Questões raciais no debate cultural
Nos últimos anos, diversas exposições têm destacado questões raciais como debate central. Quais são as consequências efetivas dessa discussão?
Nos últimos anos, diversas exposições têm buscado discutir as complexas relações raciais no meio social brasileiro, assim como seus reflexos no campo da arte. Na esteira dessa discussão, podemos perceber a assimilação de novos nomes de artistas negros no mercado e nas instituições. Mas quais as consequências reais desse processo? Seria este apenas mais um fenômeno de mercado ou estão sendo estabelecidas políticas de formação e inserção que permitam que a cena artística passe a refletir mais consistentemente a constituição das diversas matrizes raciais da sociedade brasileira?
Entre os pioneiros desta discussão, podemos citar o artista Emanoel Araújo (1940) e sua atuação como diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo entre 1992 e 2001. Araújo foi o único diretor negro nos quase 115 da instituição e promoveu uma série de exposições e projetos fundamentais para a ampliação do debate racial na arte contemporânea, assim como políticas de aquisição de obras de artistas negros históricos e em atividade, discutindo a herança e a presença negra no cenário cultural brasileiro. Araújo também é o diretor-fundador do Museu Afro-Brasil (2004), que coleciona obras históricas e peças etnográficas.
Também podemos mencionar a artista Rosana Paulino (1967), cuja obra encarna em sua própria materialidade uma série de discussões sociais, políticas e subjetivas que são fruto da violência histórica contra a população negra. Sua produção começa a ser apresentada em meados dos anos 1990 e sua prática é marcada por uma trajetória acadêmica e envolvimento com educação, sendo uma das principais referências para gerações mais novas.
Em uma série de exposições recentes, este debate ganhou força e entrou para a agenda de instituições e galerias. Entre elas, Histórias Afro-Atlânticas (2018), com curadoria de Adriano Pedrosa, Ayrson Heráclito, Hélio Menezes, Lilia Moritz Schwarcz e Tomás Toledo, que mapeava os trânsitos culturais e étnicos entre os séculos 16 e 21; Ecos do Atlântico Sul, promovida pelo Goethe Institut como desdobramento de uma conferência (2018-2019); Agora somos todxs negrxs? (2017) com curadoria de Daniel de Lima, que partia da declaração da constituição do Haiti de 1805 para problematizar e a atualizar as premissas da frase; Territórios: Artistas Afrodescendentes no acervo da Pinacoteca (2015-2016), com curadoria de Tadeu Chiarelli, que foi uma revisão e ampliação do acervo do museu a partir das obras de artistas negros em sua coleção; Histórias Mestiças (2014), com curadoria de Adriano Pedrosa e Lilia Schwarcz, uma pesquisa sobre as matrizes raciais formadoras do Brasil e suas diversas representações e discussões no campo da arte; entre outras.
Chama a atenção a visão histórica que essas exposições buscam estabelecer, resgatando memórias, contra narrativas, revisando a historiografia oficial e seus desdobramentos no presente – por exemplo, a ponte entre a escravidão e a violência policial contra os jovens negros de periferia é um assunto recorrente nessas mostras. No entanto, embora a maior parte dos artistas que participam dessas exposições seja de afrodescendentes, os curadores em sua maioria são brancos, homens, etc. O que é está em questão não é um problema individual, mas como esses discursos ainda reiteram a manutenção do poder dos mesmos sujeitos políticos.
Para o antropólogo e curador Hélio Menezes, é importante frisar como essas exposições têm dado alguma visibilidade a artistas negros, porém menos ênfase a curadores, que são convidados para projetos específicos, temporários, ou apenas para discutirem questões raciais, sem serem integrados nas estruturas institucionais. “Esse é um passo importante, mas ainda inicial. Nesse sentido, as instituições têm pecado na ausência de políticas de formação e inserção de artistas e curadores negros nos seus quadros. É necessário ter um programa de apoio, capacitação e formação de artistas e curadores negros”, diz Menezes a seLecT.
Uma série de perguntas somam-se a esta colocação. Em que medida a presença de artistas negros apenas em exposições destinadas ao tema não geram uma dupla reificação: uma redução do artista e de sua obra a apenas um aspecto de sua identidade? É suficiente reunir a produção de artistas negros, apenas por sua etnia? Ou, ainda, a redução de uma exposição à discussão racial não acaba por perder de vista uma série de singularidades formais e conceituais diversas, além de especificidades de linguagem e da especificidade desse assunto dentro da produção de cada artista?
Vale ainda perguntar como as instituições incentivam a formação e inserção no competitivo sistema de arte para que artistas e curadores negros possam exercer seu trabalho com plena potência – discutindo questões raciais ou não. Quais instituições estão balizando o número de artistas brancos e negros em projetos que não discutem apenas questões raciais? E como os próprios artistas estão reagindo a esse contexto?
