Tchiloli de S.Tomé ou Carlos Magno em África

Introdução

Até às respectivas independências, não se conheciam nos demais países africanos de língua portuguesa exemplos de teatro local, diferentemente de São Tomé e Príncipe, em que representações teatrais similares foram encontradas na Ilha do Príncipe, tal como o Auto de Floripes, ali representado anualmente e conhecido entre os santomenses como “São Lourenço” (de matriz europeia como o Tchiloli), e o Danço Congo, entre os Angolares, de matriz africana.

As tentativas de classificação das produções dramáticas africanas deparam-se usualmente com dificuldades de ordem epistemológica, fruto do reduzido número de especialistas africanos. Assim sendo, recorreu-se a Corvin (2001, p.37) que considera Teatro Tradicional Africano os espectáculos inspirados nas formas culturais tradicionais em que se combina a música e a dança com o enredo de uma peça.

Nesta óptica, pode-se enquadrar o Tchiloli naquela categoria, apesar de ser de temática europeia. Dir-se-ia que, por isso, tem um carácter exemplar, representando a difícil harmonização entre duas culturas (africana e europeia) que se encontraram por imperativos históricos, mas cujos sujeitos africanos conseguiram ultrapassar o vazio cultural resultante de um encontro catastrófico, reinventando os empréstimos europeus e criando uma cultura própria mas universal.


Enquadramento histórico

Os santomenses são africanos de origem bantu. A língua oficial é o português, apesar da maioria da população falar o crioulo. O povoamento das duas ilhas que constituem o país foi feito não só com escravos oriundos da costa ocidental africana, com características físicas, culturais e linguísticas muito diversas, mas também com europeus, com destaque para os colonos oriundos da Ilha da Madeira, que se misturaram, resultando daí uma população com um índice elevado de mestiçagem.

Mata (1993) considera que a colonização do Arquipélago de S. Tomé e Príncipe passou por três ciclos, integrados em dois tipos de colonização distintos. Esta divisão não tem apenas valor económico, mas também, e sobretudo, sociocultural, pois dela depende a compreensão do complexo sociológico e antropocultural de São Tomé e Príncipe.

A primeira colonização

Englobou dois ciclos. O primeiro (iniciado com a ocupação) termina nos fins do séc. XVI com a decadência do comércio de açúcar e o florescimento do tráfico de escravos.

Durante este período o território santomense foi ocupado por degredados e crianças judias arrancadas dos seus próprios pais e compulsivamente baptizadas (Mata, 1993). A mestiçagem que se seguiu formou uma classe sócio-cultural muito própria. Citando Mata (1993, p.), “os mestiços participavam dos dois núcleos culturais, decorrentes da formação superestrutural da sociedade crioula santomense, num processo que deve ser analisado no contexto da relação filho da terra (proprietário de terras e escravos)/trabalho agrícola (executado por escravos)”. Uma das consequências posteriores desta situação será a tendência aristocratizante já referida, responsável pela atitude do nativo santomense (interpretada como preguiça inata) que, mesmo espoliado, recusava o trabalho agrícola contratado.


Segunda colonização

O séc. XIX é o da segunda colonização, que se caracteriza pela implementação e consolidação das estruturas coloniais, pela introdução de novos produtos agrícolas (o café e o cacau) e que se baseia na contratação de serviçais.

No início do séc. XX S. Tomé chega a ser o primeiro produtor mundial deste produto. As roças, propriedade da elite nativa, começam a ser cobiçadas e tem início um processo de expropriação das terras que, apesar da resistência dos proprietários nativos, culmina com a vitória dos colonos. A roça passa a ser uma instituição que, tal como o engenho no século XVI, não é apenas uma unidade agrícola económica, mas também sócio-cultural.
A introdução de novas culturas e a concentração da propriedade rural que se seguiu ocasionaram uma reestruturação da sociedade ao longo de todo o séc. XIX e início do séc. XX, tendo no topo uma alta burguesia composta pelos grandes “roceiros” e, na base os assalariados (artífices e trabalhadores nativos em geral) e os contratados (mão-de-obra importada de Moçambique, Angola e Cabo Verde para trabalhar nas roças, sujeita a maus tratos e condições de trabalho desumanas).

