“me debrucei pra escrever algo pra minha avó, pro mundo não se esquecer de mim, como fez questão de esquecê-la.”

A escritora Luz Ribeiro venceu a 4ª edição do prémio literário Nova Dramaturgia Feminina organizado pela companhia Cepa Torta. Publicamos abaixo alguns  excertos de Lacuna obra vencedora que será publicada em livro numa edição Cepa Torta em parceria com a editora Douda Correria, cujo lançamento ocorre a 14 de dezembro de 2024, na Fundação Calouste Gulbenkian, juntamente com a sua leitura pública. 

LACUNA de Luz Ribeiro

PRÓLOGO

as três poetas/ atrizes farão esse texto juntas, localizando os espectadores ao tema.

este é um solo que pode ser feito por uma ou três mulheres pretas escuras e gordas, sem deixar de ser um solo. um solo, tecido em solo de tecido escuro e feminino. um solo que gargalha na encruzilhada, e abre a boca do tamanho do mundo pra se dizer. um solo de nome secreto, que se apresenta lacuna, mas sua alcunha ainda permanece secreta, afinal, só quem leva o buraco sabe o seu nome próprio. um século dividido em sete semanas para se saber, e o nome ainda permanece secreto. uma ou três mulheres, porque esse texto fala sobre a quase impossibilidade de ser par, e três ou um, já nos coloca mais perto das que

estão aqui, mas já se foram. eu queria que fossemos sete, mas sete talvez fosse pedir demais a vocês, então distribua no palco um ou três pedestais com microfones, um pra EU, um pra ELA outro para NÓS. texto escrito para atrizes, mas principalmente um teatro feito para poetas.

(…)

atriz se direciona ao microfone/pedestal “EU”.

EU – a primeira vez que ouvi esse discurso da angela davis eu tive certeza de que tinha o dedinho da minha avó, ah tinha, a minha avó era muito amiga da lélia, da lélia gonzalez, se conheceram na universidade. uma história muito bonita, com todos os detalhes que ela merece e eu esqueço, mas do que lembro, minha avó não conheceu davis, mas foi ela que falou da angela pra mim a primeira vez. ela falava dos black panters com detalhes como se estivesse lá desde a fundação, eu acho que muito do discurso da angela davis é pautado na lélia, e ela mesma já falou da contribuição da lélia para os pensamentos dela, e aí que entra minha avó, parte dos pensamentos da lélia surgiram na mesa da cozinha dela, ainda jovens confabulando futuro. minha avó dizia que preparava sempre uma broa pra elas com chazinho de anis estrelado, que lélia amava, e que sua amiga era boa de discurso e ruim de cozinha, e que nem todo mundo era afortunada como ela. boa de panela e cabeça. convencida. minha avó era muito convencida. e eu só queria uma avó tradicional, com penteadeira, cheirinho de talco, perfume envelhecido, amarelado. uma avó ranzinza. com

ditados profecias. que acolhe as preguiças e aninha. uma avó que mima, que estraga. toda avó mente, e eu queria que minha avó mentisse, mas ela não mentia nunca. tudo que ela falava era verdade, pra ela. ela não mentia no que dizia, ela acreditava.

atriz muda a intenção do texto como se lhe fosse soprada essa informação, texto falado fora do microfone

EU - se você tivesse uma maneira de voltar no passado, aonde você voltaria? resetaria algo? acho que eu voltaria aonde o outro perdeu, e ao invés de se permitir ser escravizado eu sopraria no ouvido: mate tudo que embranquece agora e se não conseguir se mate, e mande os demais se matarem também. eu

evitaria o surgimento da palavra escravidão, e qualquer variante dela.

atriz volta a intenção anterior

EU - ou voltaria em todos os dias que minha avó não me abraçou, não me abençoou, não desejou boa sorte. (…) 

O livro completo estará à venda no website da editora Douda Correria.

 


