Dançar o Sul em mãos de sal ao sol
O coreógrafo Rui Lopes Graça e o músico João Lucas rumaram ao deserto do Namibe, onde revisitaram Ruy Duarte de Carvalho e se fizeram etnógrafos. Paisagens Propícias tem estreia absoluta hoje em Lisboa, no Teatro Camões.
Baús vermelhos permanecerão em cena, fechados, como enigmas por desvendar; e estas serão, porventura, as únicas palavras num idioma que entenderemos: “O sol o sul o sal/ as mãos de alguém ao sol/ o sal do sul ao sol/ o sol em mãos do sul…”. Sul, de Ruy Duarte de Carvalho, um soberbo poema aliterativo, transporta-nos à imensidão desértica do Namibe, estendida a Sudoeste de Angola até às margens do Cunene.
Habitado pelos kuvale, gente pastoril e transumante, o deserto do Namibe inspirou a vida e obra do controverso escritor, artista plástico, antropólogo e cineasta que nasceu português (Santarém, 1941) e se naturalizou angolano (1983). Na infância e na juventude, passada na então Moçâmedes, Ruy Duarte de Carvalho acompanhava o pai, um aventureiro, caçador de elefantes, nas suas itinerâncias. Viajante incansável, personalidade radical e irascível, um “órfão do Império” que “pertencia ao Norte mas sempre se fazia ao Sul”, tornar-se-ia um profundo conhecedor da cultura kuvale. Devotado a um voluntário exílio interior, foi encontrado sem vida, em 2010, na sua casa em Swakopmund (Namíbia).
Deste universo, que Ruy Duarte de Carvalho tratou na ficção epistolar Vou lá visitar pastores (1999), partiu Paisagens Propícias (título emprestado do livro homónimo do autor), a primeira criação do coreógrafo português Rui Lopes Graça para a Companhia de Dança Contemporânea de Angola (CDCA) - estreia absoluta hoje, em Lisboa (Teatro Camões, até domingo), de onde segue viagem para Bragança (Teatro Municipal, dia 23) e Porto (Teatro Nacional de São João, dias 25 e 26). Para a directora, a coreógrafa e investigadora angolana Ana Clara Guerra Marques, estava na hora de um novo impulso para CDCA, até porque “a componente etnográfica da CDCA se tem dirigido sobretudo à cultura cokwe” (do Leste de Angola), explica-nos ao telefone.
O projecto surgiu no Verão de 2011. Clara Marques recebe uma chamada de Rute Magalhães, que foi companheira de Ruy Duarte de Carvalho, entusiasmada com a ideia de uma peça de dança-teatro. Coincidência feliz, já que Rui Lopes Graça (Nampula, 1964) aguardava, depois da criação de Gold(2011) para a Companhia Nacional de Moçambique, uma oportunidade para regressar ao continente onde nasceu, e ao reiterado interesse em trabalhar com outras culturas coreográficas que tem partilhado com o músico e compositor João Lucas.
Deserto interior
No Verão passado, Lopes Graça partia de Lisboa e João Lucas de Brasília, onde habita, em direcção a Luanda, onde convergiram com Jorge António (produtor e cineasta português) e Nuno Guimarães (artista plástico angolano, colaborador da CDCA). No mesmo dia, na companhia do antropólogo Samuel Aço (Centro de Estudos do Deserto), rumaram a Sul. Foram lá visitar pastores. Mais de mil quilómetros rasgados por horizontes majestosos. Chegados à aridez inóspita do Pico do Azevedo, talvez levassem na mente acordes da Sinfonia do Novo Mundo de Dvorák, pegada europeia em planície austral, que Ruy Duarte de Carvalho escutava quando aí regressava, evocando memórias e reconciliando-se com o essencial; ou versos de Sul, confundindo-se com o sibilar das rajadas do vento a fazerem dançar a poeira. Ouviram, isso saberemos, Carlos Lamartine, ídolo dos tempos áureos da música popular angolana dos anos 50/60 (ecos de uma colonialidade remota!), porque na peça daremos conta da sua voz mítica a rufar no rádio do jipe, sob o ruído do motor a cavalgar para Sul por picadas pedregosas.
