Uma Voz
30 de Setembro de 2020, ano que tentou e vai tentando, mas ainda não conseguiu pôr tudo em suspenso. Uma Voz, de Gustavo Ciríaco com Isabél Zuaa e Domenico Lancellotti, vai ressoar, reverberar e entrar até nós no espaço Brotéria, bem junto ao Bairro Alto que, do barulho das vozes de antes, guarda ainda memórias e esperanças.
Integrado na programação As coisas fundadas no silêncio, fomos percebendo como esta Voz se transporta do silêncio e para ele, mexendo com todas as pedras do espaço.
Conversei com o Gustavo Ciríaco e ele foi-me contando como surgiram as canções que são estas vidas, com as vozes de Isabél e Domenico e os seus ecos a juntarem-se para nos fazerem ver aqueles que tantas vezes estão em silêncio ou são silenciados.
MB - Como encararam este contratempo? De repente terem que mudar de lugar (iam fazer o concerto na igreja St. George), de datas e, imagino eu, de processo de trabalho? Verem-se fechados a ter que repensar uma série de coisas foi determinante para o concerto que apresentam?
GC – De repente o mundo pára! E está ali uma bomba parada. Como em um filme anos 50, o mundo congela como uma bomba a caminho e apenas uma pessoa consegue ver nesse mundo parado. Tive um pouco essa sensação. Só que aquela bomba ficou tanto tempo parada, lá em cima que o tempo se tornou bem largo mesmo. E a gente se esqueceu dela… para mim, acabou sendo bom para o processo porque é um concerto em que eu faço uma coisa que não é muito da minha carreira, que é… criar canções. Apesar de todo o caráter irreal e triste, foi um momento de introspecção em que pude criar canções sem pressa, sem uma agenda, sem um prazo. Então tive tempo de rabiscar, escrever, experimentar o som.
Isabél Zuaa, fotografia de Alípio Padilha
…podias ter entrado numa espécie de bloqueio, por causa da incerteza de não saber quando fazer…
É. Porque a gente passou o concerto primeiro para Julho e depois para Setembro. E teve um momento em que dissemos: “vamos marcar para uma altura em que pode realmente acontecer. Vamos esquecer Julho porque Julho está muito incerto.” Então, marcamos o dia 30. E eu também pude assim ter a experiência de estar em vários shows, vários espectáculos de música, de teatro, de dança neste verão. Apesar da bomba ainda estar lá.Tive de colocar um pouco de possível no meu presente.
…sim, uma pessoa quase que começou a perder o medo da bomba, de vez em quando vem outra vez todo junto. Mas parece que que percebemos que tinha que andar, que não podíamos ficar suspensos numa semi-expectativa do que ia acontecer.
Vocês primeiro tinham pensado fazer o espectáculo na igreja de St. George e agora passou para a Brotéria, que também é um espaço, de certa forma religioso, porque era um convento…
São padres jesuítas que gerem e pensam este espaço cultural.
E para era importante ser num espaço que tivesse essa dimensão outra, quase ritualística ou de introspeção, que houvesse esse silêncio ou essa voz que apela para outros lugares.
Não fomos nós que escolhemos a igreja, foi a curadora d’ As Coisas Fundadas no Silêncio que nos fez o convite e nos propôs o lugar, uma vez que a igreja era parceira do projecto, e que tinha também parceria, há algum tempo, com a ZDB e nde vários concertos aconteceram. É uma igreja que tem as suas funções religiosas, tem o culto, só que é uma igreja que já tem uma trajectória de espaço para concerto. Tem a dimensão religiosa, mas eu não estava me relacionando com isso. Nem há dentro do trabalho nenhuma questão religiosa.
O Brotéria é um espaço muito particular porque é um centro de arte contemporânea, gerido pelos Jesuítas. Super pole position, iluminado, com exposições de artistas plásticos. São todos muito cultos, muito versados e muito interessados. São uma equipe jovem e que cruzam muito a fé cristã com a arte contemporânea. Esses padres Jesuítas eles têm realmente uma dedicação à sua fé, mas não é de modo algum uma fé ligada a conservadorismos ou preconceitos. Eles têm sido super parceiros. E o espaço muito bom, cheio de arte… Helena Almeida na parede, Rui Chafes no hall das escadas.
