Recuperar através do corpo uma história no gerúndio que tem a ver com o presente

dança não dança. Arqueologias da nova dança em Portugal. “As danças, o século” - conversa de encerramento do programa e da exposição com curadoria de João dos Santos Martins, Ana Bigotte Vieira, Carlos Manuel Oliveira, Ana Dinger.

Auditório 3, Fundação Calouste Gulbenkian, 12 jan. 2025. 

Mais quand on n’est pas danseur, quand il serait difficile non seulement de danser, mais aussi d’expliquer le moindre pas, quand on n’a que les ressources d’une tête pour faire face aux merveilles de ses jambes, on n’a de salut que dans une sorte de philosophie, - c’est-à-dire qu’on aborde les choses de très loin dans l’espoir de faire disparaître les difficultés par l’éloignement. Il est beaucoup plus simple de construire un univers que d’expliquer comment un homme se tient debout.

 Paul Valéry, Philosophie de la danse

A defesa de uma crítica apaixonada, subjectiva, parcial, política, aberta a horizontes imponderáveis foi em Baudelaire uma praxis. Este não é um texto crítico. É um ensaio em que procuro devolver ideias apresentadas na conversa de encerramento da exposição dança não dança. Assume o mesmo. Um ensaio de aproximação apaixonado, subjectivo, parcial, político e aberto.  

A conversa foi o epílogo de um programa de dois anos desdobrado num ciclo de eventos, num livro e na exposição, que começou com o projecto Para Uma Timeline a Haver – genealogias da dança como prática artística em Portugal, em 2016. Os intervenientes João dos Santos Martins, Ana Bigotte Vieira, Carlos Manuel Oliveira, Ana Dinger, Cláudia Dias, Diana Niepce, Liliana Coutinho, Luís Guerra, Rosa Paula Rocha Pinto e Vera Mantero, cruzaram vozes que se desafiaram, complementaram, enriqueceram e interrogaram, expandido estradas de reflexão e compreensão. A conversa, espelhou, afinal, uma das posturas essenciais que, no global, o programa dança não dança se atribuiu e conseguiu concretizar.

Mudar a frase de Couteau à laia de introdução: a dança é a ciência tornada clara 

Na viragem epistemológica do pós-modernismo, vários teóricos (Jacques Rancière ou Nicolas Bourriaud são nomes evidentes) esclareceram que os processos de criação incorporam interpretação e reflexão e que as obras são zonas não finalizadas de encontro tanto de experiências, como de diálogos e raciocínios. No nosso século tornou-se uma evidência que as experiências, práticas e propostas dos próprios criadores fazem acontecer investigação e conhecimento artísticos na medida em que originam visões e pensamentos inovadores e complementares aos paradigmas racionais das ciências. Por outras palavras, acrescentam princípios singulares de pesquisa e compreensão aos quadros normativos da racionalidade científica, mais criativos, intuitivos, sensoriais, subjectivos, emocionais, corporais, holísticos, interdisciplinares, fragmentados, mutáveis, ampliáveis, autocríticos, desdobráveis em permanente reconstrução alargada. 

A investigação artística feita por artistas comporta, ao mesmo tempo, uma vertente de dinamização e democratização na medida em que abarca planos de visibilidade potencialmente com maior ampliação e heterogeneidade através da interacção com os públicos em espectáculos e exposições. 

Paulo Filipe Monteiro (1989) prenunciou esta discussão no nosso país ao reflectir sobre a inovação e legitimidade da incorporação de componentes criativos e estéticos nas narrativas da ciência enquanto vias necessárias no reequacionamento e expansão de outros parâmetros científicos. Nathalie Heinich (1998) é uma autora a mencionar neste contexto de pensamento por perfilhar que na evolução da sociologia da arte para um conhecimento mais heurístico, pragmático e flexível dever-se-iam combinar com discursos e experiências do mundo da arte e do trabalho concreto dos artistas. Clarificou que os discursos e experiências da criação geram epistemologias diversas que permitem conduzir a outros tipos de abordagens, teorizações, investigações e análises, de validade e amplitude expandidas. 