O séc. XIX também é o período da segunda miscigenação, caracterizada pela diminuição do elemento português e aumento da contribuição africana, que se vai impondo na estruturação do país, provocando grandes mudanças no processo aculturativo do país. Na época, o santomense nativo era considerado português, diferentemente dos habitantes de Angola, Moçambique e Guiné que tinham de demonstrar determinado “grau de assimilação” para aceder à cidadania, tal como conhecer (falar e ler) a língua portuguesa e ter usos e costumes de vida “semelhantes” aos dos portugueses.

Universalidade do Tchiloli

Não deixa de ser surpreendente encontrar numa ilha do Atlântico uma tradição cultural que se relaciona com as de Portugal e França, de forma explícita, e as de Espanha e Itália, de forma implícita.

Tchiloli é o nome crioulo da Tragédia do Marquês de Mântua e do Imperador Carlos Magno (escrita no séc. XVI por Baltazar Dias, poeta cego madeirense e também publicada no Romanceiro (XXXVII) de Almeida Garrett), um produto de inspiração medieval recriado pelas populações da Ilha de São Tomé.

Esta manifestação tem sido, igualmente, objecto de estudo pela etnocenóloga Françoise Gründ, que editou recentemente um livro sobre o assunto. A França tem demonstrado um grande interesse por este espectáculo tradicional, sobretudo por considerar surpreendente encontrar numa ilha africana uma peça popular do ciclo carolíngio, já desaparecido na Europa.

Nos nossos dias, a pujança do Tchiloli santomense está bem patente, até pela forma como se soube moldar ao clima sócio-artístico peculiar. Se, tradicionalmente, a sua representação era anual, hoje estão presentes nas grandes festas nacionais, nos meios de informação e até no estrangeiro.

Em 1973, segundo Wallenstein (1974), existiam nove grupos de Tchiloli, estando activos apenas três: Formiguinha da Boa Morte, Florinda de Caixão Grande e Riboque. Os grupos que representam este auto têm o nome de Tragédia.

Actualmente, existem uma dezena de grupos, embora de qualidade desigual.

 

Empréstimos europeus

Os empréstimos europeus mais relevantes relacionam-se com a língua e o assunto.
O assunto é ocidental, mas seria muito difícil apresentar-se um outro no contexto colonial, já que a maior parte das histórias conhecidas eram de Lisboa ou de Coimbra, consequência da lógica da assimilação. Deve ser valorizada, deste modo, a escolha do tema da justiça que é universal e que parece ter sido importante para a sobrevivência do Auto.

Com efeito, o Tchiloli debruça-se sobre o conceito de uma justiça régia que pune a morte de Valdevinos às mãos de D.Carloto que, por sua vez, é condenado à morte e executado por ordem do seu próprio pai, o imperador Carlos Magno. Na verdade, a peça leva-nos a inferir que o determinante da sua longevidade não foi o ciclo carolíngio mas o tema intemporal da justiça.

A Recriação africana

O Tchiloli é uma forma mista de cerimónia, teatro, música e dança característica de S. Tomé. Pese embora os empréstimos europeus, são evidentes os traços ritualistas africanos, que se não forem reconhecidos e interpretados o transformam numa enfadonha mascarada carnavalesca. Para evitar tal rejeição, o teatro africano tem sido objecto de diversos estudos, visando determinar a sua essência. No entanto, os resultados não têm sido animadores. Se há unanimidade no que concerne à existência de um teatro africano, o mesmo parece não acontecer com a identificação dos seus traços peculiares. Carentes de formas específicas, uns limitam-se a fazer uma adaptação dos estudos teatrais europeus à realidade africana; outros, dominados pela “nostalgia da origem”, defendem a identificação do teatro africano com as cerimónias tradicionais.
O Tchiloli é um caso que deveria ser considerado emblemático. Constitui um exemplo da pujança do imaginário popular, conseguindo encontrar uma solução em que, sem renegar o seu património cultural, se abriu a outros patrimónios e criou um espectáculo de raiz africana.

