Indígenas, imigrantes, pobres: o afropolitanismo no rap crioulo - parte 2
O rap “Tudu pobri é um soldjah”, de LBC Soldjah, expõe na narrativa a importância do comunitarismo e a semântica da rua e do gueto que são revelados em uma série de situações particulares na figura dos vários soldjahs que ele menciona:
Eu vejo sua mãe batalhando, ela é um soldjah/ Eu vejo seu pai lutando, ele é um soldjah/ Aquela mãe solteira, mesmo na miséria, é um soldjah /Prisioneiros numa jaula, mas eles são soldjah / Imigrantes sem papeis são soldjah/ Traficante de droga tentando sobreviver é um soldjah / Os covardes dedo-duro podem ser soldjah / As crianças da rua, no “faz ou morre”, são soldjah / Meu jovem estudante é um soldjah / Nós somos soldjah nessa realidade cruel. (LBC Soldjah, “Tudu pobri é um soldjah”, 2012, tradução nossa)
As múltiplas faces do gueto estão presentes em cada batalha particular de cada “soldjah” nomeado e sobrevivente na “realidade cruel” que o rapper cita na narrativa, e esta se fragmenta em tantas quantas forem as situações em que a pobreza e a resistência se manifestam. Cada um em sua experiência singular é um “soldjah”, uma representação particular do gueto – do “nós” –, e cada um vivendo seu estigma amplifica os significantes para essa representação da pobreza e da luta. Conforme Jean Luc-Nancy, o “nós”, aqui entendido como a fraternidade, é “igualdade na partilha do incomensurável” (Nancy apud Mbembe, 2014b: 97) e, nesse sentido, o nome do próprio rapper, Soldjah, é o que o iguala a todos, iguala porque não se pode medir ou comparar a experiência de cada um, e também iguala a todos nos termos da partilha na qual o lutador que cada um é o define para os demais.
O desdobramento do conceito de “soldjah” neste literal “eu sou porque tu és”, ou seja, na representação de uma “ubuntuidade” (Ramose, 2010) que se sobressai nas particularidades da vivência recíproca e solidária do gueto também visa responder a uma convocação, a um chamado de unidade em que todos se reconheçam e percebam que “a tática deles é pobre contra pobre na arena”, conforme narra o rap. Ao enunciar: “Porque todos os pobres são um LBC/ Todo pobre como eu é um soldjah”, é a unidade que prevalece e o rapper é aquele que se funde aos vários significantes do gueto dispersados nos versos anteriores.
No referido rap, o locutor deixa que o “Eu” Soldjah seja tomado pelos demais “soldjah” a ponto de vencer as fronteiras individuais e fazer emergir um “nós” dentro do “Eu” polissêmico, o que coextensivamente também torna visível a fronteira colonial que não apenas se materializa no gueto mas se corporifica e se dissemina na presença movente de todos e de cada um na ex-metrópole: “O outro é simultaneamente inerente à heteronomia absoluta e à similaridade e proximidade radical” (Mbembe, 2014b:72).
O caráter polissêmico se ancora também na cena do videoclipe oficial gravado nas ruas do bairro Cova da Moura com vários rapazes que cantam em grupo com o rapper LBC, cada um e todos eles são os “soldjah” – o “nós” – que também afirmam: “Isso é pelos negros correndo nessa rua” demarcando, assim, um espaço simbólico – a rua – em que se produz o território étnico ao mesmo tempo em que todo se afirma como gueto:
A rua condensa as possibilidades poéticas de uma aproximação à correria do dia-a-dia atrás de um sustento, de uma diversão, de uma bola para jogar, de uma parceria para a rima, de uma conversa, de encruzilhadas de possibilidades e de encontros e fugas que existem no labirinto da Cova da Moura. A rua permite uma aproximação à cultura que se produz a partir do convívio nas esquinas, nas calçadas, nas paradas, nas escadas, nas paredes grafitadas, nas pequenas varandas e janelas. As linhas de fuga dos “negros correndo nessa rua” passam também pelo ato de fala que declara o seu próprio significado e finalidade – “isso é pelos negros” – e, no entanto, tais linhas de fuga são inerentes ao ser Negro (Mbembe, 2014a) que corresponde nesse verso a todas as condições mencionadas antes, as quais, por sua vez, “partilham o mesmo signo de valor colectivo: a negritude física” (Contador, 2004:177).