Sobre a vencedora


Luz RibeiroLuz RibeiroLuz Ribeiro é Mãe, Escritora e Atriz . Integra os Coletivo de Teatro e Pesquisa “Legítima Defesa” e “Negrur4”. Formada em Dramaturgia, a mesma se dedica com afinco a palavra. Luz Ribeiro ganhou torneios importantes de poesia, Nacionais e Internacionais, tais como: SLAM BR em 2016, semifinalista na “Coupe du Monde de Poesie” Paris - FRA 2017 e “TODO MUNDO SLAM” Lisboa - POR 2020.  Publicou os livros autorais: “eterno contínuo”, “espanca/estanca” e “novembro [pequeno manual de como fazer suturas]”. Tem textos em mais de 20 antologias, entre elas “QUEREM NOS CALAR: POEMAS PARA SEREM LIDOS EM VOZ ALTA” com curadoria de Mel Duarte e “AS 29 POETAS HOJE” com Curadoria de Heloisa Buarque de Holanda. Ganhadora do prêmio Solano Trindade de Dramaturgia com o texto 23 [encruzilhadas do tempo: cênico, da memória e da realidade] (2024).  Lançou no respectivo ano o seu primeiro álbum musical “POETA ESQUEMA NOVO” tendo os ingressos do seu show de lançamento sold out em menos de 24 horas. Luz é mar-mãe do Ben e filha-mar de Odoya.

Sobre a 4ª edição do Prémio

O Prémio Nova Dramaturgia de Autoria Feminina pretende promover, reconhecer e divulgar a dramaturgia de autoria feminina em língua portuguesa e destina-se a todas as pessoas singulares, maiores de idade, que se identifiquem com o género feminino, sejam cisgénero ou transgénero. Este prémio pretende promover, reconhecer e divulgar a dramaturgia de autoria feminina em língua portuguesa. O concurso está aberto a todas as pessoas singulares, maiores de idade, que se identifiquem com o género feminino, sejam cisgénero ou transgénero, e que querem propor uma obra dramatúrgica inédita e nunca representada. O júri desta edição é composto por Ana Bigotte Vieira, Cucha Carvalheiro e Jorge Palinhos.

Foram recebidas um total de 89 candidaturas provenientes de países falantes da língua portuguesa, das quais 86 eram elegíveis. Deste total, após um primeiro período de seleção e análise, o júri escolheu três finalistas e, entre junho e agosto deste ano, apoiou, em regime de mentoria, cada uma das finalistas num processo de discussão e melhoria do texto proposto com o objetivo de o consolidar. 

As três finalistas desta edição foram: Belisa Branças, com Das Cinzas ou das Brasas, Luz Ribeiro, com Lacuna e Telma Fernandes, com “Papel Passado”. A seleção das peças finalistas pelos três membros do júri foi unânime, valorizando-se a qualidade dramatúrgica, o caráter inovador e o potencial de melhoria, para além do abordar de temáticas atuais e relevantes. 

O júri selecionou para o Prémio Nova Dramaturgia de Autoria Feminina de 2024 a peça Lacuna, de Luz Ribeiro e decidiu atribuir menções honrosas às outras duas peças finalistas.

Sobre o texto vencedor escreve o júri:

“Lacuna é então, e entre outras coisas, um longo poema-reflexão sobre uma avó negra vista aos olhos da infância e teorizada hoje, à luz de um presente que não se quer passado, e, como tal, necessariamente anti-racista. Para que possa haver futuro. O texto interpelou-nos não apenas pela força e expressividade da escrita, visível logo nas primeiras linhas, como pelo imaginário a que alude e a justeza do dispositivo teatral que propõe, em que se sente uma progressão clara na narração de uma história, acompanhada de uma metareflexão sobre a mesma, a partir do lugar de fala da autora hoje.  Ao que se junta o modo sensível como a experiência da negritude, da doença, da velhice e da infância são tematizados  - num momento em que é mais do que nunca urgente dar lugar a imaginários que tais, longamente invisibilizados.”

A vencedora recebe um prémio pecuniário no valor de 750€ e o seu texto será publicado em livro numa edição Cepa Torta em parceria com a editora Douda Correria, cujo lançamento ocorre a 14 de dezembro de 2024, na Fundação Calouste Gulbenkian, juntamente com a sua leitura pública que se repetirá no dia 15 de dezembro, integrada na programação do festim. A leitura será novamente realizada a 19 de dezembro na Biblioteca Municipal de Faro.

​​No total das quatro edições do Prémio foram recebidas pela organização mais de 430 candidaturas provenientes de vários países de língua portuguesa. Na presente edição, cerca de 60% dos textos eram de autoras de nacionalidade portuguesa, sendo a brasileira a segunda mais representada com 34%.

Sofia Perpétua venceu a 3ª edição do Prémio Nova Dramaturgia de Autoria Feminina, com a peça “Tanque”. Maria Giulia Pinheiro foi a vencedora da 2ª edição, com a obra “Isso não é Relevante”, em 2022 e Lara Mesquita venceu a 1ª edição, com “Sempre que Acordo”, em 2021.

por Luz Ribeiro
Palcos | 6 Novembro 2024 | Lacuna, Nova Dramaturgia Feminina