fotos de Ricardo Santosfotos de Ricardo Santos

Vão no mesmo sentido as conclusões de Christopher Frayling (1993) de que a prática da arte enraíza um género específico de investigação e conhecimento independente, cuja importância é substantiva ao proporcionar saberes incomuns, inéditos, inexplorados e até improváveis de coligir com as grelhas científicas e teorizações comuns. O mesmo é encontrado nas formulações de Henk Borgdorff (2011) de como os saberes académicos têm a ganhar com o modo de os artistas promoverem parâmetros cognitivos alternativos e paralelos, através da criação, da prática e da reflexão. Fragmentados, menos lineares, não necessariamente verbais e, em muitos casos, centrados sobretudo nos processos e menos nos resultados conclusivos, tais parâmetros aprofundam uma leitura da ambiguidade e da complexidade inerentes à produção e à experiência estética e artística, conferindo-lhes significado, criando ideias distintas, abrindo à transformação. 

Poder-se-ia mencionar outros autores. Tanto no mundo académico como nos territórios da criação contemporânea, aceitou-se e reiterou-se como emergem das obras dos criadores teorias de experimentação criativa, intuitiva e corporal. A explosão de laboratórios de criadores e artistas é um sinal cabal.  

Mas, no fundo, nada disto é completamente recente. Desde a modernidade, artistas visuais e performativos puseram em prática a óptica do pensamento no processo criativo. Assumiram e sustentaram como no corpo e na realização da obra se englobam e implicam dimensões de uma cognição intuitiva e física. Com regularidade, e em equivalência com as práticas de criação, vários artistas das primeiras vanguardas e das segundas vanguardas até à actualidade delinearam discursos e debates críticos e ideológicos em programas e manifestos colectivos, reflectindo sobre a arte e sobre a sociedade e propondo transformações reais no seu seio. 

Jean Cocteau dizia que a arte era a ciência tornada clara. Quanto à dança em específico, é lapidar o que escreveu David Kirsh (2012): «um dançarino cria uma versão parcial de uma frase, presta-lhe atenção enquanto a cria e, devido a processos como a preparação e a projecção, é capaz de compreender algo mais profundo sobre a estrutura da frase do que apenas através da imaginação». 

Qual é, pois, a diferença no momento actual? Com constante progressão e expansão, firmou-se em definitivo o paradigma de promover e sustentar o cruzamento e a convergência de perspectivas teóricas científicas e perspectivas artísticas de teorização e conhecimento, criando quadros partilháveis de questionamentos, com ganhos mútuos. Parafraseando André Lepecki (2023), a noção que a dança e a «teoria» estão totalmente envolvidas ficou consolidada. Lepecki postula uma teoria que seja irradiada da vertente virtual e efectiva de cada obra e proposta particulares. Em concomitância, confirma que a dança reforça o espaço mental da teoria e, de modo absoluto, ela mesma vincula ideias e estimula co-teorizações sobre si própria e sobre o mundo.

Todas estas premissas ressoam no programa dança não dança. Arqueologias da nova dança em Portugal. O programa foi pensado e concretizado nesta filiação. De antemão, dança não dança, VII edição do projecto de investigação Para Uma Timeline a haver, iniciado em 2016, juntou os contributos multidisciplinares de João dos Santos Martins – coreógrafo, investigador, curador, editor e dançarino, Ana Bigotte Vieira – historiadora, curadora e investigadora em Estudos de Performance, Carlos Manuel Oliveira – coreógrafo, curador e investigador e Ana Dinger – com um percurso de coinvestigação e curadoria em dança, artes visuais, história e teoria de arte. Outras das premissas que se associaram a esta, igualmente estruturantes, foram clarificadas na exposição e aprofundadas teoricamente no catálogo editado.

Na brochura do ciclo de Re-performances, Filmes e Conversas que antecedeu a exposição pode ler-se: «Transmitir o quê, como, e a quem? Como se transmite a dança e o movimento? Como permanece o que é percebido, e mesmo catalogado, como intangível e imaterial? De que forma se mantém (ou não) um repertório, ou o conhecimento do passado em artes performativas em geral, e em dança, em particular? De que modo a sua suposta efemeridade contribui para uma iliteracia em relação à dança como forma específica de arte?».