Os “negros correndo nessa rua” são o signo de uma poética nômade produzida na condição do gueto, porém, penso que reconhecer-se nesse signo é também marcar no próprio corpo uma dimensão territorial que fica evidenciada quando o gueto é levado ao extremo da sua margem de alteridade nas situações de ações policiais como a retratada no rap “Fronta”, do grupo Kova M (2012).
A narrativa expõe a situação de aflição dos jovens, o medo de morrer que passam todas as vezes que a polícia entra no bairro para revistar e perseguir os moradores que vivem “estresse de bandido”. “Hora di fronta corre”, diz o rap e “os negros correndo nessa rua” ganham notória dimensão territorial daquilo que deve, nesse signo corporal, ser dominado: “Eles invadem o gueto/ Porrada em branco e preto/ Faltam-nos ao respeito/ Puxam de seus canos/ Humilham-nos/ Mandam-nos encostar na parede/ Revistam os rapazes” (tradução nossa). Entretanto, entrar no bairro e dominar os corpos que correm e se escondem não traduz todo o impacto que a atuação da polícia produz, pois isto está para além do fato em si. Como mostra a letra, há um registro na memória e no imaginário, há um registro psíquico “desse sentimento que não dá para explicar”, a “fronta”, a aflição da revista policial que subjuga tanto pela brutalidade quanto pela humilhação:
O gueto da Cova da Moura se expande para ganhar conexões com outros guetos pelo mundo: o local é global e remete à condição de discriminação nas periferias em geral onde a injustiça social é um fardo mais suportável se narrado e enfrentado pelo grupo. No conjunto das narrativas e das imagens dos vídeos dos MC’s da Cova da Moura vemos o bairro como cenário tendo, junto deles, grupos de jovens e crianças da comunidade num grande manifesto público de denúncia e proteção mútua, pois:
O terror, e não a vontade de poder, é o que dá o tom exasperado a essas falas. O crime e a droga são tentações enormes, agravada ainda pela falta de alternativas. O rap não oferece, evidentemente, nenhuma saída material para a miséria; também não aposta na transgressão como via de autoafirmação, como é comum entre os jovens de classe média […]. Muito menos no confronto direto com a principal fonte de ameaças contra a vida dos jovens, que a julgar pelo rap, é a própria polícia. Conformismo ou sabedoria? Provavelmente um pouco de cada um, se é que se pode considerar conformista o ceticismo dos manos quanto à possibilidade de enfrentamento com as instituições policiais […]. (Kehl, 2008:83)
Nessa linha que procura visibilizar o vivido no bairro Cova da Moura comparando-o como gueto a outros guetos no campo simbólico da colonialidade global, está, pois, o rap “Guetto Aljhazeera”, de LBC Soldjah (2013), onde ele diz “Bem vindo à Europa da Negrofobia, Islamofobia, Afrofobia”. As experiências vividas na própria pele e por causa dela como signo bio/necropolítico territorial do gueto somam-se, assim, às várias outras experiências coloniais que se fundem no universo diaspórico e das imigrações contemporâneas como conjunto de territorialidades nômades. Junto ao propósito de denunciar a colonialidade do discurso da imigração que apresenta esse rap, é interessante considerar que, conforme Mbembe,
No pensamento negro, a interrogação acerca da descolonização (entendida como um momento eminente do projecto de abertura do mundo) é indissociável da questão da Europa. Sob esse prisma, o pensamento da descolonização é uma contenda com a Europa, aquilo que a última afirma ser o seu telos e, ainda mais especificamente, com a questão de saber sob que condições o devir-europeu poderia constituir um momento positivo do devir-mundo em geral. (Mbembe, 2014b: 61)