Africanidade do Tchiloli 

A nível das Artes, quando se fala de africanidade, de uma forma geral, limitamo-nos a enumerar ou a apresentar particularidades de certas manifestações, tal como a coreografia, a gestualidade, etc, não se analisando a concepção do mundo subjacente que as determina e que permite a compreensão da dinâmica interna inerente a todo o processo. Assim, as criações africanas, separadas da vida, tornam-se produtos exóticos folclóricos, pouco esclarecedores sobre o que significa”ser de raiz africana”, como acontece também nalgumas análises sobre o Tchiloli.

O etnógrafo português Tomaz Ribas (1967) relaciona o Tchiloli com as expressões coreográficas e paradigmáticas de matriz africana, importada com o tráfego de escravos da costa ocidental, citando designadamente o danço-congo. Assim, a africanidade manifesta-se na música, coreografia, canto, indumentária, acompanhamento musical, magia das danças e nas largas cenas mimadas e pantomímicas. Se estes dados são importantes, não invalidam que se analise algumas características comuns aos espectáculos africanos modernos, resultantes da dessacralização das cerimónias tradicionais e da busca de uma linha de evolução, como se pode observar em Sang’Amin (1989).


Características do Tchiloli

Os traços de africanidade, de uma forma mais ou menos evidente, e salvaguardando algumas excepções ou adaptações, podem ser encontrados no Tchiloli quando se analisam os resultados das investigações de diferentes investigadores, entre os quais Carlos Wallenstein (1973) e a antropóloga Françoise Gründ (1990).

Começando pela periodicidade, a sua importância em termos de imaginário africano é atestada pelo facto do espectáculo não ser apresentado em temporadas regulares, mas ter uma dimensão cerimonial e ser representado apenas em festas religiosas populares ou eventos públicos. É longo, durando cerca de cinco/seis horas. Enquanto é representado as pessoas movimentam-se de um lado para o outro. Por vezes é interrompido para que os intérpretes possam conversar com os amigos ou efectuar algumas refeições. É como se, no espectáculo, estivessem inseridos dois teatros, localizados face a face mas funcionando como unidades independentes.

O seu espaço é global e o espectador/fronteira está também integrado no espectáculo, permanecendo de pé. As cadeiras destinam-se aos convidados vindos de fora ou a personalidades iminentes da vila.

Utilizam-se, na representação, máscaras de forma oval, mais pequenas que o rosto, feitas de rede de mosquiteiro modelada, pintadas de branco e onde estão desenhados os olhos e a boca. As personagens que as usam só as podem tirar depois do pôr-do-sol.
O guarda-roupa foi recuperado ao longo do tempo, apresentando um anacronismo interessante. Por vezes é confeccionado pelos próprios actores.
Estes são camponeses-pescadores que interpretam vitaliciamente as mesmas personagens, sendo os papéis transmitidos de geração em geração. Os actores podem agir de acordo com os seus sentimentos, desde que não prejudiquem o espectáculo. Preocupam-se com a permanente adaptação às situações, chegando a contradizer-se ou a adaptar-se às circunstâncias, mesmo que fortuitas. Os actores improvisam, dentro das suas limitações, pugnando pela maior eficácia nas suas performances. O público retoma, imita, comenta em voz alta o que se passa, não numa perspectiva estético-crítica mas integrando acontecimentos sociais e políticos da vida do país.

A música é fundamental no espectáculo. Permite e auxilia as danças, as cenas mimadas, sublinha e propicia a acção e serve os movimentos das personagens, A orquestra é formada por flautas de bambu, tambores, bombos e vários sucalos (instrumento nativo constituído por um cesto com sementes no interior).

 

Simbolismo

Aparentemente de grande ingenuidade popular, o Tchiloli constitui uma forma de resistência cultural inteligentemente dissimulada. 

