Os triângulos de Ruy Duarte de Carvalho

A ideia para este ensaio surgiu a partir da leitura de um livro de João Cezar de Castro Rocha, em que o autor apresenta o seu conceito de culturas shakespearianas, as quais, como mostrarei daqui a pouco, se estruturam de acordo com relações de tipo triangular. Lembrei-me, então, de certos momentos, na obra de Ruy Duarte, em que aparece a curiosa figura do triângulo. Veja-se a abertura de Desmedida:

“…complicando logo, que é para depois não causar estranheza: que o real se faz mesmo é de repetições, variações e simetrias, acasos, encontros e convergências que o que estão mesmo é a pedir é decifrar-lhes continuidades e contiguidades, isso, estou em crer, não tem quem não saiba. […]

…a estória, então, ou a viagem que tenho para contar começaria assim: tem um lugar, dizia eu, tem um ponto no mapa do Brasil, tem um vértice que é onde os Estados de Goiás, de Minas Gerais e da Bahia se encontram, e o Distrito Federal é mesmo ao lado. Aí, sim, gostaria de ir…” (2006, 15)

E mais um exemplo, extraído de A Terceira Metade. Encontrando-se nos Estados Unidos e contactado por Severo (SRO) – protagonista das Paisagens Propícias, mas presente também no livro sucessivo – para se encontrarem, o narrador conta:

“………. respondi a SRO que sim e propus-lhe melhor, que era então eu ir ter com ele a Carson City e depois descermos juntos até  um ponto que tem para lá do Death Valley, onde se juntam os estados da Califórnia, do Nevada e da Arizona………… ficava num caminho que lhe convinha a ele e era um lugar aonde eu queria ir por razões cá minhas, para além de sempre me terem atraído, sem saber bem porquê, todos os pontos de convergência geográfica para onde eu possa convergir também……….” (2009, 235)

O fascínio do narrador – ou, como lemos ainda em A Terceira Metade, do “autor constituído em narrador” (21) – com esses peculiares pontos geográficos prende-se com a possibilidade de algo novo e imprevisto ser gerado a partir do encontro casual entre múltiplas trajetórias. A figura do triângulo surge, então, enquanto imagem das potenciais relações que se podem estabelecer entre diversos lugares ou personagens e que se caracterizam, como veremos, pelas suas imprevisibilidade e mobilidade.   

Estas relações são, muitas vezes, originadas por movimentos de desvio, que estruturam praticamente todas as obras de Ruy Duarte. Veja-se, por exemplo, Moia. O Recado das Ilhas, filme de 1989, que encena a experiência de uma jovem angolana, que, devendo regressar a Luanda de Lisboa, decide fazer uma paragem de alguns dias em Cabo Verde, país de origem da mãe, onde nunca esteve. É importante sublinhar esta circunstância, pois o desvio está, efetivamente, na origem do filme, que começa mostrando-nos a protagonista, ainda em Lisboa, que, após ter visto umas videocassetes filmadas em Cabo Verde por um familiar, decide ir ela própria em busca da sua, como diz, identidade crioula. Esta busca acontece, portanto, num percurso que articula as suas ligações com Lisboa, Luanda e a ilha de São Vicente. Digo ligações, no plural, porque de múltiplas ligações, com efeito, se trata: históricas, por certo, mas também afetivas e intelectuais. Da mesma forma que múltiplas e variadas são as relações entre as três cidades e os três países. Se Lisboa surge, a partir de um certo ângulo de observação, como um possível centro – do antigo império, sem dúvida, mas também de um hemisfério norte que continua a pensar-se e a afirmar-se como centro –, Luanda, capital de um país extenso e dotado de recursos notáveis, pode ser visto como a periferia do centro, enquanto Cabo Verde, país pequeno e pobre, seria a periferia da periferia. Por outro lado, na vivência da protagonista, as relações entre os três países têm outros contornos: Luanda é a cidade de origem e o destino dela, o seu centro; Cabo Verde, apesar de desconhecido, é o país da mãe, e ela fala, de facto, crioulo; qual a sua relação com Lisboa, não sabemos, mas a capital portuguesa aparece apenas como lugar de saída, imagem distante e secundária: seria ela, na construção afetiva da protagonista, a periferia da periferia.