Desse modo, “Guetto Aljhazeera”, tomado como via afropolita do pensamento Negro, questiona o “devir-europeu” e se propõe a romper as fronteiras nacionais, materiais e psicológicas do outro para dar sua informação que diz respeito a uma série de situações em que percebemos o gueto na dimensão da alteridade limite que o compõe. Assim, se anuncia o locutor: “Eu trago notícias que chocam o conformista/ Cuspindo sabedoria até você ter uma metamorfose ideológica/ O objetivo principal é cortar suas correntes psicológicas” (tradução nossa). A letra faz referência à relação colonial explicitada na condição atual do imigrante habitante do gueto e cuja vida não tem valor. Nos versos “Porque nada mudou, ainda indígenas da república/ Executados aqui em espaço público” (tradução nossa), a rua é agora território do Estado, é o “espaço público” onde os “negros correndo nessa rua” podem ser friamente “executados”:
A rua repercute semanticamente também na performance deste rap gravado em Atenas. No entanto, as ruas nos vários contextos performáticos diferem entre si e conotam o “projeto poético” no qual podem formular, inclusive, a cada vez um sentido ontológico para a voz (Zumthor, 1997:163). Nesse sentido, em que “o lugar da performance é destacado no ‘território’ do grupo” (Ibidem, p. 164) e no caso concreto da performance do rap crioulo, vale principalmente ter em conta que a rua simboliza a territorialidade da zona de contato cultural (Pratt, 1999; Pardue, 2012). A performance do rap é o ritual que “serve de quadro” a esse símbolo onde o “nós” e o “eles” têm como sua função principal “enriquecer o sentido ou chamar atenção sobre outros níveis de existência” (Douglas, 1976: 50-53). Assim, é interessante pensar que uma das características principais do evento performático do rap crioulo através da sua dimensão ritual é potencializar a rua não apenas como cenário, mas como símbolo do “devir-mundo” (Mbembe, 2014b:61) em contraposição ao discurso midiático que, conforme a letra de LBC Soldjah, sobretudo no espaço europeu, evoca à segregação dos imigrantes e rechaça os diversos povos de África, da diáspora africana, da Palestina, da América Latina e minorias étnicas:
Aqui criminalizado por uma TV com apenas uma face branca/ Multicultural? Veja nossa imagem na TV/ Você é muito preto pros programas deles (ironia)/ Esse é o gueto Aljazeera/ Gueto Aljazeera da Cova M (meu bairro) até a Faixa de Gaza/ Da África até América Latina, nós estamos marchando/ Indígenas da república como os aborígenes na Austrália/ Eu resisto como africanos e árabes na França/ É um crime as mulheres muçulmanas vestirem hijab? (LBC Soldjah, “Guetto Aljhazeera”, 2013, tradução nossa)
O surgimento de uma nova comunidade se faz ouvir também no rap “Odisseia de Desemprego” (2014), no qual LBC Soldjah expõe sua poética na forma de um drama em diálogo entre vários sujeitos em situação de risco, seja pelo desemprego, pela falta de recebimento de salários que o emprego informal não garante, pela debilidade de saúde e a impossibilidade de se aposentar ou pela iminência da deportação. O risco para todos os pobres e trabalhadores precarizados é o mesmo: a perda do mínimo para a sobrevivência. No entanto, ao imigrante existe o risco excedente da deportação caso não consiga os documentos da residência, risco de alcançar o extremo da alteridade, do limite externo do “eles” e do estar fora:
É preciso uma residência para ter um contrato de trabalho/ É preciso também um contrato de trabalho para ter uma residência/ No ano anterior, trabalhei, o patrão não me pagou o salário/ Nem posso queixar, corro o risco do SEF me deportar (LBC Soldjah, “Odisseia de Desemprego”, in: Santos et al, 2014)
É também no espaço da comunidade dos “pobres, imigrantes e filhos da imigração” (Hezbo MC, 2014) que estão exilados do direito à voz que ecoam as potentes intervenções políticas que articulam os rappers, tal como Hezbo MC faz em “Rap di protestu” (2014). A ideia central é mostrar que o próprio ato de fala no rap é intervenção social e protesto político. De certa forma, é um chamado a todos os MC’s para o fazer acontecer da palavra: “Já tá na hora de MC’s assumirem protesto na rua”, convoca. Esse rap também se coloca em diálogo com o graffiti que, por sua vez, já é um acontecimento politizador por sua interpelação visual constante dos sujeitos no bairro Cova da Moura, motivo pelo qual ele chama a atenção para o seguinte fato neste mesmo rap: “Graffitis na parede tá a pedir revolução”.