Figurou como problematização obrigatória a do estudo e da própria história da dança. Mais uma vez os curadores explicitam: «historiograficamente debatemo-nos com a vontade simultânea de dar a ver periodizações sem perder a criação de uma rede de sobreposições, e com a tentação warburgiana da criação de pranchas de imagens fora da história, para dar a ler eventuais ressonâncias formais». O debate é tanto mais premente quanto em Portugal está longe de se ter formado um corpo disciplinar e um campo de conhecimento independente sobre a história da dança, ou mesmo das artes performativas.

foto de Ana Quaresma foto de Ana Quaresma

Ao reformularem a historiografia, as epistemologias pós-modernistas trouxeram a aceitação da avaliação crítica e das interpretações fragmentárias e incompletas do passado, questionando o papel do investigador e as metodologias utilizadas, enquanto enlaçavam inferências abertas e subjectivas. Nos seus componentes de instabilidade, criatividade, abertura e reinterpretação, a dança encontra neste modelo de investigação e de conhecimento uma génese essencial. Mas tal ângulo de conhecimento não pode ser alcançado sem um pilar de trabalho consistente que recupere, categorize e conserve fontes e materiais até recentemente dispersos, em falta e desconhecidos. No meio académico, gerou-se um aumento exponencial do interesse relativo à preservação das artes performativas nos últimos anos. Investigadores em vários campos disciplinares vincaram a exigência de esmiuçar e consubstanciar arquivos e registos, materiais e digitais, das expressões artísticas fugazes, bem como de conceber métodos criativos na apreensão, preservação e acessibilidade desses arquivos. A título de sugestão, vejam-se a este respeito as propostas inferidas de Matthew Reason (2006), Sarah Jones, Daisy Abbott e Seamuss Ross (2009) ou Hetty Blades e Emma Meehan (2021). 

dança não dança foi um passo incisivo para completar essa base indispensável de estudo. Ampliou horizontes no sentido de nutrir circunstâncias para fundar legitimidades de um possível novo campo académico. A reavaliação de métodos e técnicas de pesquisa e análise, sem a qual é incerto sustentar heuristicamente a história da dança na qualidade de tema de investigação proeminente a crescer e progredir, edificou o projecto dos curadores numa estratégia expressa. O projecto adoptou a sua não-linearidade, a sua hibridez, a sua instabilidade e incorporou traços de pesquisa em que o objectos de estudo como o teatro, a performance, as artes visuais, a música e outros domínios criativos foram convocados e colaboraram para a proposta assumida.

O artigo escrito por Rui Eduardo Paes (2024) «Dança Não Dança? Pois dancemos…» proporciona proporciona uma síntese importante da sua leitura da exposição.

A pergunta complicada que não se devia fazer e tropeçar nas coisas que vêm ao nosso encontro

Tendo começado por declarar ter sentido desde cedo a necessidade de tornar o mais possível presente e compreender a história onde se inscreveu o seu trabalho no momento específico da dança em Portugal, Vera Mantero – a moderar a conversa –, colocou em cima da mesa a «pergunta complicada» sobre em que ponto, então, está agora a dança portuguesa. «Pergunta complicada» com a pertinência de ser genérica e abrangente para facultar direcções plurais de reflexão aos intervenientes, tanto do lado da investigação teórica da dança, como do lado da prática da dança como «teoria». 

Globalmente assumida na conversa esteve a condição de, acima do mais, se ensaiar em voz alta possíveis aproximações a pontos de vista a partir da vivência pessoal. Combinadas em puzzle, essas aproximações compuseram leituras substantivas para prosseguir o conhecimento da dança no nosso país, pretendendo suscitar mais interrogações e dúvidas do que respostas. 