Esta forma de pensar as relações entre aqueles a que, provisoriamente, tenho chamado centro, periferia, e periferia da periferia, é o fio condutor do já referido ensaio de João Cezar de Castro Rocha, intitulado Cultures latino-américaines et poétique de l’émulation. Littérature des faubourgs du monde?, onde o estudioso discute a sua noção de culturas shakespearianas, elaborada em articulação com a teoria mimética de René Girard. Rocha dirige a sua proposta às culturas latino-americanas, mas ela pode ser útil para outros contextos, igualmente originados por aquele processo a que Ruy Duarte, entre outros, chamaria “expansão ocidental”, termo abrangente, porquanto inclui tanto o processo colonial como o atual processo de globalização. Segundo Girard, a mimese envolve três elementos: sujeito, objeto e modelo. O sujeito não deseja o objeto de forma direta, mas através de um modelo. Rocha aproveita esta estrutura para refletir sobre a forma como se têm constituído as culturas e as literaturas latino-americanas: na sua leitura, elas ter-se-ão construído e definido a partir do olhar do estrangeiro, adotado como modelo e como autoridade. Este tipo de estrutura estaria presente em diversas obras do dramaturgo inglês, daí o adjetivo “shakespearianas”, que o crítico utiliza para qualificar estas culturas, citando exemplos retirados de Júlio César, Otelo, Rei Lear, entre outros.

Dentre esses exemplos, destaca-se o de A Tempestade, que nos interessa especialmente, uma vez que aparece também em Moia, em que a busca da protagonista é pautada por diversos episódios, entre os quais ganha importância uma espécie de interlúdio onírico baseado justamente no drama e, especificamente, na encenação do conflito entre Próspero e Calibã – com um Próspero a falar português de Portugal e Calibã a falar crioulo. Este interlúdio, introduzido pelo primeiro diálogo que ocorre na peça entre Próspero e Calibã (Ato I, Cena 2), em voz off e em inglês, começa com a chegada de um conjunto de personagens recém-desembarcadas na ilha, entre as quais se destacam dois homens, um deles, branco, vestido com roupa do século xvii, e o outro, negro, com roupa moderna. Trata-se de uma personagem que já tinha aparecido – e voltará a aparecer – na narrativa fílmica principal, protagonizada pela jovem angolana em busca das suas origens crioulas. A esta personagem dirige-se Próspero com as seguintes palavras:

“Caro doutor, como sabe, agora somos todos filhos da civilização. Eu como filho legítimo, você como filho adoptivo. Foi por isso que nós vos demos acesso à universidade, ensinámos as boas maneiras de estar à mesa, a pensar… Agora têm condições para poder ajudar a controlar, a orientar o futuro dos nossos filhos. Você sabe tão bem como eu que o mundo precisa estar em boas mãos.” (34’20’’ a 35’10’’)

A atitude paternalista deste Próspero, deslocado no tempo e no espaço, fica patente não só pelo seu discurso, como também pelos gestos que o acompanham, como colocar a mão no ombro da outra personagem, que se mantém o tempo todo calada, bem como pelo seu tom de condescendência. Ao longo da conversa, ou melhor, do monólogo de Próspero, os dois vão-se aproximando de uma mesa onde os outros comensais já estão sentados. O almoço é servido por criados, escravos negros e, logo no começo da refeição, Próspero chama por Calibã, dando início a este diálogo:

“P.: Calibã! Ó Calibã!

C.: Ooooh!

P.: Que é que disseste? [Calibã aproxima-se da mesa] Pelo menos, podias ter dito “bom dia”. Que é que te custa dizer “bom dia”? Sabes que eu não gosto dessa língua de pretos! Ia-te diminuir em alguma coisa?

