprimentá-lo.

TonyMix disse-me mais tarde, que Freshla geralmente envia algum tipo de mensagem nas suas canções. “Nós, fazemos coisas que são engraçadas, para fazer as pessoas rirem, para fazer as pessoas vibrarem”, disse. “Ele, ele sempre tem essas letras, onde reprova o governo com alguma coisa, sabes? Enquanto se critica, também se dança”.

Na música “Dwadèlom”, lançada no momento em que o Haiti estava a passar por uma crise política e um escândalo sexual envolvendo um membro da ONU, Freshla critica os soldados paquistaneses diplomaticamente imunes por estuprar um menino haitiano, todos envolvidos num coro cantante que alerta contra furar os direitos humanos - ou permitir introduzir o dedo de um homem, dependendo de como for traduzido - no seu traseiro. “Nap Koupe Yo Fache”, uma música sobre miscigenação e racismo, foi lançada no ano passado quando uma lei ultrajante contra dominicanos de origem haitiana foi introduzida na fronteira – a mesma legislação que levou às atuais crises de apátridas e ameaças de deportação em massa. “Descendentes indígenas / Somos oxigênio para a raça negra”, o coro Vwadèzil canta acompanhando a bateria rápida. “Tu queres deportar a minha mãe”, Freshla interrompe, “estás bravo, porque eu fodi a tua mãe”. Como a sua avó samba, e como as gerações de cantores de carnaval e rara de língua afiada antes dele, Freshla manteve viva a tradição musical haitiana de forte crítica social no rabòday, misturando política e humor em partes iguais.

Foi a música para a temporada de carnaval de 2012 de Freshla, outra colaboração com o seu grupo Vwadèzil e G-Dolph, que ajudou a definir o tom para ativar o rabòday naquele ano. “M Pap Ka Ba Ou Metafò’w”, uma subversão contundente sobre a ocupação das forças de paz da ONU no Haiti há mais de uma década, recorrendo de novo à distorção de palavras. O título pode significar, entre outras coisas, “Não vou acreditar na tua conversa falsa ou hipocrisia” e “Não te vou deixar enfiar isso em mim”. Num tom divertido, Freshla censura os soldados estrangeiros por importarem a cólera e estuprarem com impunidade, e aponta o dedo para o presidente haitiano Michel Martelly, ex-estrela da música, responsável por promover um mau exemplo. Meses depois de o carnaval acabar, não se podia ir a nenhum lugar em Porto Príncipe sem ouvir as provocações alegres de Freshla.

De repente, houve uma explosão de som. Artistas que tentaram fazer rap ou cantar konpa (um merengue haitiano moderno e jocoso, onde os pares dançam tão perto que alguns restaurantes os confinam em salas privadas com luz-negra), de repente mudaram de direção para fazer música rabòday. G-Dolph foi inundado com pedidos de produção, e mais músicos e DJs aproveitaram a tendência, diversificando a estética do som. Novos sucessos geraram novas gírias e movimentos de dança, como “Ti Mamoun” de J-Vens. Ritmos rara sempre existiram, mas a dinâmica acelerada e crua desta versão eletrónica começou a infiltrar-se em todos os lugares. No carnaval do ano seguinte, a maioria dos grandes hinos soava um pouco como rabòday. 

A importância do carnaval no Haiti não é exagerada. Desde que Martelly (que já foi reconhecido pela sua carreira como Sweet Micky, rei do konpa) tornou-se presidente em 2011, o seu governo presidiu sete carnavais - quatro festivais nacionais do Mardi Gras mais três encarnações de verão do Carnaval des Fleurs da era Duvalier - e realizou exatamente zero eleições planeadas. O escopo e o planeamento do carnaval também mudaram sob a presidência de Martelly, e um número crescente de artistas lança músicas originais nas semanas que antecedem o Mardi Gras, tanto para participar na onda como também na esperança de serem notados. No ano passado, mais de 1.000 músicas foram produzidas para o festival.

“É espantoso que crianças sem recursos façam parte”, disse Fabrice Rouzier, músico e veterano de carnaval há 14 anos. “Desde quem vai imprimir o disco a quem se apresenta, até a motorizada que têm que levar para ir ao ensaio, eles estão a investir em média US$ 500. Então, isto é meio milhão de dólares que estas crianças sem meios estão a investir no carnaval.”

