O sentido do afecto

Com “Peças para uma sombra iniciada e outros rituais mais ou menos”, a Companhia de Dança Contemporânea de Angola projectou durante sete noites sobre o palco do Teatro Nacional Chá de Caxinde a imensa e subtil ontologia do afecto, esse sentido que nos fica além dos cinco usuais e muito mais para lá do da intuição e até daquele que nos revela o que o sonho não sabe dizer.
Ana Clara Guerra Marques, coreógrafa e directora artística deste espectáculo inédito no nosso ambiente cultural, arrumou um conjunto bem uniforme e bem contrastante de meios humanos e técnicos para levar ao palco um ritual de dança sagrado e ao mesmo tempo profano, já que conseguiu unir no mesmo gesto rítmico o espírito da máscara e a química inefável da sombra, numa plástica para ser sorvida com a alma já a diluir-se no fogo das sensações que promana de todo o corpo semi-nu.
Depois da sombra acesa, essa plástica de sensações desdobra-se num cenário de mil actos, onde a expressividade simbólica da devoção ao próximo é capaz de arrancar a ferros a nossa emoção mais reservada. Dançar assim por dentro de uma sombra iniciada e os rituais que se lhe agregam faz tremer o coração e faz cair dentro duas ou três lágrimas daquele inexplicável desejo de viver o oitavo sentido: o do afecto. Quando no palco ondulam esses deuses de carne e osso, sentimos a pele arrancada a exímios golpes de estilete cinético, que mais não são do que a composição plástica “de quem somos”, no outro mundo poético, mas real, de Fernando Pessoa.peça de Ana Clara Guerra Marques, no Cine Teatro Nacional em Luanda, foto de Raúl Bosspeça de Ana Clara Guerra Marques, no Cine Teatro Nacional em Luanda, foto de Raúl Boss
Corpos, gestos, ritmos, olhares, secreções finais, toda uma ontologia da sombra aferida à experiência do ser humano é-nos induzida pelo mais-velho David Mwa Mudiandu, que iniciou Ana Clara nos arcanos da Cultura Cokwe. Mas quem inicia o público na trajectória mítica entre as origens e a contemporaneidade da dança é o Mukixi wa Cihongo, João Mwa Cilengo, aquele de quem se pode dizer capaz de materializar a verdadeira ciência de voar com os pés no chão.
Da Companhia de Dança Contemporânea de Angola desembarcaram em palco os bailarinos Adilson Valente, António Sande, Benjamim João, Divaldo Nunes e Zuni Kurty. A estes juntaram-se os bailarinos do Grupo Yaka, André Baptista, Armando Mavo, Samuel Vilarinho, os percussionistas Abraão Kumba, Cemi Diamoneka e a própria Ana Clara. Especialmente convidada da Companhia Dançarte destacou-se a bailarina Rossana Monteiro que contracenou com Cemi Diamoneka naquele acto de gravidade afectiva em torno de uma cadeira de rodas, à luz de uma melodia descida das escadarias galácticas.
O que se move em palco é todo um mundo antevisto nos desenhos de Nuno Guimarães, a partir do material da exposição de Mário Tendinha “Contos da Oratura Angolana dos Ogros e do Fantástico”, pintura feita sobre dez telas gigantes com personagens das estórias, às quais Ana Clara e a sua equipa de trabalho deram movimento. Foi, antes, “uma reciclagem”, no dizer desta senhora bailarina que começou a dançar aos 8 anos. “Os jovens deram a interpretação das telas, porque o bailarino não pode ser uma máquina de repetição”, vaticinou Ana Clara, cuja missão principal consistiu em “moldar o barro”, já que acha fundamental que os bailarinos sejam criativos, “eles dão a carne e depois eu ponho o esqueleto, a espinha dorsal”.
E foi assim que se passou este espectáculo de dança, com estórias da nossa tradição, sobre as quais o próprio público “cria as suas estórias”, assim, como um romance aberto, ou como aquele menino que vai para a iniciação na Mukanda e depois acontecem várias coisas, uma aprendizagem sofrida. Mas, o que seria a vida sem sofrimento?

Publicado no Jornal de Angola (Luanda, 22/11/2009)

por José Luís Mendonça
Palcos | 6 Junho 2010 | Ana Clara Guerra Marques, dança