C.: [em crioulo] Aaaah, bom dia! Esqueci-me… então, bom dia!” (36’28’’ a 36’55’’)

A aparente indulgência de Calibã é desmentida, logo a seguir, por uma série de maldições, proferidas em crioulo, dirigidas a um Próspero que continua a comer, impassível, e que, por fim, reage assim:

“P.: Sempre espirituoso! Seu negro gentio! Como podes ser tão teimoso?

C.: Fica a saber que, se eu sou teimoso, eu penso o mesmo: tu és ainda mais teimoso que eu!

P.: Manejas muito bem as palavras, mas esqueceste de me agradecer que eu te ensinei a falar. Um selvagem, um bicho que eu eduquei, formei, tirei da animalidade!

C.: A mim, nada me ensinaste. O pouco que me mostraste foi para eu fazer coisas em teu favor. É servir à mesa, é varrer o chão, é escavar nas minas. Tu és um homem preguiçoso, o pouco que me ensinaste foi para tirar partido de mim, mais nada!

P.: És uma criança… o que seria de ti sem mim?” (37’10’’ a 38’)

A essas ofensas Calibã retruca deslocando a discussão, até a esse momento limitada à relação entre ele e Próspero, para um plano coletivo e, por isso, rico de implicações políticas. Assim, afirma que a tomada do poder por parte daqueles que foram, até à atualidade, os explorados – neste caso, os povos colonizados –, nada mudaria, porque a intenção permaneceria a mesma – subjugar muitos a proveito de poucos, mantendo de pé um sistema político e económico injusto. Pelo contrário, a verdadeira mudança acontecerá apenas quando “deixar de ser Calibã ou Próspero, para ser Calibã de cima e Calibã de baixo” (38’16’’ a 38’23’’), ou seja, do Norte – o antigo colonizador – e do Sul – o antigo colonizado.

A questão da língua desempenha, neste diálogo, um papel central, pois Calibã teima em expressar-se em crioulo, contrariando Próspero, que o intima a falar português. O uso do crioulo serve, então, para desafiar a imposição do colonizador, mas, na medida em que este demonstra entender a língua de Calibã, visto que a conversa avança apesar de cada um persistir no uso da sua língua, a relação entre os dois adquire contornos mais matizados e problemáticos, pois, num certo sentido, Próspero criouliza-se. Assim, a frase com que Calibã encerra a conversa, “Só quando deixar de ser Calibã ou Próspero para ser Calibã de cima e Calibã de baixo”, mais do que indicar um objetivo a atingir, chama a atenção para um processo que já está em curso, pese embora a resistência dos seus protagonistas em encará-lo.

Este ponto é importante, porque leva a um questionamento e a uma complexificação dos lugares aos quais as personagens estão associadas, que, de forma sumária, poderiam ser remetidos para a tradicional dicotomia entre Norte e Sul – ou entre centro e periferia, termos (e conceitos) que discutirei daqui a pouco e que, não por acaso, utilizei, há algumas páginas atrás, em itálico. Ora, o que Rocha defende é que as relações entre as personagens do drama devem ser entendidas precisamente à luz das posições que ocupam, determinadas pelas suas origens geopolíticas: é verdade que tudo acontece na ilha, mas, observa o crítico, a história começa antes, com a expulsão de Próspero, duque de Milão, no seguimento de uma conspiração orquestrada pelo irmão com o apoio do Rei de Nápoles. Este detalhe não seria irrelevante, pois organiza também uma rede de relações em que há um lugar hegemónico, o Reino de Nápoles, um lugar dependente do mesmo, sua periferia, o Ducado de Milão, e a ilha, distante de tudo e de todos os poderes – a periferia da periferia (Rocha 2015, 49-50). 

Um ponto interessante dessa leitura é justamente a crítica do autor aos termos “centro” e “periferia” que, num primeiro momento, utiliza para substitui-los, em seguida, por “hegemónico” e “não-hegemónico”, querendo sublinhar, com isso, não se tratar de lugares fixos, de essências, mas sim de estratégias, lugares de enunciação, sujeitos à mudança e que devem ser entendidos à luz das conexões que estabelecem entre si: 

“não será a vocação das culturas shakespearianas imaginar novas teorias, a fim de oferecer uma perspectiva que permita «ver com os olhos livres» o mundo contemporâneo, que, por definição, é um mundo que multiplica quase ao infinito, e a vários níveis de complexidade, relações triangulares?” (Rocha 2015, 55, tradução minha).

