Rap Crioulo como narrador da experiência afrodescendente em Portugal
A meados de março de 2015, Kendrick Lamar lançava o seu terceiro álbum de estúdio, To Pimp A Butterfly (TPAB).
Ao longo de uma hora e dezanove minutos, o rapper da Califórnia vai construindo uma narrativa em cima de beats que, em muito, nos lembram as raízes da música negra dos Estados Unidos. Este álbum, rápido sucesso comercial, vem reafirmar a capacidade do artista de Compton como contador de histórias. Ao longo destes cinco anos, a comunidade afroamericana continuou a sofrer com as mesmas questões levantadas neste álbum clássico. A faixa número sete do álbum tornou-se um hino nas manifestações contra a brutalidade policial e outras formas de violência sofrida pelos negros americanos, transmitindo esperança de que ficaremos bem. Cinco anos depois, posso afirmar que este gospel de Kendrick Lamar é o valedictorian da experiência afroamericana contemporânea.
Vimos acompanhando com muita atenção, e bem, as atrocidades cometidas com total impunidade pelo braço armado do Estado americano e as consequentes revoltas. A experiência afrodescendente em Portugal é igualmente marcada pela violência de Estado. Se o álbum mencionado é um dos que melhor relata a experiência afroamericana, o rap crioulo faz a sua parte deste lado do oceano.
Se hoje podemos ir a um festival universitário fora da Área Metropolitana de Lisboa (AML) e ouvir Julinho KSD, no seu flow inconfundível, a cantar junto com um público, maioritariamente branco, refrões em crioulo, não poderíamos imaginar que para outras gerações de artistas, que cantavam na mesma língua, fecharam-se as portas da indústria. Mas esta nova geração que se expressa na língua franca dos muitos bairros da AML, não veio pedir licença para entrar nos espaços que antes lhes eram vedados.
Como diz Vado Más Ki Ás em Na Correria, terceira faixa do álbum Percurso (2018), “abre a porta da entrada, senão entro pelo teto”. É este o lema do rapper do, agora demolido, Bairro 6 de Maio, na Damaia.
A música Segunda a Sexta-Feira, de Sebeyks, espelha bem a experiência afrodescendente em Portugal. Em menos de três minutos, ouvimo-lo descrever o quotidiano de muitos jovens negros, como que um coming of age. Ouvimo-lo expor com sabedoria as ilusões que as ruas reservam a jovens como ele, incluindo as amizades e as relações amorosas à base de interesse. No fundo, trata-se de uma mensagem para que não coloquem a sua confiança naquilo que se pode perder com o vento. Na sociedade capitalista em que vivemos, de consumo rápido, que nos empurra para o consumo desenfreado, especialmente aos jovens, o “ter” é mais importante do que o “ser” - porque aquilo que de material se tem é visível. Nessa mesma sociedade, que instiga os jovens a possuir aquilo que se possa mostrar, existe um fosso entre aqueles que têm ou não poder de compra. Nesse sentido, é muito fácil que quem não tem poder procure formas de o adquirir, nem que seja de ilegalmente. Grande parte dos pais daqueles da geração do Sebeyks são imigrantes dos PALOP, tendo vindo para Portugal trabalhar em condições muito precárias, logo, sem poder de compra para bens materiais que não fossem prioridade. Nesta música, o apelo é para que os jovens, especialmente os afrodescendentes, não hipotequem o seu futuro para se sentirem integrados por causa daquilo que possuem. É um apelo para que não se confie nas ilusões das ruas que nos pressionam a “ter”. Infelizmente, os valores da sociedade de consumo continuam a impingir aos jovens afrodescendentes, os mais vulneráveis, a crença na ascensão social através da posse de bens materiais que perdem valor a cada vez que o vento sopra.