E à diferença da igreja, o espaço é muito maior e tem uma variedade acústica mais rica. E algumas coisas que na igreja talvez se tornassem uma questão…uma mulher negra, numa igreja inglesa e a dimensão religiosa, no Brotéria isso já não acontece necessariamente, embora nenhum espaço seja neutro e este tenha a sua vivência e história.
Uma Voz e temos uma mulher negra a dar voz e pensar nisso, logo que se lê a sinopse ou se vê uma apresentação era incontornável. Parece que há uma ideia de romper esse silêncio que foi o da mulher e, em particular, o da mulher negra.
Quando convidei a Isabél, já trabalhava com ela há muitos anos, desde que ela foi fazer Erasmus no Brasil. Conheci-a numa oficina na faculdade de teatro da UNIRIO. Eu tinha que viajar para o México na última semana de uma temporada. Convidei a Isabél para me substituir. Ela tem uma presença muito forte e há ali uma responsabilidade extra quando se está a dançar no lugar do coreógrafo, tem que haver uma força de cena e muita compreensão disso para estar ali e a Isabél tinha isso mesmo. E depois disso fizemos inúmeros trabalhos juntos.
Quando convidei a Isabél, antes de tudo foi pela artista que ela é e a parceria que nós temos. Depois a ideia da Uma Voz era — talvez mais que uma mulher negra — uma mulher. Uma mulher que fala até porque “o porta-voz”, normalmente, é masculino. Tem um pouco isso de portar a voz e de importar a voz. E a Isabél tem muita…ela fez a personagem de uma escrava no filme Joaquim, De Marcelo Gomes, sobre a vida de Tiradentes antes de se tornar herói nacional. O modo como ela desenhou essa personagem é muito forte. Porque muitas vezes em filmes, no Brasil, esse papel ele é feito com uma doçura e uma certa nostalgia mascarada em que, curiosamente, há uma mistura de colocar personagens que eram escravos como se eles fossem empregados e é totalmente diferente do horror que foi a escravidão. Assim, muita da violência da escravidão é escamoteada…alguém a chamava de preta e ela disse “preta é cor. Eu tenho nome”.
Tem um impacto… está ali uma protuberância, o acidente do caminho…então quando ela vem com Uma Voz ela tem isso de ser porta voz e de usar a acústica, uma voz à capela. E o que essa voz tem de fragilidades — ela depende apenas da sua emissão, da sua relação com o espaço, com o eco — ela tem também de força.
E o trabalho com o Doménico, como é que vocês foram articulando, trabalhando à distância e como foi o trabalho dele em presença?
Começámos eu e a Isabél, por encontros Zoom e Skype e Whatsapp e todas elas como na canção do Balão Mágico (grupo infantil de cantores mirins) — Pluct, plact Zum, não se vai a lugar nenhum. E quando o Domenico entrou, com música é muito difícil o Zoom por conta do som, começámos a ter encontros presenciais nos jardins. Foi muito em jardins e parques os nossos encontros. O Domenico é um músico muito particular porque ele é multi instrumentista, compositor, super culto e variado em sua culturamusical, trabalhou com grandes nomes da música popular brasileira (Gilberto Gil, João Gilberto, Gal Costa…) e tem também uma trajectória como cantautor.
Conhecemo-nos numa missão artística do estado do Rio de Janeiro, em Londres, pouco antes das Olimpíadas — o Rio Occupation London — um marco na história da cultura do Rio, onde trinta artistas estiveram a passar um mês hospedados no mesmo centro cultural e foi uma grande bangunça, no bom sentido. Foi um momento muito rico de criação e parcerias entre nós, artistas e instituições inglesas. O nosso Black Mountain College concentrado, o nosso carnaval das artes.
Ele é director musical do Uma Voz, como eu não tenho formação em música embora algumas das canções sejam minhas, o Domenico foi fundamental para criar a ponte musical entre as canções e a sua execução com a Isabél. Também faz um acompanhemento de objectos. Não toca instrumentos, mas maneja um balde de gelo, um prato, etc., para na lógica da acústica serem objectos cuja amplitude do som está ligada ao esforço e à relação com a Isabél. Para mim, é interessante ver como esse som que jogamos para cima, à maneria de um profeta que lança suas palavras para o alto, tem um efeito diferente quando se fala para baixo. Fomos assim compreendendo esses movimentos acusticamente e as suas implicações nas nossas sensações de espaço e de aqui e agora.