Entre estas teorias, o autor destaca a poética da emulação, estratégia característica das culturas shakespearianas. O objetivo de Rocha, de inspiração antropofágica, é mostrar como a poética da emulação, longe de ser sinal de inferioridade cultural, é o ponto de força dessas culturas, capazes de absorverem o discurso do outro, articulando-o com outros discursos e olhares locais. A multiplicidade das línguas e das tradições culturais e literárias às quais essas culturas têm acesso – diferentemente das culturas hegemónicas, que, apoiadas em tradições sólidas e prestigiosas, não necessitam, ou melhor, acreditam não necessitar de recorrer aos conhecimentos produzidos por outrem – seria um exemplo bastante significativo da riqueza de que as culturas “shakespearianas” dispõem.

Ora, é justamente um contexto desse tipo que é representado em A Terceira Metade, onde a narração de Trindade é fruto de um trabalho de assimilação, digestão das narrativas que andou a ouvir ao longo de décadas e que reproduz, a partir do seu ponto de vista específico, combinando-as com os saberes de culturas locais e com o seu próprio saber pessoal. 

Sendo esta a primeira ocorrência da denominação Os Filhos de Próspero, é só na terceira metade do livro que descobrimos quem são eles: Severo, K e Trindade. Tal como Calibã e Ariel, cujo destino, no final da peça, permanece incerto, procuram um caminho, uma forma de lidar com a condição de “órfãos do império” (Carvalho 2009, 306). Nesta terceira metade, a narração organiza-se a partir das relações entre eles, algo que o narrador justifica pela singularidade desse encontro:

“a força do que tem de ser tinha conseguido conjugar ali, num fim de mundo como aquele que consta nas estatísticas como um território aquém do meio habitante por quilómetro quadrado, três caracteres muito especiais capazes de desempenhar, protagonizar nessas áreas, toda a universalidade da condição das pessoas e de tudo quanto vive no mundo………..” (305, itálico meu)

Delineia-se, aqui, um tema caro a Ruy Duarte: o da delicada e complexa relação entre local e universal – problema clássico nas literaturas surgidas em contextos coloniais e na crítica sobre elas. Apontando para esta relação a partir das narrações de Trindade, o narrador de A Terceira Metade procura, em boa verdade, questioná-la, mostrando como, para a razão ocidental, “universal” acaba por coincidir justamente com “ocidental”, logo apanágio de apenas uma pequena porção da humanidade. Por outro lado, como se vê no decálogo neo-animista, cujas proposições se encontram já no final do romance, o próprio conceito de humano é construído de acordo com um modelo específico: o do homem branco, europeu. Daí a crítica ao humanismo, de que Próspero é a figura emblemática – e do qual, porém, queiramos ou não, somos todos filhos, como sugere o título da trilogia, uma vez que, independentemente da nossa origem – pois o processo de expansão ocidental acabou por afetar não apenas os territórios colonizados, mas o mundo inteiro –, somos todos Calibãs. 

A referência à Odisseia é, neste sentido, fundamental na construção da figura de Trindade e da proposta do livro. Apaixonado pelos gregos e por Homero, interrogado acerca da singularidade desse seu interesse, Trindade pergunta, com a ironia que o caracteriza: se os brancos se interessam pelos passados dos negros, porque é que nós não nos podemos interessar pelos deles? Por outro lado, SRO, que volta a desempenhar um papel de protagonista na terceira parte – a bem ver, a terceira metade – do livro, aponta para a universalidade do poema homérico: 