Da zona oriental de Lisboa, o falecido Beto Di Ghetto foi uma das vozes mais notáveis do rap crioulo. Em Nasci na Ghetto, o rapper de Chelas descreve as vivências nos guetos. Nos anos 2000’, Portugal deu início ao Programa Especial de Realojamento (PER), com intenção de atribuir alguma dignidade àqueles que viviam nos muitos bairros de lata das cidades do Porto e Lisboa. Se essas paisagens urbanas já não eram habituais nas capitais dos Estados membros da União Europeia no início do milénio, o programa de realojamento adotado por Portugal já mostrava as suas consequências em França, Reino Unido, Alemanha, etc. Este tipo de programa não era nada mais do que a guetização das comunidades já ostracizadas e em constante precariedade. Se saíam de habitações insalubres, entravam em habitações insuaves. A própria arquitetura brutalista destas habitações é uma forma de opressão aos que lá vivem. Na música Idade dos Sonhos, outro rapper de Chelas, Tchapo, que acompanha Beto Di Ghetto, faz a comparação entre a sua geração e a geração dos seus pais. Apesar de nascerem e crescerem num mundo mais evoluído, os seus pais tinham um pensamento mais positivo e esperançoso. Da Margem Sul do Tejo, Ne Jah, apesar de ser duma geração mais recente, ascendeu ao estatuto de lenda com a qualidade consistente com que nos brindou ao longo da década passada. Em Gueto (2013), juntamente com Euzy, outro rapper do grupo não formal Fidjos di Barraca (FdiB), falam da sua proximidade às raízes e em como isso lhes proporciona lucidez para distinguir aquilo que é real daquilo que não é. Também o grupo T.W.A, na música Miraflor, como o grupo KBA, em Nha Identidadi, abordam a saudade que sentem dos tempos que precederam o PER, em que viviam na antiga Pedreira dos Húngaros e nos bairros de lata de Mira Sintra.
Outra lenda do rap crioulo que teve sucesso underground, e que poderá ser desconhecido para muitos que agora cantam refrões em crioulo, é Ghoya. Crescido em várias zonas da cidade de Lisboa, Ghoya brindou-nos com clássicos como Di oto lado lei, Mama mesten, Rapazinhos militar ou Bu cre merda cu mi. Com um flow próximo das lendas do Hip Hop Hardcore, este rapper vai relatando as experiências nas ruas e os valores morais das mesmas.
No entanto, é numa entrevista para o canal de Youtube Qi News que o ouvimos falar com maturidade e clareza sobre essas experiências. Com um passado em estabelecimentos prisionais portugueses, afirma que a prisão começa nos próprios bairros; os jovens estão expostos a realidades que os empurra para maus caminhos. O programa de realojamento, não só não eliminou a precariedade, como a aumentou, ao colocar estas comunidades em guetos, cada vez mais longe do centro da cidade e, consequentemente, das tomadas de decisão.
Um desses bairros demolidos, foi o Bairro das Marianas, em Cascais. A demolição iniciou-se em 2006, sem o realojamento assegurado de algumas famílias. Apesar do apelo de ativistas e moradores contra a demolição, a Câmara de Cascais avançou, deixando famílias sem teto onde morar. Nesse clima de destruição daquilo que foi a vida de muitos imigrantes e seus filhos durante anos, o grupo Tropas di Terrenu deu-nos Marianas Sa ta Caba e Ponta di Vida.
Sem grande necessidade de traduções, as músicas falavam das vivências no bairro e de como elas iriam acompanhar os moradores para onde quer que fossem. Quando dizem que “podem tirar o preto do gueto, mas o gueto não sai do preto”, significava que o estigma da guetização os iria acompanhar, porque não podiam mudar a cor da sua pele, nem as políticas públicas de habitação do Governo chegavam para mudar as suas possibilidades de ascensão social.
Num outro momento, Primero G, Loreta, Tchola, Txapo e Nhaco Rapazinho colaboram em Fidjos Di Imigrantes, que relata exatamente o estatuto de filhos de imigrantes. Se para os imigrantes pouco qualificados vindos dos PALOP estavam reservados os trabalhos nas obras e nas limpezas, o Estado português não fez muito para que não fosse o mesmo destino o dos filhos dos imigrantes nascidos cá. Com um sistema de ensino, e uma sociedade em geral, que os desacreditava do sonho de ascensão social, uma geração cresceu com um pé cá e outro numa terra que nunca conheceram. A Lei da Nacionalidade com base em jus sanguinis ditou que os filhos de imigrantes são imigrantes como os pais. Ter 24 anos de idade e como identificação um termo de residência permanente no país onde se nasceu, como diz Txapo, é uma violência perpetuada pelo Estado português. Não podendo ser oficialmente português, nem de um país onde nunca se pôs os pés, só lhes restava jurar lealdade aos bairros onde cresciam.