Foi essencial Ana Bigotte Vieira esclarecer de novo como o processo curatorial se definiu enquanto exercício contínuo e fluido. Uma vez que a equipa admitiu ser tão impossível como incorrecto e indesejável propor uma história unificada e conclusiva da dança, afastou de imediato qualquer desígnio de elaborar uma narrativa absolutizante e categórica. Em contrapartida, adoptou que nas narrativas da dança estão comportadas múltiplas facetas, muitas histórias entrelaçadas e compostas por uma série de fragmentos e questões. Assim sendo, a moldura da pesquisa fez-se através da descoberta de linhas e genealogias nacionais (e internacionais) e seguindo uma metodologia de «multiperspectivismo», com vista a descobrir vias de leitura e interpretação inéditas. Associado à recolha e tratamento de documentos e materiais de arquivo, os curadores empreenderam o levantamento de relatos em primeira mão e histórias orais recuperando memórias de intervenientes, instituições e grupos em diferentes momentos. Segundo Ana Bigotte, «encontrámos as coisas tanto quanto as coisas nos encontraram». Nessa recolha de múltiplos episódios, figuras, pessoas, eventos e acontecimentos, encontraram constelações no território da história da dança que ainda não tinham sido constatadas, que puderam ser analisadas na sua interacção mútua. A colecção e o encadeamento cumulativo de peças, experiências e questões, iniciado com as primeiras pesquisas que arrancaram em 2016, centraram-se numa metodologia que se fez numa justaposição sincrónica de fontes e na qual os investigadores e os objectos interagiram em dois sentidos, promovendo o irromper de novos influxos à investigação. 

João dos Santos Martins reforçou que a constituição dos novos saberes sobre a dança nacional teve um alcance e uma relevância cruciais, em concreto ao dissipar e desmontar os condicionalismos restritivos resultante do seu anterior conhecimento insipiente. Quando começou a dançar foi, na verdade, a estranheza de não entender completamente os lugares e razões originários das linguagens e movimentos coreográficos que o conduziu à curiosidade de investigar e de reapropriar as estéticas da dança e a relação do seu corpo com elas. Também confidenciou que essa cascata vasta e emaranhada de novos saberes lhe trouxe, num certo período, o sentimento de interferir e dificultar, em certa medida, a liberdade de trabalhar em novas direcções coreográficas. Não obstante, acabou a reafirmar como acredita cada vez mais ser imprescindível a recuperação do conhecimento da história da dança e o diálogo com as propostas das gerações anteriores para os novos coreógrafos e dançarinos progredirem artisticamente, originarem novas narrativas na dança e inaugurarem novos panoramas de criação. 

Coincidiu justamente com esta linha de pensamento o ciclo das «(Re)-preformances» (com filmes e conversas) que compôs uma das vertentes do dança não dança: ponderar, aprofundar e actualizar as interconectividades do passado, do presente e do futuro, as suas proximidades e distâncias. Se nas artes performativas e na dança é crucial pensar traços marcantes como a efemeridade, a manifestação que pode nunca mais repetir, a «sobrevivência», nenhuma intenção de mero regresso e recordação do passado esteve subjacente à finalidade do ciclo. Na sua concepção houve antes o interesse de incentivar o exercício experimental entre as novas gerações através das reactualizações e reinterpretações da dança anterior, inspirando itinerários de ideação e edificação de criatividades técnicas, estéticas, temporais e espaciais paralelas e inéditas. As «(Re)performances» proporcionaram circunstâncias ímpares de recuperar, reencenar e dar ressignificação à história da dança, corporizando, em simultâneo, experiências originais.

A emoção da bailarina que assume a corda bamba

Concordou-se, a várias vozes, ser pouco evidente perceber em que ponto exacto está hoje a dança e a história da dança. No entanto, duas constatações adquiriram um sentido unanime. 

Uma primeira remeteu para ter sido possível conseguir reverter a prolongada sensação de muita gente que a história da dança aconteceu noutros lugares que não no nosso país e, em consequência, alterar a frustração do sentimento de «não pertencer a lugar nenhum». Mesmo se mais pontual ou frágil em comparação com histórias e práticas noutros países, a dança passou-se indiscutivelmente no plano nacional. A timeline interactiva de arqueologia e história que os curadores elaboraram tornou-o explícito, alinhando em conjunto vertentes sociais, culturais e políticas do contexto português, entrelaçadas com contextos internacionais. 

A segunda foi relativa ao desejo comum de evoluir criticamente na investigação adjunta entre quem vem mais da teoria e quem vem mais da prática de criação. Trata-se de um procedimento significante para ponderar concretizações e tempos vindoiros da dança, que irão originar diferentes perguntas, reflexões, escutas, olhares e corpos dançantes.  