“a Odisseia é tão já o programa de toda a literatura possível, contém já lá de tal maneira toda a completa substância literária potencial e total, comporta já tanto de todo o horizonte da vida humana, que seja o que for que tenha sido feito, faça ou venha a fazer-se em literatura, remeterá obrigatoriamente ao que já lá está.” (Carvalho 2009, 319) 

Autor de um baralho de cartas inspiradas nas personagens principais da Odisseia, SRO acrescenta que 

“está lá já tudo, a aventura humana toda conjeturável e possível……. por isso a pertinência daquele baralho ali ou em qualquer lugar e em qualquer tempo, por isso tais figuras talvez não fossem afinal tao alheias assim ao que pudesse passar-se naquele lugar ou dizer-lhe só respeito porque ali, enfim, por mais África que fosse […], também era com gente que os dramas e as tragédias aconteciam e com os ingredientes humanos que são os próprios delas, das pessoas, sempre em qualquer tempo e não importa aonde……….” (319-320) 

Ao defender o caráter universal da Odisseia, SRO critica severamente a postura daqueles que, consciente ou inconscientemente, a consideram apanágio da civilização ocidental. E “ocidental”, nesta lógica, é precisamente sinónimo de “universal”, algo que institui, desde logo, um paradoxo, já que dita universalidade abrange, ao fim e ao cabo, só uma parte da humanidade, sendo que a outras caberá, quando muito, o rótulo de (mais ou menos) “autênticas”. Veja-se: “num cenário daqueles, tão autenticamente africano, […] era quase risível pensar em alguém introduzindo ali o classicismo das figuras de Ulisses e de Poseidon” (318), diz um escritor luso-angolano que SRO acompanhara ao longo de um passeio junto ao rio Kunene. É esse tipo de postura que desencadeia a reflexão sobre a Odisseia enquanto obra matriz da literatura universal: a forma de olhar para o poema homérico representa a concretização de um problema de fundo, que diz respeito ao entendimento que uma parte da humanidade tem de si mesma (e das suas expressões culturais) e do resto dos seus semelhantes (e das expressões culturais deles).

É por meio deste percurso que o livro retoma, radicaliza e aprofunda uma questão a que Ruy Duarte vinha apontando desde as suas primeiras publicações sobre a sua investigação junto dos Kuvale. Desde então, o seu objetivo tinha sido duplo: por um lado, dar a conhecer o modo de vida dessa sociedade pastoril, que não se enquadrava no modelo social e económico capitalista perseguido por Angola e pelos países ocidentais; por outro, mostrar como esse modo de vida, além de possível e sustentável no meio que lhe era próprio, poderia inclusive oferecer ensinamentos úteis para outros grupos e outras sociedades, caso se dispusessem a ouvir algo diferente. 

Um projeto deste tipo é o que orienta A Terceira Metade, que se estrutura à volta de relações triangulares – e, insista-se, o triângulo deverá ser entendido como multiplicador de possibilidades e não como estrutura fechada, espécie de síntese apaziguadora dos conflitos – semelhantes às que tenho vindo a referir. Se a sociedade Kuvale ocupa uma posição não-hegemónica dentro do território nacional, e Angola será, por sua vez, um país também não-hegemónico no sistema mundial, da mesma forma Trindade é o maior exemplo de personagem marginal, condensando todas as singularidades concebíveis, e é isso que o torna o narrador ideal do romance austral que o narrador do romance se propõe contar. Trindade é, de facto, mucuísso, ou seja, pertencente a um grupo que, embora parte da sociedade Kuvale, constitui nela um grupo minoritário, desprezado e marginalizado. Nos seus trabalhos científicos publicados nos anos de 1990, Ruy Duarte apontara mais do que uma vez para a posição singular desses indivíduos no seio da sociedade Kuvale, devido ao papel fundamental que tiveram aquando da terrível represália de 1940-41, durante a qual tomaram conta do gado abandonado e contribuíram assim, de forma decisiva, para a reestruturação da sociedade Kuvale depois das deportações. Assim, se os mucuíssos são, de um ponto de vista étnico, equivalentes a uma casta, por circunstâncias fortuitas desempenharam, em certo momento, uma função crucial dentro daquela mesma sociedade que os exclui. Por outro lado, o caso do Trindade é ainda mais singular, posto que andou a vida toda a trabalhar para engenheiros e doutores dos quais aprendeu (quase) tudo o que sabe. Em suma, é uma criatura marginal, de fronteira, tal como os espaços atravessados e privilegiados nas narrativas de Ruy Duarte que, no início do livro, diz querer arriscar