Se o Alright do Kendrick Lamar é o hino nas manifestações contra a brutalidade policial nos EUA, por cá, quem mora na Cova da Moura, Amadora, sabe muito bem o que é sofrer dessa violência na pele. No mesmo ano em que o artista vencedor do Prémio Pulitzer lançou o álbum TPAB, seis jovens da Cova da Moura foram detidos por uma alegada tentativa de invasão da Esquadra de Alfragide. Depois de mais de 48h detidos sem acusações formais, os jovens são libertados num clima em que o seu bairro é novamente tema de discussão nos fóruns televisivos. A 8 de fevereiro a Inspeção-Geral da Administração Interna abre um inquérito sobre a atuação da PSP. Já em 2019, setes dos dezassete polícias envolvidos são condenados por agressões e sequestro com pensa suspensa, um é condenado a pena efetiva por ter antecedentes criminais e os restantes são absolvidos. Foi um momento de aparente mudança; em que se deu voz àqueles que estão habituados a ser alvos da brutalidade policial. No entanto, quando primeiro se noticiou o acontecimento, foi do ponto de vista dos agentes, mostrando que existe uma confiança indubitável dos media na polícia enquanto instituição. Desse mesmo bairro, em 2012 o grupo KOVA M deu-nos um clássico - Fronta. As rimas desta música foram facilmente decoradas por muitos jovens das periferias, que viam nelas um relato verídico da vida nas streets, incluindo a ansiedade de ouvir as sirenes da polícia mesmo quando não se tem nada a temer. Essa ansiedade, que acompanha todos aqueles que já tiveram um encontro violento com a polícia, é razão suficiente para que não se confie nas forças de segurança, mesmo quando os seus serviços são precisos.
Do mesmo modo que os media colaboraram com a PSP na apresentação da sua versão falsificada dos acontecimentos na Cova da Moura, e passaram impunes por isso, assim o fazem em inúmeras outras ocasiões em que envolveram comunidades racializadas. O conluio entre o a comunicação social e as entidades de segurança nacional (PSP e GNR) é essencial para o branqueamento da má conduta dos últimos, para a estigmatização das comunidades racializadas e do seu afastamento dos lugares de fala. Em 2020, o Correio da Manhã, juntamente com a PSP, associou o grupo de rap Bataclan1950 a uma onda assaltos a residências. Tudo estaria certo, se os Bataclan1950 não fossem um grupo informal que se juntou aquando dum projeto audiovisual inserido num programa de intervenção social “Dá-te ao Condado E6G”. Na peça apresentada pela CMTV, chegam mesmo de dizer que o grupo se vangloria da vida do crime nas suas músicas - que é só uma – mostrando imagens do videoclip Chelas City. Para além da difamação gratuita, os jornalistas demonstram o seu viés, porque na descrição do vídeo no Youtube, está a tradução da letra para português e em nenhum momento se fala de drogas, armas ou crimes cometidos. Ainda mais importante, é referir que nenhum dos detidos colaborou nesse projeto musical.
