Observar o Tchiloli do grupo Boa Ventura
Fiz cinco sessões, de duas horas e meia cada, com o grupo Boa Ventura do bairro da Boa Morte, um grupo que representa as tragédias do Tchiloli, com encenação de Eurico Veloso. Quis dar-lhes a conhecer alguns exercícios ocidentais de teatro sobre a preparação do actor, proporcionando-lhes ferramentas válidas para o seu trabalho como intérpretes. São, basicamente, exercícios de aquecimento e de concentração: para aquecer o corpo e a voz, seguindo a técnica de Augusto Boal, do Teatro do Oprimido.
Desenvolvi um trabalho a partir de cenas específicas d’ A Tragédia do Marquês de Mântua. Analisámos personagem a personagem, substituímos a palavra dita pela ‘linguagem inventada’, isto é, a produção de sons guturais que não significam nada, mas que servem para se perceber de onde vem a voz e o sentimento. Para não ser apenas o texto dito ou declamado.
Confirmei com eles a importância da união, do trabalho e do espírito de grupo, sem egos, coisa que existe pouco em Portugal, onde cada um está fechado no seu camarim. Aqui todos se entreajudam, como se fosse para fazer um espectáculo de uma família. A camaradagem, entre eles, comoveu-me.
Foi muito importante para este grupo fazer o espectáculo na CACAU, ter a oportunidade de se expor aos outros. Sobretudo ter melhores condições de trabalho, de ensaio, mais luz. Finalmente têm um espaço grande. Eles ensaiam num quintal, de 4 metros por 2. E sem luz. Era crucial que o Tchiloli pudesse ser património nacional.
Uma coisa que gostava de ter explorado mais é o papel da mulher, porque não há mulheres no teatro Tchiloli, o que obriga a que os papéis femininos sejam representados por homens. Mas, neste grupo, há uma mulher, pela primeira vez, que toca chocalho. Faz parte da tradição não haver mulheres, um pouco na linha do teatro shakespeariano. Mas fiquei feliz por não sentir discriminação.
Interessou-me sobretudo ter um olhar antropológico. Por isso filmei/registei os ensaios, a preparação do espectáculo, as roupas, a forma como são vestidas, como passam a fazer parte da personagem, os instrumentos musicais, as afinações. São rituais que se fazem, por isso mesmo, sempre da mesma maneira, e que nunca foi visto. Este olhar chegou-me através da leitura dos textos de Paulo Valverde, editados por Pina Cabral. Não conhecia esta tradição de teatro, mas a do teatro tradicional sim, da relevância que tem na vida da comunidade. Também não queria vir do ocidente para mudar o Tchiloli. Posso ajudar, do ponto de vista das técnicas teatrais.
A minha ideia neste trabalho é voltar ao início. Voltar ao antes do texto estar trabalhado e interiorizado pelo actor. Espero que se consiga ver isto no documentário sobre os bastidores do Tchiloli. Apesar de eu também filmar o espectáculo propriamente dito. Uma filmagem não intrusiva, através do Iphone, no qual eles pegavam e filmavam o que queriam. Não queria fazer uma reportagem. E só agora me apercebi que o meu trabalho tem tudo que ver com o conceito da Bienal, onde os artistas se juntam apenas com o propósito de criar arte com os meios que existem.
Fotografias de Iris Toivola Cayatte e Ding Musa