“o esboço de um terceiro olhar………… porque desta vez […] não se trataria do discurso de um branco ou de um mulato que se atribuíssem uma palpitação de africano, como já tinha ensaiado antes…….. desta vez seria o de um absoluto africano inteiramente ‘negro’…… mas também não seria o de um negro africano ocidentalizado […] seria antes o discurso de um africano configurado em simultâneo por duas diferentes aprendizagens “maternas”, nenhuma delas, todavia, produção e resposta da historia ou da cultura do seu sangue, matriz da raça que lhe é imputada……. O Trindade é negro, sim, mas é mucuísso, não é banto de origem…….. […] um ‘primitivo pré-banto’, domesticado tanto pela incidência banta como pela incidência ocidental…… um absoluto imprevisto olhar, portanto e de qualquer maneira………….. e, para o autor, talvez, uma terceira metade da mesmíssima coisa que tinha andado a tentar querer dizer antes, dando notícia de outros olhares……” (22-23)

Vale a pena atentarmos na importância do acaso, do imprevisto, que o narrador enfatiza no percurso de vida dessa personagem. O cruzamento entre pertença étnica, história coletiva e história pessoal deu-se, na vivência do Trindade, de forma inusual e totalmente imprevisível, tornando necessário o recurso a um pensamento (e a uma escrita, por certo) de fronteira, pois, como sugere ainda João Cezar de Castro Rocha, na sua leitura de A Tempestade, ao comentar a impossibilidade de se traçar uma linha divisória inequívoca entre as personagens de Calibã e Ariel, “um pensamento de fronteira parece ser justamente o que faz falta para o estudo de situações-limite” (Rocha 2015, 52, tradução minha). 

O antigo problema da oposição entre um entendimento da humanidade que privilegia as especificidades locais e outro que valoriza o que todos os seres humanos partilham, na base de duas formas antitéticas de fazer antropologia, encontra um desenvolvimento diferente no pensamento de Ruy Duarte, em virtude da rejeição desse entendimento binário e, de certa forma, determinista, devido também, certamente, à sua própria “condição periférica de angolano excêntrico”, como escreve em Desmedida (Carvalho 2006, 56). É por isso que o ponto – literalmente – alto d’A Terceira Metade é a viagem para a ilha de Santa Helena, durante a qual Trindade apura o seu olhar sobre o mundo:

“……….. Santa Helena, assim, no meio do oceano e a mais de dois mil quilómetros de Walvis Bay, passou-lhe a ser […] um vértice a partir de onde, colocado a uma altura estratosférica de duzentos mil metros, daí para a frente aprendeu a olhar para o continente e para o mundo colocados tanto dentro como fora de si mesmo……… digamos que o Trindade ensaiava assim uma absoluta tentativa de objetividade limite operada na pauta da sua subjetividade exclusiva……..” (Carvalho 2009, 286)

Esta experiência permite a Trindade conceber o seu “romance austral” e ao narrador um livro, cujo projeto se diferencia dos anteriores, na medida em que, se esses – especialmente Vou Lá Visitar Pastores e Os Papéis do Inglês, mas também, em parte, As Paisagens Propícias – procuravam dar conta da experiência do autor/narrador, criando uma espécie de livro-vida, as vivências de Trindade, narradas no último romance, estão entrelaçadas com os acontecimentos principais da história de Angola no século xx, e o enredo constrói-se justamente em virtude da articulação de umas com as outras, dando, portanto, origem a algo a que chamaria livro-mundo. Santa Helena, Cabo Verde, a ilha de Próspero, periferias das periferias, lugares distantes de tudo e de todo centro de poder, configuram-se como ângulos de observação que potenciam esse olhar literalmente excêntrico e móvel do sujeito sobre si próprio e sobre o mundo. A figura da terceira metade, eco da terceira margem rosiana, evoca justamente este gesto paradoxal pelo qual se afirma um meio – do livro, por exemplo – e um centro – do mundo – sem que seja, porém, possível identificá-los e fixá-los, pois ambos os movimentos que os originam – a escrita e a viagem – carecem de conclusão. É por isso que o narrador insiste no caráter processual, em devir, de Trindade, personagem metamórfica, em perpétua transformação, a par do seu livro, livro em formação, sempre à beira de desaparecer…