Quando mencionou a mais jovem geração da dança surgida cerca de 2010, Diana Niepce confiou que, sendo sempre assustador projectar o lugar daqui para a frente, é auspicioso o facto de existir uma nova comunidade forte de criadores que abraçaram uma estratégia equivalente de arriscar no investimento, na mudança, no questionamento. Pôr em risco, como concluiu, é estar na circunstância da «bailarina na corda bamba», que pode cair, mas prossegue com determinação, «e isso é uma coisa que é me faz emocionar».

Em tom convergente, juntaram-se na conversa outros temas decisivos para a compreensão sobre o estado actual da prática da dança e do conhecimento da dança. Lembro alguns.

Falou-se dos desafios colocados pelos arquivos das artes performáticas como a dança, cada vez mais analisados em termos internacionais, e de ser imperioso instituir e legitimar parâmetros transformadores da noção de arquivo e da prática arquivista que permitam inventariar, registar, caracterizar, trabalhar, preservar e acolher a singularidade do que se pode designar a «ontologia» específica da dança. Entre outras, a este respeito são a consultar as teorizações de Gunhild Borggreen e Rune Gade (2013). Para todos efeitos, num plano epistemológico estrutural e sistémico, dever-se-á solidificar um pensamento experimental do arquivo que comporte a redefinição crítica dos conceitos habituais de história e memória.  Só a sua redefinição convertida e alargada permitirá estender e desdobrar áreas de problematização baseadas em ferramentas de actuação, intervenção e actualização da história da dança. O caminho é revestir os alicerces para a dança em si mesma ser compilada enquanto «saber» e, conjuntamente, ser reimaginada de maneiras inesperadas. 

Dois outros enunciados incontornáveis decorreram do que foi dito. Um é da intersecção entre a dança e a política. Solidificar cenários em que a dança possa continuar a se expressar como um instrumento político e faça emergir espaços de crítica e de resistência, nos quais futuros se projectam e concretizam, é uma proposta e uma vontade tanto mais urgente quanto nas sociedades de hoje se enfrenta o ressurgimento ideológico e político de directrizes onde a democracia é posta em causa. Várias intervenções reiteraram o valor, o poder e o efeito que o «contar histórias» tem, isto é, como, num sentido literal e figurado, o «era uma vez» institui um acto de contestação e reivindicação de outros cenários da dança e da sociedade.

O «era uma vez» deve ser encarado, ao mesmo tempo, como dispositivo indiscutível para a reconstrução das convencionais histórias que na dança ignoraram, marginalizaram e recusaram certos corpos, práticas e geografias. 

foto de Ana Bigotte Vieirafoto de Ana Bigotte Vieira

Enquanto ditame social, ético e artístico, há que prosseguir, na lógica das disability arts, a inclusão de artistas com deficiências. É insuficiente ponderar apenas o objectivo da sua representatividade ou da sua «legitimidade». As estratégias e respostas passam, acima de tudo, por eleger a exploração das múltiplas e inéditas possibilidades de linguagens e mudanças estéticas que os corpos com deficiências trazem para os caminhos da dança. 

Neste ponto cabem, do mesmo modo, as narrativas que desafiavam códigos cristalizados do «erudito» e de «alta cultura. É de enorme actualidade reconfigurar e reinterpretar hierarquias tradicionais que contaminaram as definições do que a dança seria, bem como criar condições de dignificar e aprender com práticas durante muito tempo tidas como menos «eruditas» e menores: as das danças designadas populares, as danças etnográficas de outras origens geográficas, as expressões da dança com frequência desvalorizadas como comerciais. As trajectórias de desenvolvimento da dança exigem reconhecer o protagonismo e o contributo de diferentes narrativas e corpos da dança menos próximos dos antigos e limitativos cânones da dança ocidental moderna e contemporânea. Dito de outra forma, há que interiorizar que, na contemporaneidade, a dança tem de ser encarada como um território onde cabe uma vasta gama de coreografias de todo o mundo e de todas as culturas sem se assumir qualquer hierarquização e no qual coreógrafos e dançarinos, com vivências e origens que podem ser muito diversas, desenvolvem ideias e obras diferenciadas acerca do movimento e do corpo.

Como era esperável, na conversa, ressurgiu o constante problema dos diversos condicionalismos estruturais e institucionais que criadores, coreógrafos e dançarinos continuam a ter de enfrentar num país em que as políticas estatais para a cultura e a arte permanecem extremamente pontuais, frágeis, sem traduzirem um enquadramento sólido e evolutivo. 