O objetivo final, o de ser nomeado um dos cerca de doze grupos que recebem um carro alegórico para se apresentar no festival de três dias, é praticamente inatingível para todos, exceto para os grupos musicais mais estabelecidos. O máximo que um artista em ascensão pode esperar do carnaval é que a sua música seja captada pelo rádio, receba um pouco de atenção e melhore o reconhecimento do seu nome – e mesmo isso é um tiro no escuro.

Freshla e DJ TonyMix pousam para fotografias com os fãs. Maria Arago para a BuzzFeed NewsFreshla e DJ TonyMix pousam para fotografias com os fãs. Maria Arago para a BuzzFeed News

Mas funcionou assim para Freshla. Ele lançou a sua primeira música de carnaval com Vwadèzil em 2004 - “M Pa Nan Pale Franse”, ou “Eu não vou com a língua francesa”, suave e despojada em comparação com a alta voltagem do rabòday eletrónico de hoje. A música desses recém-chegados pegou, e o grupo conseguiu reivindicar um lugar nas playlists de carnaval todos os anos, desde então.

Se o carnaval é como a Mundial da música haitiana, então PleziKanaval, criado pela personalidade mediática Carel Pedre, atua como a sua FIFA não oficial. O site PleziKanaval.com é a fonte mais abrangente de músicas, vídeos e entrevistas com artistas para download e classificação, e no ano passado foi expandido para incluir uma cerimónia de prémios para celebrar as melhores músicas da temporada. O presidente Martelly, que este ano levou para casa um prémio pela sua obra, sentou-se na primeira fila com os seus dois filhos músicos, que também ganharam troféus pelas suas canções de carnaval.

Pela primeira vez, rabòday foi reconhecido como uma categoria musical, ao lado de géneros estabelecidos como rasin ou raízes, konpa e rap krèyol. “Ti Pati” de Freshla derrotou a concorrência para ganhar o troféu de melhor música rabòday, e o artista subiu ao palco vestido de jeans com salpicos descolorados, um blazer azul apertado e tranças escondidas num chapéu. Ele ergueu o prémio sobre a cabeça.

“Para letras, tens que ir para a escola”, disse ele. “Não podes pagar por isso, não as podes comprar”. Este foi um golpe direto das classes altas endinheiradas do Haiti contra os músicos, ao contratarem outros artistas para criar os seus sucessos. Mesmo com um troféu na mão, vencedor numa categoria que ajudou a criar, Freshla fala com o rancor de um ganhador que ainda precisa de lutar para ter respeito.

O êxito rabòday mais popular até hoje foi também o que inspirou a reação mais virulenta: um remix de 2012 de TonyMix da música “Fe Wana Mache” de Mossanto. A letra é sobre como tratar uma rapariga gananciosa que bebe o sumo todo, com o refrão – “Faz a Juana andar, faz a Juana foder” – lançado num ritmo forte e irregular. Quando a música saiu, era difícil encontrar um canto em Porto-Príncipe onde os sons crus de Wana não estivessem a tocar no rádio de um táxi, no altifalante de uma motorizada ou no sistema de som de um restaurante à beira da estrada. Mas, mesmo tratando-se de uma letra sobre a vida cotidiana, foi abalada pelo protesto público devido às suas letras profundamente misóginas. Real-B, uma das poucas vozes femininas do rabòday, reagiu com sua própria versão sobre um homem, “Fe Wano Mache”. Após um debate aceso, “Wana” foi banida da rádio e nos transportes públicos. Mesmo assim, o único jornal diário do Haiti nomeou relutantemente Wana – “uma canção vulgar e antissocial”, “um texto musical indecente” – o maior sucesso de 2012. E rabòday, embora visto como cada vez mais vergonhoso, foi nomeado o som do ano.

