Libertação
Com este espetáculo termina o ciclo dedicado pela companhia Hotel Europa ao fim do colonialismo português. Nesta triologia temos trabalhado numa linguagem de teatro documental pós-colonial, contestando o pensamento e discurso colonial. Tem sido particularmente importante nomear e discutir os dogmas do lusotropicalismo de Gilberto Freyre que, nos anos 50, se tornou a bandeira do Estado Novo para defender internacionalmente a presença de Portugal em África. Esta ideologia marca ainda o nosso presente e está profundamente enraizada na sociedade portuguesa que olha o colonialismo português como “bom colonialismo”.
Tenho precisamente insistido nesta reflexão sobre o nosso passado recente, porque quero compreender o nosso presente e chamar a atenção para os traços do colonialismo que ainda estão vivos na sociedade portuguesa hoje. Estes vestígios estão presentes, por exemplo, nos mais variados discursos dos representantes do Estado Português desde o 25 de Abril, sendo o caso mais recente o discurso do presidente Marcelo Rebelo de Sousa na visita a Gorée, no Senegal. Nesta ocasião, houve alguma expectativa de que o Presidente da República pudesse finalmente pedir desculpa pelo papel que Portugal teve na escravatura e no tráfico de escravos. Mas pelo contrário, Marcelo Rebelo de Sousa referiu que os Portugueses tinham através de Marquês de Pombal abolido parcialmente a escravatura em 1761, esquecendo-se de referir que a escravatura no Império Colonial Português só terminou verdadeiramente em 1961, com o inicio da Guerra Colonial que obrigou Portugal a acabar com o trabalho forçado. Este facto veio, mais uma vez, sublinhar como o lusotropicalismo ainda não desapareceu do discurso político português e como uma descolonização do pensamento e da história Portuguesa é urgente.
Assistimos hoje a um movimento internacional que contesta a forma “especial” com que os países imperialistas europeus contam a história e que exige que esta história seja re-escrita. Sendo o caso português um dos mais paradigmáticos neste sentido, onde apenas são narrados os grandes feitos dos descobrimentos e encobrindo por completo a opressão sofrida pelos povos colonizados. É por isso urgente continuar o trabalho de descolonização que começou nos países colonizados nos anos 50, 60 e 70, mas desta vez esta descolonização tem que ser feita nos países colonizadores. São estes países europeus e de maioria branca que precisam rever a sua história, a sua memória e a sua forma de relembrar o passado. É urgente descolonizar Portugal e deve-se começar exatamente por alterar os manuais de história que como tão bem demonstraram as investigadoras Marta Araújo e Silvia Maeso continuam a manter a “institucionalização do silêncio” e a “naturalização das relações de poder e violência” (2016, Os Contornos do Eurocentrismo - Raça, história e textos políticos, Lisboa: Almedina).
Tenho com este ciclo de teatro documental pós-colonial feito um percurso de investigação com um intuito político muito claro: contribuir para uma re-escrita da nossa história colonial e ajudar à discussão de problemas actuais que advêm de questões coloniais não debatidas. Este trabalho faz parte de um movimento que tem atravessado a sociedade portuguesa pelas universidades, as artes, os jornais, associações e que olha para o passado porque quer alterar o presente e a forma como se conta esse passado.
Comecei este ciclo com o espectáculo Portugal Não É Um País Pequeno (2015) onde ouvimos as histórias dos antigos colonos Portugueses que ficaram para a história com o nome de retornados. Quis com este espectáculo entender, através das histórias de pessoas reais, um dos momentos mais complexos e mais silenciados da nossa história: o fim do colonialismo português e como este foi vivido por estas pessoas desde os anos 50 até ao 25 de Abril. Reflectindo ao mesmo tempo sobre o pensamento colonial do Estado Novo, em particular o do lusotropicalismo, as implicações deste nas vidas pessoas e as suas manifestações no presente.
Em Passa-Porte (2016) olhamos para o período das independências e ouvimos colonos e colonizados, quis perceber como foram tratados pela história estas pessoas depois do 25 de Abril devido à classificação que lhes foi dada pelo Império Colonial Português. Este espetáculo de teatro documental centrou-se nas independências das antigas colónias portuguesas de Angola e Moçambique, e em todas as alterações de nacionalidade que afetaram as pessoas que viviam nesses países africanos. Passa-Porte retratou através de testemunhos reais estes eventos históricos e os relatos daqueles que fugiram da violência decorrente do fim do colonialismo ou do início da guerra civil em Angola e conta também as histórias dos que escolheram ficar nos países independentes e que acreditavam na construção dos novos países.
Com Libertação (2017) pretendi olhar para as guerras de libertação que Angola, Guiné-Bissau e Moçambique tiveram com Portugal para conseguir a suas independência. A escolha do nome Libertação demonstra a intenção do espectáculo reflectir sobre os movimentos de libertação e olhar a estas guerras do ponto de vista da luta internacional contra o colonialismo e não apenas para o lado traumático da guerra colonial. O meu desejo é colocar em cena os princípios e pensamentos que guiaram o combate dos nacionalistas africanos contra os dogmas do lusotropicalismo e do pensamento do Estado Novo.”
Neste último espectáculo é voz do povo colonizado e da causa nacionalista africana que está em primeiro plano, demonstrando que aquele que foi objecto durante o período colonial é afinal sujeito e o protagonista deste história. A recolha de testemunhos para Libertação passou por sete países diferentes Angola, Brasil, Estados Unidos da América, Guiné-Bissau, Holanda, Moçambique e Portugal. Tentámos retratar neste espetáculo não só relação entre Portugal e os países onde decorria a guerra, mas também mostrar como esse conflitos eram vistos no contexto internacional.
Finalmente, com Libertação demos também lugar para a expressão da pós-memória, a partir de testemunhos de filhos de pessoas que viveram o período colonial e partir das próprias autobiografias dos interpretes. Estou interessado em saber que memórias foram transmitidas as estas novas gerações que não viveram o período colonial. E sobretudo que visão critica têm desde passado e como pretendem que esse período seja recordado.
Foi interessante observar que ao escutar pessoas que resistiram e lutaram contra o colonialismo português começamos a ter acesso a uma narrativa completamente diferente da que se ouve na sociedade portuguesa. As histórias a que tivemos acesso relatam a violência do sistema colonial português, falam dos massacres do governo colonial, dos massacres cometidos pela tropa portuguesa, da inexistência de educação ou de oportunidades, da opressão e exploração da maioria negra. O colonialismo foi um crime contra a humanidade que choca nos dias de hoje pelo que fez mas também pela sua extensão no tempo e é preciso prestar homenagem a Amilcar Cabral, Agostinho Neto, Eduardo Mondlane, Samora Machel, entre outros que lutaram pela sua libertação e tornaram possível a nossa.
Artigo originalmente publicado no Reader do ciclo Descolonização, programado por Liliana Coutinho / Teatro Maria Matos.