Observa-se que no videoclipe oficial desse rap tal diálogo enunciado se faz presente na performance encenada nas ruas em meio a esse contexto em que muros e paredes falam. São várias imagens de grafittis, pichações e cartazes que são colocados em sequência durante todo o percurso cenográfico dialogando com o discurso do rapper: “Povo armado. Povo respeitado! Viva a revolução!” é a mensagem pichada que abre a série. Em seguida, são destacados os graffitis de Amilcar Cabral com a frase “Unidade e luta” seguida de outro onde se lê: “Morte ao fascismo”. Outros rostos conhecidos aparecem todos grafitados nas paredes, como o Pantera Negra Mumia Abul Jamal, que se encontra preso nos EUA; Zeca Afonso, poeta e músico português e o rapper Tupac Shakur, ambos já falecidos, se unem na polifonia da cena.
No videoclipe em que as paredes do bairro Cova da Moura “pedem revolução”, criando na contraface desse discurso eloquente a denúncia da tentativa de silenciamento da comunidade, aparecem também imagens de uma manifestação ocorrida em 17 de janeiro de 2009 contra a violência policial nas periferias de Lisboa, onde o próprio rapper Hezbo MC usa de um megafone para protestar. Tal imagem onde a comunidade surge fazendo uso efetivo da sua voz é seguida da mensagem pichada em uma parede: “Uma injustiça contra um é uma injustiça contra todos”.
A referida manifestação ocorreu após a morte do jovem Edson Pina Sanches, o Kuku, 14 anos, morador da Amadora, executado por um policial com um tiro na cabeça naquele mês, a poucos centímetros de distância. Este, que não foi um caso isolado, provocou uma reação contra o tipo de ação policial implementada pela PSP (Polícia de Segurança Pública) nos bairros de periferia. As mortes dos jovens Angoi, Tony, PTB, Tete, Corvo e Snake, entre outros, foram lembradas na manifestação, pois todas elas foram cometidas por agentes policiais sem a devida apuração ou punição. A foto de Kuku é uma das imagens de referência do videoclipe “Rap di Protestu” e passou a existir nas paredes também como um dos graffitis que pedem revolução e justiça:
Graffiti em memória de Kuku, em Amadora. Ao lado, sua mãe.
O problema da violência policial é diretamente tratado no videoclipe “Pa tudu kes k kai” de Hezbo MC (2014), que utiliza fartamente imagens de ações da PSP e inicia com as cenas gravadas da mesma manifestação mencionada acima, realizada em frente à Esquadra da PSP do Casal da Boba, Amadora, que foi cercada por enorme tensão entre os manifestantes e a polícia. O ato é marcado pela intervenção dos rappers Hezbo MC, Chullage e LBC Soldjah, entre outros integrantes da Plataforma Gueto1 e demais manifestantes. Chullage, através do megafone, fez um longo discurso e chamou o grito de ordem “Justiça”, argumentando que o fato de Kuku ser um jovem negro o tornou, na versão do policial que o matou e da mídia, um criminoso para o qual qualquer julgamento ou pena – no caso a pena de morte, seria considerada aceitável:
Os mídias disseram: um jovem foi baleado, era um criminoso. E as pessoas responsabilizaram: se era um criminoso, a polícia fez bem. Mas não, era uma pessoa, era um ser humano que tinha 14 anos. E por ser um ser humano, jovem, negro, morador destes bairros isolados com estas políticas de habitação e estas políticas sociais. Como já disseram, põem esquadras, não põem postos de saúde, não põem bibliotecas, não põem nada de equipamento social aqui. E são reservatórios de mão de obra precarizada ou desempregados… (Chullage, Manifestação, 2009)
O videoclipe “Pa tudu kes k kai”, de Hezbo MC, segue com cenas de ações policiais nos bairros periféricos. São usadas imagens televisivas e gravações clandestinas onde se vê a ação da PSP e a detenção de jovens. Ao final, ouve-se a voz da jornalista: “Cenas de guerra às portas de Lisboa. A polícia cercou o bairro da Cova da Moura”, e completa: “As imagens fazem lembrar um cerco policial numa favela do Rio de Janeiro, mas isto passa-se na Amadora, às portas de Lisboa”:
“Às portas de Lisboa” trata-se de uma frase corriqueira na sociedade e na imprensa portuguesa para tratar as periferias. Mas é do estranhamento de um termo aceito como natural que justamente surge uma reflexão nesse novo contexto em que o rap de Hezbo MC o coloca. Também é propriamente dessa inserção que o repete em eco e o recontextualiza que a iteração dessa frase cumpre a sua função no rap enquanto disputa pelos significados e perspectivas epistêmicas da narrativa histórica. Dessa forma, os comentários banais destacados causam um impacto que leva a pensar no térreo-territor que essa banalidade simula, seja pela comparação entre o bairro Cova da Moura e a realidade militarizada das favelas do Rio de Janeiro, seja pela ideia de que isso se passa às margens de Lisboa.