De muitas maneiras, e particularmente num país onde as frequências de rádio são inexistentes ou estão à venda, a ubiquidade de uma música nas ruas e nos agrupamentos é frequentemente a medida mais fiável de um sucesso. “Eles tocam no trânsito e as crianças da escola apanham a onda”, diz o cantor Vag Lavi. O nome de Lavi significa, de grosso modo, “foda-se a vida”, embora o seu nome verdadeiro seja Valens Fleurimond. Ele é conhecido pelo seu jogo de palavras metafórico, divulgando mensagens sociais críticas, ferindo funcionários corruptos e incentivando os jovens a investir na sua educação. Criticou o conteúdo de outros artistas rabòday, provocando pelo caminho algumas rivalidades, e faz referências ao ex-ditador François Duvalier e Haile Selassie em ritmos animados de G-Dolph.

G-DolphG-Dolph

O Haiti tem muitos legados culturais valiosos, mas a indústria fonográfica e o mercado comercial da música não contam entre eles. No início deste ano, Vag Lavi recebeu um estímulo com a sua popular música de carnaval, “Yo Tombe Pou Temperaman Yo”, e fez uma mini tournée por todo o país. Encontrou no campo bandas tradicionais rara que tocavam versões da sua música nas ruas, completando de certa forma um ciclo rabòday.

“Até os estrangeiros me escreveram: ‘Fazes uma formidável música de carnaval’, disse. “Fiquei abalado”.

As entradas para as suas apresentações rondam os US $ 3 cada, e os promotores são consideravelmente obcecados com o dinheiro, por vezes apropriando-se do pagamento completamente. Os espetáculos são uma das poucas oportunidades que os artistas têm para vender álbuns, misturas ou outros produtos, embora os fãs raramente esperem para comprar legalmente as músicas. Pessoas com acesso à Internet copiam as faixas do YouTube, partilham-nas livremente com os amigos no WhatsApp, e os DJs mais empreendedores que trabalham em computadores portáteis, vendem listas de reprodução baratas para qualquer pessoa que tenha um dispositivo de memória portátil. Pode ser incrivelmente difícil para um artista popular ganhar dinheiro da maneira tradicional.

Como produtor com seu próprio estúdio de gravação, G-Dolph está numa posição melhor do que a maioria, embora ele diga que continua a lutar para encontrar meios para lançar um álbum com seu grupo, Suspens. Atualmente, ele cobra cerca de US$ 150 a US$ 250 a outros artistas para produzir uma faixa rabòday. Durante o carnaval, quando é contratado por semanas produzindo músicas para dezenas de grupos, pode valer a pena. O dinheiro real, porém, vem de patrocínios, e para isso é preciso já ser famoso nas ruas. O computador portátil que ele usa atualmente para fazer os sons, foi oferecido por um patrocinador, e está empoleirado acima de uma bateria eletrónica partida.

Por cima do seu pequeno estúdio em Delmas, G-Dolph colocou uma placa: “Quem não estiver a trabalhar, por favor fique do lado de fora!” Como amuleto, o seu poder é fraco, já que artistas e amigos aparecem regularmente para conversar, carregar os seus telefones ou postar e fazer piadas na sombra. Um dia é Sagesse, um DJ evangélico que tem um programa de rabòday numa das maiores rádios pentecostais do país. Noutro dia é Master Rock, um desertor do rap krèyol, que teve o seu primeiro êxito rabòday no ano passado com “Chikangunya”, uma música com o nome de um vírus nefasto transmitido por mosquitos que deixou toda a região a arder de febre no ano passado.

Assim que um artista alcança alguma popularidade, pode aproximar-se de uma empresa para solicitar dinheiro ou equipamento, e o patrocinador, por sua vez, espera uma forte promoção da sua marca nos videoclipes e letras de música. A melhor forma de um artista desconhecido chamar a atenção de um patrocinador e fazer sucesso é lançar uma música de carnaval excitante.

Após o PleziKanaval Awards, e da entrega dos troféus, foram feitas homenagens às vítimas de um acidente fatal de eletrocussão durante o desfile e as bebidas pós-cerimônia consumidas até ao final, Freshla queria comemorar sua vitória. Ele deu uma festa no gigante quarteirão em Delmas 5, o bairro onde ele cresceu, perto de uma zona particularmente arriscada da cidade onde frequentemente acontecem batalhas de gangues. Quando os seus pais morreram, ele e os seus irmãos foram criados aqui por uma família adotiva numa fila tranquila de pequenas casas rodeadas por amendoeiras. É o seu sítio, um dos únicos lugares em Porto Príncipe onde pode ficar à vontade, e volta várias vezes por semana para visitar os seus amigos de infância, ficar na beira da estrada com cervejas e a comer pedaços de pão com chiktay picante de arenque fumado.