Para a antropóloga Grund (1990), esta é uma cerimónia mágica que possui vários níveis de codificação. Na sua opinião, Carlos Magno simboliza o rei de Portugal, distante, tolerado e quase sempre considerado como um pai justo pelos mestiços de São Tomé, filhos da terra. O filho de Carlos Magno, D.Carloto, é o governador português da ilha, uma espécie de ditador cínico, homem cruel e aproveitador, detestado pela população local, que sofria diariamente com o seu comportamento. O Marquês de Mântua é, na realidade, o chefe dos “filhos da terra” (dos novos habitantes da Ilha saídos da união dos brancos com as escravas), que traz a primeira contribuição para a independência, exigindo e obtendo justiça. Juntamente com os seus acompanhantes, representam o papel das famílias mestiças, de alta linhagem, elevadas ao nível dos patrões das plantações e que defendem os interesses locais.
A um outro nível, a representação cobre perfeitamente uma cerimónia de óbito num país africano. De facto, tem um aspecto religioso intrínseco, constituindo um simulacro de cerimónias fúnebres. A única maneira de existir para os nativos era continuar a honrar os seus antepassados, mas o sistema colonial não permitia muitas expressões africanas. Os ritos de possessão amedrontavam os colonos que, por isso, tiveram a preocupação de relegar os túmulos para fora das casas, nos cemitérios. Havia, perante este quadro, necessidade de manter os laços com os antepassados de uma forma encoberta. Assim, é como se o grupo do Tchiloli se substituísse aos guardiães dos ritos funerários.
Por vezes há o apelo aos antepassados, com sons e vozes específicas (a voz nasalada de um dos justiceiros recorda a voz do além), reviravoltas bruscas. Todas as entradas e saídas dos actores são codificadas, como se faz nos santuários em África e até a gestualidade inspirada nas danças europeias apresenta algumas particularidades que a integra no universo africano.
O Tchiloli, como meio de expressão artística, apresenta um interesse suplementar. Criou uma estética baseada em materiais de recuperação: restos de fitas, estofos, papéis de chocolate, os espelhos, os dourados, as luvas caseiras, os óculos, esculturas policromadas dos século passado, telefones e máquinas de escrever. Para Gründ, todo este material, renovado em permanência, toma o valor simbólico de luxo com uma intensidade tão gritante, na medida em que os materiais são pobres. Os objectos sacralizam-se porque os utilizadores carregam-nos de um conteúdo forte e indiscutível (aos olhos dos actores como aos olhos do público). Eles são símbolos do poder, precocemente manifestados nos contactos com os estrangeiros, com os quais os nativos trocavam produtos minerais ou agrícolas por produtos industrializados, melhor dizendo quinquilharias que utilizavam como símbolos de poder nas suas comunidades (caso dos espelhos, das missangas entre outros).
O poder militar está simbolizado nos uniformes militares e nas luvas brancas; o poder da Administração nos fatos, telefone, máquina de escrever, óculos, pasta; o poder do saber nas fitas dos estudantes; todos estes acessórios actuais mostram que a problemática do Tchiloli é vivida no mundo de hoje.


Conclusão         

O Tchiloli é uma história de sangue e de justiça de que os nativos se apropriam, para fazer dela um objecto de reivindicação contra a opressão, mas também para reapropriar dos laços com os antepassados africanos. É assim que, por trás do espectáculo rico em colorido, se esconde uma invocação dos antepassados, cujo culto era interdito pelo sistema colonial. Sobre a derrota emerge, pois, um território identitário de que os primeiros actores se apropriam para poderem continuar a existir.
Carlos Vaz (1978) afirma que o teatro Tchiloli constitui hoje, na ilha de S.Tomé, uma forma de expressão popular, forte e viva, uma espécie de modelo de dramaturgia contemporânea, cuja eficácia permanece intacta.       
As inúmeras análises e estudos feitos ao Tchiloli, em meu entender, são bem elucidativas da importância do encontro de culturas. Num mundo cada vez mais globalizado, em que temos de saber estar uns com os outros, é necessário expulsar os fantasmas do passado, afastar os preconceitos e valorizar todos os contributos culturais. O Tchiloli já há muito compreendeu a importância desse espírito para a harmonização social.

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in AUSTRAL nº 68, artigo gentilmente cedido por TAAG - Linhas Aéreas de Angola

por Agnela Barros
Palcos | 11 Agosto 2010 | s.tomé, tchiloli