A morte de George Floyd inspirou-me a escrever este texto, mas aqui também se morre às mãos da polícia. Em quinze anos, mais de dez jovens negros foram mortos pelas forças de segurança pública. Elson “Kuku” Sanches, 14 anos, foi executado pela PSP em 2009. A análise forense confirmou que o disparo foi feito a menos de vinte centímetros. Nuno Manaças, “Snake”, foi morto pela polícia depois duma perseguição, sendo que nenhum dos três disparos feitos pela polícia foi direcionada para os pneus do carro. Também ele era rapper e de Chelas, amigo do falecido Beto Di Ghetto. Foi morto exatamente cinco anos antes do lançamento de TPAB, a 15 de Março de 2010. Musso Borges, 16 anos, do Bairro 6 de Maio de Baby Dog e Vado, faleceu no Hospital Amadora-Sintra. Um mês antes fora detido por um alegado furto num supermercado. Antes de ser libertado no mesmo dia, foi submetido a tortura por parte dos agentes da PSP. Dois dias depois dá entrada no Hospital, com queixas de dores de cabeça. Recebe alta, mas volta um mês depois com as mesmas dores e acaba por falecer. Estes são apenas três exemplos de como podem acabar as interações entre os agentes de segurança pública e os jovens racializados. Mesmo aquelas que não são fatais, deixam marcas que não serão esquecidas, aumentando ainda mais a desconfiança naqueles que supostamente nos devem proteger. Tal como o caso de Cláudia Simões, uma mulher negra desfigurada por um agente da PSP no início de 2020.
Se as condições em que vivem as comunidades racializadas são propícias à erupção da violência, essa violência ocorre maioritariamente entre os membros dessas mesmas comunidades. Não há verão em que um bairro não perca um dos seus num “ajuste de contas” ou “rixa entre gangues rivais”, como a comunicação social facilmente categoriza. Extrapolando para terras americanas novamente, Chance The Rapper, de Chigago, uma das cidades com mais homicídios no mundo, disse em Paranoia: “’Cause everybody dies in the summer, Wanna say your goodbyes, tell them while it’s spring”. Aqui também se fala de morte em crioulo, e não é pouco. Em Pa Nha Rapaz, Soulja, da Cova da Moura, faz uma homenagem a todos os seus rapazes falecidos. Né Jah deu-nos Descanso Eterno para nos ajudar a chorar aqueles que já perdemos. Dani G, juntamente com Nico OG e Djahmurrai, deu-nos Dispidida, sem saber que quando a música saísse seria para sua própria despedida. Dani G e Puto G, que nos haviam dado Fronta, assinando enquanto KOVA M, faleceram os dois em 2018.
Quando o segundo diz em HEY: “strela ki ta brilha más é di meu”, não poderia imaginar que seria para a sua estrela que os seus amigos e familiares olhariam em breve para o céu em busca. São muitos rappers que rimam em crioulo que se sentem obrigados a falar na morte, porque ela está presente. Incluindo aqueles que não são negros, como Zizisso ou Mota Jr. Este último assassinado em 2020, depois de ter sido raptado. Não sendo negros, usaram o crioulo para se exprimir porque é a língua franca dos lugares onde cresceram. Ser-se negro numa sociedade racista, como é a portuguesa, que não fez ainda a sua catarse do seu passado colonial, é ter de assumir a postura de um soldado, porque se está em guerra. E como em todas as guerras, os soldados são os que morrem mais. É isso que nos lembra Sebeyks em Morte de Soldado, numa homenagem a um amigo das Fontainhas falecido.
Por muito bem que nos faça estarmos atentos à experiência afroamericana, também temos de trazer para debate público a experiência afrodescendente em Portugal. Essa discussão não poderá ser feita sem os protagonistas e aqueles que a têm relatado usando a sua voz, nomeadamente os MC’s de rap crioulo. Ninguém poderá contar melhor uma história do que aquele que a viveu. Alguém que não tenha vivido nos bairros de lata ou nos prédios do PER, não poderá contar melhor do que Landim contou no refrão de Life é Si como é a vida lá; como é sentir que não há nenhum lugar para onde fugir ou esconder.
Também nos diz como às vezes tem ganas de recomeçar a sua vida, porque a que tem agora o encaminha para um precipício. Sabe-se que a experiência dos negros nos bairros da AML não mudou muito quando aquilo que abordam os rappers que lançaram as suas primeiras músicas nos últimos dois anos, não é diferente do que foi abordado há vinte anos. Muitos deles são dw segunda geração de descendentes dos PALOP nascidos cá, mas deparam-se com os mesmos problemas que os seus pais e avós. Abandono por parte do Estado, com o qual muitas vezes o único contato que têm é através da polícia, e um desprezo generalizado por parte da sociedade. Felizmente, temos quem continue a documentar a experiência afrodescendente em Portugal, mesmo sem ter a atenção merecida.