Compuseste algumas canções. Era uma coisa que tu fazias? Ou foi um processo completamente inédito?
Eu ando sempre cantarolando alguma coisa e uso muito o meu telemóvel para gravar o que me chega no meio do caminho. Sempre gostei muito de musicais, em que de repente a pessoa sai para a rua cantando. Fiz também um trabalho que era um musical trágico (Quem anda no chão, quem anda nas árvores, quem tema sas, 2014). Nessa criação criei umas canções muito curtas em cima da tragédia como drama e assunto e como é que o trágico pode ser pensado nos dias actuais. Quando o vírus Ébola estava estoirando em 2014, e parecia que ia virar uma pandemia horrorosa, uma em que as pessoas caíam. Eu vi que as pessoas ao cair eram esquecidas e parecia muito com os que caem na ascenção social, os que não conseguem subir: os mendigos, os sem casa…então peguei em textos e os musiquei e a ideia era muito também cantar as nossas tragédias contemporâneas. Começou por uma brincadeira mas fui criando umas canções, mas aí há um espectáculo que apoia as canções, há acções, há diálogo.
Nas canções do concerto, há uma que se chama Hold Your Head High, que foi inspirada numa situação acontecida nos anos 60, quando começou a ser instaurada a dura penas uma política de integração racial nos Estados Unidos e os primeiros alunos negros foram matriculas em escolas antes apenas de estudantes brancos.
Quase todos tiveram acompanhamento, mas houve uma excepção, uma aluna que foi para a escola sozinha — a Dorothy Counts. Ela recorda que o pai dela lhe disse “mantenha a cabeça alta” (hold your head high!) e no caminho para a escola as pessoas cuspiram nela, tacaram pedra nela e mesmo assim ela foi para a escola. Na escola as pessoas cuspiram no lanche dela, cuspiram no lanche de todas as pessoas que foram simpáticas com ela e no dia seguinte jogaram pedras no carro do irmão, que a foi levar à escola para a proteger um pouco. Ele teve que parar o carro e ela seguiu então novamente sozinha. No terceiro dia ela não foi, pois ficou com febre. Acabou por ir para uma outra escola e dedicou-se, mais tarde, a trabalhar com a infância e a escola.
James Baldwin, o escritor americano e ativista negro estadunidense, volta para os estados unidos tocado pela situação e ele diz “como é que nós a deixámos ir sozinha e estar sozinha nesse momento?”. Ele volta de Paris e dedica-se mais e mais ao activismo anti-racista. Ele é um dos meus autores favoritos e foi por aí que eu cheguei à Dorothy.
A outra canção Era um Menino, um pequeno forró: “era um menino, era um menino, era um menino que corria”. São vários meninos que correm, soltam pipa, jogam videogame, correm da polícia, que estudam inglês e tabuada e que são mortos diariamente e mundo afora, sobretudo no Brasil, em que o Estado se torna assassino — uma política que mistura criminalidade, preconceito e genocídio racial. E foi inspirado num menino em especial, que em uma favela no Rio de Janeiro teve a sua casa invadida pela polícia e que foi morto em casa. Os seus pais não tiveram acesso a ver o corpo do filho após morto.
ustavo Ciríaco e Isabél Zuaa, fotografia de Alípio Padilha
E, no concerto, é a Isabél que canta essas canções?
Temos algumas participações [Gustavo e Domenico] nesta do menino, por exemplo, cantamos os três.
E as canções são em português e inglês?
Inglês, português do Brasil e português de Portugal.
E a terceira canção que escreveste…
Foi muito inspirada num cabo-verdiano que morreu, aqui em Lisboa. E que me fez pensar em muitas pessoas. Foi antes do triste assassinato do ator Bruno Candé o que me fez pensar em todos esses que morrem porque um macho decidiu…matar. É muito ligado a macho, macho branco. À essa arrogância . A canção chama-se Quando o Galo Cantou.