Na esteira dessa discussão, uma série de nomes como Antonio Obá (1983), No Martins (1987), Josefá Neves (1971), Maxwell Alexandre (1990), Arjan Martins (1960) começaram a ter seus trabalhos reconhecidos nos últimos anos, tendo obras adquiridas em coleções, apresentações em feiras, galerias comerciais e repercussões na imprensa. Chama a atenção, inclusive, o uso predominante da pintura na produção desses artistas e uma presença predominantemente masculina, enquanto artistas mulheres como Musa Michelle Mattiuzzi (1983), Rubiane Maia (1979) ou o Coletivo Trovoa mostram suas produções em circuitos alternativos.
Para Jaime Lauriano (1985), essas exposições refletem uma efervescência de práticas anteriores, embora tenham sido catalisadoras do debate – mesmo que, para o artista, mais do que pensar as questões raciais, interessa pensar o Brasil dentro dessa questão. “Na verdade, eu destacaria as cotas sociais em universidades como fator social transformador, e não as exposições, porque elas são só uma decorrência da possibilidade de formação de uma nova geração de artistas”, diz Lauriano a seLecT. Para ele, esses artistas põem em evidência as fraturas sociais mais corriqueiras da sociedade brasileira. “Essa nova geração traz um pensamento de como trabalhar com as imagens das fraturas sociais. Se a maioria são pintores, trazem uma nova visualidade que não era encontrada na pintura brasileira. Podemos dizer que há uma ‘escola de pintura’ de artistas negros, porque usam sínteses visuais parecidas e é importante ter artistas que apresentem a visualidade do meio social”. O artista também nota a baixa presença de mulheres negras nesse contexto como reflexo de um machismo presente no meio artístico em geral.
Pautadas as diferenças com o contexto sócio-econômico norte americano, em que pelo menos desde os anos 1960 o sistema institucional da arte revisita a questão racial de modo sistemático – o Studio Museum no Harlem foi fundado na década de 1960 por um grupo de artistas, ativistas e filantropos interessados em promover artistas e trabalhos influenciados e inspirados na cultura negra, por exemplo –, esta discussão se dá bastante tardiamente no cenário cultural brasileiro. Assim como outras políticas de reparação histórica.
A entrada de artistas negros no mercado e nas instituições pela categoria “artista negro”, gera perguntas urgentes para a discussão: estaríamos passando por uma redução das obras a um fenômeno identitário, achatando diferenças e sutilezas entre pesquisas diversas? Estaria esse se tornando um gadget mercadológico que não está produzindo políticas de formação mais igualitárias para artistas, curadores e pesquisadores afrodescendentes? Como é possível participar das demandas mais imediatas do sistema de arte com um pensamento crítico que promova ações transformadoras a longo prazo?
Talvez, uma boa resposta para algumas destas questões seja a produção do artista norte-americano Kerry James Marshall (1955). Em sua obra, podemos encontrar um bom exemplo de crítica da tradição ocidental da pintura que “fagocita” a estrutura e as narrativas do mais amplo espectro de imagens produzidas ao longo da história, para inserir e naturalizar a figura do negro dentro das narrativas oficiais. São imagens de pessoas em situações afetivas, reflexivas, em cenas de sociabilidade e intimidade. As personagens da pintura de Marshall são, enfim, dotadas de subjetividade – experiência que historicamente foi negada aos negros.
A obra Untitled (Painter) (2009) está atualmente nos cavaletes de cristal do MASP, por meio de uma parceria com o Museu de Arte Contemporânea de Chicago, na exposição Acervo em Transformação. Nessa obra, uma pintora tem atrás de si um autorretrato em que sua imagem aparece esquadrinhada, como nos exercícios infantis de preenchimento de campos de cor. A figura indica um tom rosado na paleta em sua mão que não coincide com sua pele, como se apontasse a ausência de representação – ou auto-representação – dos negros ao longo da história. Ao mesmo tempo, estabelece uma reflexão sobre a própria pintura. A crítica de Marshall opera por uma sofisticada incorporação da tradição ocidental, uma “canibalização” da cultura dominante, em que experiências cotidianas e os cânones da história da arte são reunidos para produzir figuras altivas e auto reflexivas.
Outro bom exemplo é a revista O melelick 2o ato que, entre outras questões, busca discutir a identidade negra a partir da experiências dos próprios editores e colaboradores. Que a sede da revista seja em São Caetano do Sul, só atesta uma visão descentralizada que transita livremente entre instituições, o centro e a periferia.
Para o enriquecimento do debate, o Instituto Inhotim recentemente anunciou que Renata Bittencourt, gestora cultural de sólida formação acadêmica e trajetória profissional, foi anunciada como a nova diretora executiva da instituição em Brumadinho, assumindo uma posição de poder, decisão e estratégia dentro da instituição (leia entrevista publicada pela seLecT). Esperamos que mais iniciativas como essa apareçam por aqui.
Artigo publicado originalmente em Select a 24/04/2019