Dois DJs revezaram-se misturando dancehall e rap krèyol com rabòday num enorme sistema de som que ele alugou. Miúdas com faixas de néon e homens com bonés justos subiam a colina enquanto o sol se punha, descansando em motorizadas estacionadas ou saltando ao som da música. Os bailarinos de Vwadèzil, obedientemente vestindo camisolas com a marca do seu patrocinador de arroz, apareceram e alheios ao resto da multidão, criaram um círculo fechado na rua. Freshla mal tinha dormido - a festa de premiação durou até tarde - mas ele estava em alta. Outro patrocinador presenteou-o com caixas de cerveja e ele voou de conversa em conversa, certificando-se de que os seus amigos e convidados tinham bebida e algo para comer. Ocasionalmente pegava no microfone e agradecia a todos pelo apoio. “Se não houvesse Delmas 5, não haveria Vwadèzil”, disse.

Por volta das 21h, a estrada estava quase toda bloqueada com carros estacionados e corpos balançando, e os moradores divertiam-se nos seus terraços. Uma patrulha da polícia entrou deslocando-se numa carrinha gasta, espingardas penduradas nas janelas abertas; eles pararam o tempo suficiente para cumprimentar o artista. Um DJ colocou “Ti Pati”, e uma das vizinhas, uma mulher minúscula de quase sessenta anos, fez uma careta. “Eu não gosto desta”, disse ela ao alcance da voz de Freshla. Deu-me uma piscadela de olho rápida e depois voltou para onde estava a preparar uma quantidade de bananas para fritar.

Uma equipa de filmagem da emissora nacional haitiana estava nos arredores da festa à espera para entrevistar Freshla para um programa cultural de TV. Perguntei ao repórter o que ele achava do rabòday, encolheu ombros de braços cruzados. Era realmente alguém mais tipo konpa.

Recentemente, durante a tarde, no estúdio de gravação com ar-condicionado West I, num outro canto empoeirado de Delmas, Freshla ouviu trechos do seu próximo álbum. Ele tinha acabado de gravar os vocais com Lunise Morse, a cantora da banda de raízes RAM, e agora queria pensar num título para uma nova música.

Esta era uma música que Freshla tinha gravado em francês, numa tentativa de se expandir para um público mais amplo no Caribe francófono – o nome da banda, afinal, é Vwadèzil, “voz das ilhas”, plural. O Haiti está a preparar-se para acolher o Carifesta, um carnaval regional para todo o Caribe, no final do próximo mês e queria estar pronto para atrair este potencial novo público para o rabòday. Algumas semanas antes da chegada dos primeiros turistas para o Carifesta, o primeiro turno das eleições dolorosamente atrasadas do Haiti estava finalmente marcado para acontecer. Agosto seria um mês trabalhoso.

 “Não posso chamar isto de ‘Bien Vague’ – vai ser um slogan”, disse ele, rodando os ombros. “O que? ‘Je Te Donne Vague’?” As expressões, afrancesamentos do crioulo “bay vag”, referiam-se a afastar alguém, e ele queria que o mote fosse atrevido o suficiente para apanhar o jeito que “Ti Pati” tinha. Foi um desafio; a ludicidade do crioulo não se traduz facilmente na língua de Molière. Ele parou de dançar ao som do seu refrão, por um momento andou de um lado para o outro, depois parou para pensar. Olhou para cima, sorriu generosamente e bateu palmas. Tinha conseguido.

“Yeah!” gritou em inglês. “Isto é um estrondo!”

Artigo originalmente publicado em BuzzFeed News, 2015.

Translation:  Filipa Pontes

por Susana Ferreira
Palcos | 8 Fevereiro 2022 | cultura, Haiti, música, rabòday, terramoto