É inegável o forte crescimento da cena artística portuguesa com a ascensão de artistas nacionais em toda a Europa, espelhando a multiplicação de protagonistas, propostas e vozes e expresso numa evidente diversidade criativa, quer quantitativa, quer qualitativa. A mais recente comunidade da dança mostra um notável dinamismo, tendo interiorizado uma visão mais holística da dança. A geração da nova dança portuguesa que emergiu durante os anos 1990, encontrou no país uma conjuntura particular em que muitos agentes – programadores, críticos, festivais – foram responsáveis por promover a grande visibilidade que então conseguiu. De qualquer forma, foi quase consensual que, em certos facetas, houve para a actual geração oportunidades e linguagens de criação mais amplas do que as existentes nos anos de 1990. Todavia, permanecem obstáculos concretos as limitações do financiamento público, as condições de trabalho precárias, os condicionalismos na formação e na circulação das obras. 

Neste panorama considerou-se a importância dos próprios criadores desempenharem um papel individual autónomo, concebendo iniciativas de carácter independente e alternativo das entidades e mediações oficiais. Por outras palavras, a comunidade da dança teria benefícios claros em tomar nas próprias mãos a ampliação de possibilidades, tornando-se agente activo de dinamização em redes paralelas de produção e circulação do seu trabalho, com a constituição de novos espaços e eventos de partilha entre criadores, de novas escolas, de laboratórios em colectivos. Um investimento na dança que dará certamente novos frutos será, em concomitância, reforçar estratégias de descentralização, que permitam outro tipo de ligação com públicos que ainda não o são, retirando apenas do círculo restrito das elites a recepção que a dança tem sobretudo ocupado. 

*

São devolvidos aqui apenas os momentos que, entre vários outros, retive da conversa. O interesse e a importância do muito que foi falado mereciam ser completados pela escrita de outras pessoas, das muitas pessoas que se juntaram naquele Auditório 3, num fim de dia de domingo. Haveria bastante mais a dizer para abarcar a amplitude das ideias trazidas neste encerramento do dança não dança, a que foi um privilégio assistir. Assumidas como apaixonadas, subjectivas, parciais, políticas e abertas, proponho estas linhas como reptos para outros contributos.  

Referências

Adshead-Lansdale, Janet and June Layson (Eds.). 1983. Dance History. An Introduction, London, Routledge, 1994. 

Blades, Hetty & Emma Meehan (Eds). 2018. Performing Process. Sharing dance and Choreographic practice. Bristol, Intellect. 

Borgdorff, Henk. 2011. «The Production of Knowledge in Artistic Research». In M. Biggs and H. Karlsson (Eds.), The Routledge Companion to Research in the Arts. London, Routledge, 44–63.

Borggreen, Gunhild and Rune Gade. 2013. Performing Archives/ Archives of Performance. University of Copenhagen, Museum Tusculanum Press.

Frayling, Christopher. 1993. «Research in Art and Design». Royal College of Art Research Papers, 1(1), 1–5.

Heinich, Nathalie. 1998. Ce que l’art fait à la sociologie. Paris, Les Éditions de Minuit.

Jones, Sarah, Daisy Abbott, Seamuss Ross. 2009.  «Redefining the performing arts archive»

Archival Science, 9(3-4), 165-171.

Kirsh, David. 2012. «Thinking with the Body». Avant: Trends in Interdisciplinary Studies, 3In, 176-194.

Lepecki, André. 2023. Esgotar a dança. A performance e a política do movimento. Lisboa, Edições do Saguão. 

Monteiro, Paulo Filipe. 1989. «A Dimensão Dramática, Literária e Visual do Trabalho Científico: Alguns Exemplos». Revista Sociologia, 7, 75-94.

Paes, Rui Eduardo. 2024. «Dança Não Dança? Pois dancemos…». Buala, 10 de Dezembro. https://www.buala.org/pt/vou-la-visitar/danca-nao-danca-pois-dancemos

Reason, Matthew (2006). Documentation, Disappearance and the Representation of Live Performance. Palgrave Macmillan.

por Vanda Gorjão
Palcos | 11 Fevereiro 2025 | dança não dança, exposição, nova dança, timeline