Começa assim [canta]: “quando um galo cantou, quando um dia lhe aconteceu, quando o macho matou…” e por aí vai.
É uma canção mais variada, meio uma rapsódia, em que o registo varia da palavra falada à cantada.
E as canções são cantadas à capela, sendo que há apontamentos acústicos do Domenico?
Exacto. Ele canta algumas vezes e faz a direcção musical do concerto.
As outras canções que cantamos: uma é do António Pedro Lopes [perfomer e director do Festival Tremor], que é desse espectáculo que falei. Uma música que se chama Douglas Cai Morto.
Na altura em que fizemos esse espectáculo, curiosamente muitos dos que sofreram violência racial ou homofóbica ou social, chamavam-se Douglas. A começar por um bailarino do programa de televisão da Regina Casé.
A sua história é curiosa e trágica. Ele foi parado numa blitz policial retornando à sua comunidade. Nessa blitz, os policiais mataram-no alegando que ele era traficante e que tinha fugido. Porque para eles ele era mais um cara da favela, anónimo, portanto para eles, descartável. Só que ele era um bailarino famoso, que dançava num programa de televisão com grande popularidade e isso foi toda uma comoção. Um ano antes da sua morte o Douglas tinha feito um filme: ele jogava à bola na praia, despedia-se dos amigos e a caminho da favela onde ele morava, cumprimenta várias pessoas e, enquanto sobe o morro, ele é parado por uma blitz que o mata. Ele filmou, um ano antes, a sua morte. O herói trágico, por excelência.
Um outro menino, também chamado Douglas, foi comprar cigarros para o pai, num bar, um carro da polícia para e há um disparo que o acerta no peito. Ele só tem tempo de dizer “porque é que o senhor fez isso comigo?” e morre. Tinha 16 anos. Mas antes de morrer o que ele fala virou lema, antes de morrer ele chama de senhor quem o matou.
E houve muitos outros: o menino gay, mortes muito trágicas e, curiosamente, o nome Douglas ia ressurgindo, eram todos Douglas.
Ao todo são quantas canções?
São sete. Temos o Nature Boy, mas que cantamos em português.
Traduziste tu?
Fiz a tradução para português, mas mudamos um pouco. Primeiro tínhamos pensado fazer em cabo-verdiano, mas acabamos por manter em português e fizemos, em conjunto, alterações para a métrica funcionar melhor e tem dentro uma surpresa de outra canção, mas que eu não falo.
E uma canção que Elis Regina cantava, a Dama do Apocalipse.
Mesmo as canções que já existiam, vocês trabalharam-nas de uma maneira muito particular?
Sim. Nature Boy, por exemplo, fala de um rapaz, um estranho rapaz que vem de muito longe. Então, quem é esse rapaz? O imigrante, o estrangeiro, o desconhecido? Tem aí um jogo. Da Elis, essa Dama do Apocalipse ela é um pouco uma Geni, a canção da mulher em quem acertam-se todas as pedras, que se entrega pelo mundo para ser sacrificada para que o mundo siga adiante. [canta] Uma mulher se entrega ardente, serpente, vulgar, … toda uma canção de resignação, mas também de resiliência, de força.
Há ainda uma canção, a quarta escrita por mim, que brinca com a palavra trans [canta]: como se pode tra-fegar, como se pode tran-sitar, como se pode a-tra-vessar, trans-portar, trans-formar, trans-cender... é sempre a trans.
A trans como passagem, mas que depois vira “a trans” deixa “a trans” viver, deixa fazer o que ela quiser. E essa é a última canção.
E, por ser cantado, achas que o espectáculo toma a forma do musical?
Não. É mesmo um concerto. Não há uma personagem, não há uma única história. É a ideia do que cada canção carrega, cada canção consegue instaurar. Elas têm tema que as liga, a relação de uma voz, de dar voz ou de trazer a voz ou de chamar a atenção para outras vozes. A única relação é o prédio, a arquitectura, que ela toma como instrumento para a sua voz. Diria que é mais um concerto, mas a minha tendência é não nomear os trabalhos. As pessoas podem dizer o que for, mas classificar não me inspira muito.
Ou como diria o poeta Leminski, E se não fosse isso, era menos. E se não fosse tanto, era quase.