Dessas e outras gravações directas (vento, pedras, cabras e cães; bois e galinhas do mato; o bulício ininteligível dos mercados; delírios instrumentais, palmas e tambores, regados a aguardente de banana), remisturadas com piano e violino, João Lucas fez nascer a partitura que serviu de guião à revisitação coreografada do imaginário de Ruy Duarte de Carvalho.
À medida que se embrenhavam neste modo de vida, nómada e de subsistência, que permitiu uma ordem pré-colonial resistir a guerras de pacificação (até 1941) e de libertação (a partir de 1961), ao poder colonial e às hegemonias subsequentes, mais entendiam por que razão encontrou Ruy Duarte de Carvalho na quietude aparente da paisagem ilimitada prolongamento e refúgio do seu “deserto interior”, e porque se esbatia na sua obra a fronteira entre texto escrito e imagem.E efabulamos a indizível comoção quando avistaram os baús vermelhos com o seu pequeno espólio bem guardado a Sul, na casa do seu amigo Betuca.
Uma dança africana
De regresso à trepidante Luanda, Lopes Graça tratou de apresentar aos bailarinos da CDCA - sete rapazes citadinos - uma realidade que, sendo do seu país, lhes era desconhecida. Ao invés do que fizera com a companhia de Moçambique (Gold nasceu das histórias pessoais dos intérpretes), agora sugeriu propostas “que encontraram imediata adesão, e foram devolvidas com redobrada vitalidade”, conta-nos. “Das criações recentes com moçambicanos, portugueses, franceses ou angolanos, descubro que o meu método é sempre o mesmo: adaptar-me às condições locais e construir uma relação de confiança”, explica. E, num país onde o kuduro ou o kambwa se tornaram uma espécie de dança nacional, “a abertura a outras ideias e a disciplina que adquiriram devem-se ao trabalho que a Ana Clara desenvolve com eles”, acrescenta.
Poucos em Portugal imaginariam existir em Angola uma companhia de dança contemporânea. Só mesmo uma circunstância excepcional, e o esvaziamento de quadros pós-1975, permitiria que a uma rapariga então com 16 anos fosse entregue a tarefa de dirigir a Escola de Dança do país. No final dos anos, 70 Luanda imergia nas convulsões da guerra civil. Debatia-se o que restava do legado colonial, a busca de uma angolanidade e a resistência do novo status quo a toda a conotação com a cultura europeia.
Foi uma trajectória árdua, até à criação, em 1991, da CDCA e do seu desígnio pioneiro: desenvolver uma dança contemporânea, profissional, de expressão angolana. Com um peculiar repertório, mescla de catarse de traumas recentes, pesquisa etnocoreográfica e crítica mordaz aos tiques dos novos estratos sociais. Esta vontade de intervir “sem concessões ao gosto dominante, ou ao fácil apelo dos modelos rurais, isto é, à dança africana como os não africanos imaginam que deveria ser”, como comentava José Eduardo Agualusa em 1998, conquistou artistas angolanos de relevo e, a pulso, um público cada vez mais entusiástico - nos sectores culturais, numa nova geração instruída, e numa população cosmopolita (russos e cubanos vão cedendo lugar a uma nova vaga de estrangeiros) que, literalmente, esgota os espectáculos a cada temporada.
Ao contrário do que se suporia, a CDCA não conta com privilégios ou o apoio do estado angolano. A dois dias da estreia, prevista para o mês passado no Nacional Cine-Teatro (Chá de Caxinde), um nostálgico vestígio do período colonial na Baixa de Luanda, a peça foi cancelada devido ao risco de desabamento do velho edifício erigido em 1932. Face à actual pressão imobiliária na capital, o destino do icónico espaço - único na cidade - é incerto. Não houve sequer quem indemnizasse a CDCA do investimento realizado.
Será, pois, acidental, esta estreia absoluta em Lisboa. A vinda a Portugal de Paisagens Propícias é um passo no caminho pouco frequentado dos projectos criativos em espaço lusófono. Um gesto que fez destes artistas etnógrafos, num aceno de lealdade para com o pouco recordado Ruy Duarte de Carvalho, sempre esquivo a ribaltas e opositor feroz dos que olham as realidades africanas como abstracções cristalizadas em meia dúzia de constantes.
artigo originalmente ppublicado no ipsílon, suplemento cultural do jornal Público (18/1)