As duas frases são, por outro lado, extremamente exitosas para demonstrar precisamente o que o rap crioulo tem dito, ou seja, comprova que há uma profunda e naturalizada segregação no imaginário português em relação aos bairros periféricos que, pelo enfoque da jornalista, ganham uma dimensão maior de não pertencimento, de marginalidade ameaçadora do equilíbrio “interno” de Lisboa e a paz local com “cenas de guerra” consideradas como alheias às suas estruturas sociais, jurídicas e políticas, mas pertencentes a alhures, às terras brasileiras e outras tantas. Coisas de periferias que o imaginário do centro – cotejando aqui a crítica de Boaventura de Sousa Santos (2004) – não comporta como constituinte da sociedade portuguesa.
O discurso da imigração, tal como o apontei, inclui e repete ao extremo a existência de uma totalidade de não portugueses sem mencionar ou negociar os mecanismos históricos que negam a nacionalidade portuguesa aos afrodescendentes nascidos em solo português. Os bairros “degradados”, no fundamento dessa ideia, se constituem como um fora, a fronteira do Portugal dos não portugueses, como assevera paradoxalmente o rap “Portugal aos portugueses”, de Chullage (2011) no qual o rapper aponta as várias formas de segregação existentes no país. Os problemas nacionais são de outros, são os outros, mas ao mesmo tempo esses outros estão sujeitos a uma estrutura e a uma lógica de poder e pertencimento excludente que os oprime.
Como bem define Giorgio Agamben, trata-se propriamente de uma lógica de exceção: “Estar-fora e, ao mesmo tempo, pertencer: tal é a estrutura topológica do Estado de exceção” (Agamben, 2007:57). O discurso que deambula na boca dos aparatos estatais e dos medias utilizando-se de uma expressão cotidiana que ratifica o território como fronteira é o que implementa o aditivo do terror – o que aterra e que está impedido de entrar – o que não se encontra ainda dentro, o que está “às portas” e sendo detido, isto é, contido pela polícia. O significado de contenção de uma barbárie por outra é obviamente legitimado pela ideia de detenção – o expurgo paradoxal se faz pelo confinamento – e propositalmente enfatizo a similaridade entre a ação de “deter, prender, eliminar do contato” e “conter, impedir, segurar”. Na similaridade a ação policial pode ser visibilizada como bio/necropolítica dessa fronteira interna que alimenta o conflito do “nós” e “eles”, o fora e o dentro, o conter e o expulsar onde tal ação personifica o direito do Estado de decidir entre qualquer um dos polos que, no entanto, não são excludentes, uma vez que quanto menos o Estado atua enquanto mecanismo de inserção social mais ele se faz presente na forma da lei e da intervenção policial (Idem, 2002). Quanto mais a prerrogativa da vida dos cidadãos está refém das garantias do Estado de produzir segurança, mais este assume as funções de uma tanatopolítica. Assim,
[…] A morte do outro não é simplesmente a minha vida, na medida em que seria minha segurança pessoal, a morte do outro, (a morte da raça ruim, da raça inferior ou do degenerado, ou do anormal) é o que vai deixar a vida em geral mais sadia e mais pura. Portanto, relação não militar, guerreira ou política, mas relação biológica. (Foucault, 1999:305)
Achille Mbembe em Necropolítica (2011), dialogando com Foucault, Agamben e Carl Schmitt, argumenta que o espaço da colônia e as plantações escravistas se encontram na origem não só do Estado de exceção, mas do Estado de terror relacionado ao direito de soberania sobre territórios de outros, o que significa, inclusive, matar para civilizar além do seu próprio território onde a guerra não é submetida às leis de guerra e onde a ideia de um espaço não civilizado torna desnecessária a justificação para a guerra:
El terror colonial se entremezcla mas bien incessantemente con un imaginario colonialista de tierras salvajes y de muerte, y con ficciones que crean la ilusión de lo real. La paz no constituye necesariamente la consecuencia natural de una guerra colonial. De hecho, la distinción entre guerra y paz no resulta pertinente. Las guerras coloniales se conciben como la expresión de una hostilidad absoluta, que coloca al conquistador frente a un enemigo absoluto. (Mbembe, 2011:41)
Se no período colonial o terror e a guerra aos colonizados careciam de pouca ou nenhuma justificativa, hoje a linguagem é extremamente importante tanto como veículo terrorificador como condutor da bio/necropolítica ou tanatopolítica, tendo em vista que interfere na percepção do racismo e práticas higienistas correlatas. Legitimada pela linguagem, a descivilização promovida no gueto (Wacquant, 2008) que remete ao indigenato via imigrações arbitrariamente articuladas (Borges, 2008) e que toma o sentido de não pertencimento à nação e posterior desnacionalização (cf. supra) é um agravante que se articula ao problema crucial da modernidade o qual, para Agamben, seguindo Foucault, consiste na lógica profunda do campo de extermínio:
[…] uma das poucas regras às quais os nazistas se ativeram constantemente no curso da ‘solução final’, era a de que somente depois de terem sido completamente desnacionalizados (até da cidadania residual que lhes cabia após as leis de Nuremberg), os hebreus podiam ser enviados aos campos de extermínio (Agamben, 2002:139).
As imagens dos guetos africanos de Lisboa projetam a espacialização da colonização moderna se revelando como definição que subjaz aos diferentes contornos da xenofobia lançada sobre os imigrantes que ocupam “livremente” e “ao seu modo” os espaços sociais onde o racismo se camufla. O que resta ao terror colonial é agora combater a territorialidade étnica dos imigrantes dentro dos próprios espaços metropolitanos. A cidade colonial se projeta nas imagens articuladas do “Guetto Aljhazeera” e dos seus habitantes, tornados outra vez indígenas:
A cidade do colonizado, ou pelo menos a cidade indígena, a cidade negra, a Medina, a reserva, é um lugar mal afamado, povoado de homens mal afamados. Aí se nasce não importa onde, não importa como. Morre-se não importa onde, não importa de quê. É um mundo sem intervalos, onde os homens estão uns sobre os outros, as casas umas sobre as outras. A cidade do colonizado é uma cidade faminta, faminta de pão, de carne, de sapatos, de carvão, de luz. A cidade do colonizado é uma cidade acocorada, uma cidade ajoelhada, uma cidade acuada. É uma cidade de negros, uma cidade de árabes (Fanon, 1968:29).
A cidade do colonizado agora é chamada de gueto, o indígena colonizado é o imigrante a quem se atribui um deslocamento inerente, um não pertencimento originário, uma segregação inevitável. Ao próprio imigrante – genérico da minoria étnica, do guetizado, do pobre ou do desnacionalizado – é imputado o problema de sua existência racial e precária como uma ameaça para a nação e por isso ele deve ser mantido nas margens da sociedade, ou seja, “às portas” diante das quais os serviços de imigração e as polícias fazem a guarda.
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- 1. Plataforma Gueto é um coletivo de Lisboa, do qual vários rappers são membros e que se define, através de seu sítio oficial na internet, como: “Movimento Social Negro que defende a autodeterminação de todos os povos através da resistência anti-imperialista e antirracista”.