Mapa da costa meridional de Angola e do norte da Namíbia, colocada na abertura de A Terceira Metade e que poderá reproduzir a visão que Trindade teve do continente a partir da ilha de Santa Helena.Mapa da costa meridional de Angola e do norte da Namíbia, colocada na abertura de A Terceira Metade e que poderá reproduzir a visão que Trindade teve do continente a partir da ilha de Santa Helena.

Não se deve ler nisso uma simples reivindicação de um lugar, nem que seja literário, para vozes minoritárias, pois isso não alteraria os termos do problema apontado, que é, como vimos, o da identificação geral e naturalizada entre universal e ocidental. A necessidade de um pensamento de fronteira, triangular, atento às pluralidades e às conexões imprevistas e imprevisíveis prende-se com a crítica a esse tipo de identificações – ainda bem enraizadas não só no sentido comum, como também nas políticas editoriais – na crítica e na própria academia. 

No âmbito da receção e do estudo das literaturas africanas e, de uma forma geral, não-europeias na Europa, encontramo-nos perante um problema urgente, na medida em que elas continuam a ser apreciadas, acima de tudo, em função da realidade a que se referem e, como consequência disto, a ser entendidas, em grande medida, como meros veículos de análise de problemáticas identitárias, políticas, sociais, ou, ainda, de reflexão historiográfica, (des)construção da nação e por aí fora. Carece um entendimento mais amplo dessa produção, que a encare como objeto digno de apreciação estética per se, ou seja, em que o local de produção não seja necessariamente o critério principal para a sua leitura e análise, tal como certamente não o é no caso paradigmático da Odisseia

Não se trata, por certo, de menosprezar a importância do lugar da fala, reivindicada pelos estudos culturais, que grande impacto tiveram no campo do estudo das literaturas africanas, mas sim de apontar para a mobilidade, a dinamicidade – nos termos deste ensaio, a triangularidade – desses lugares e das vozes que deles emanam. Por outras palavras, trata-se de questionar, com Trindade – que, lembre-se, justificava o seu interesse pela Grécia antiga, perguntando por que razão não podem os negros se interessar pelo passado dos brancos, uma vez que os brancos se interessam pelo passado dos negros – a forma como tem sido pensada a dialética entre as categorias de universal e de local, muitas vezes traduzida na pobre oposição entre europeu e africano, como se fosse possível traçar uma linha de separação entre os elementos culturais reconduzíveis a cada uma dessas dimensões. 

Neste sentido, é significativa a réplica de SRO ao comentário do escritor acerca do baralho de cartas, que introduz a já referida observação sobre a universalidade do poema homérico e o seu papel de programa de toda a literatura possível: “a escrita é tributária dos modos e da história da escrita e a literatura dos modos e da história da literatura” (Carvalho 2009, 319). Por outras palavras, trata-se de reafirmar um conceito, que a crítica muito bem assimilou no âmbito das literaturas europeias e norte-americanas, mas que custa, ainda, a aplicar-se plenamente às literaturas surgidas em contextos que sofreram processos de colonização, nomeadamente as africanas, uma vez que a sua ligação a projetos de nacionais e de construção identitária continua a determinar, em grande medida, a forma como são lidas e interpretadas, descuidando de algo tão elementar como o defendido por SRO, a saber, que existem uma história e uns modos da literatura e da escrita, que, não se isolando dos contextos em que surgem, não podem ser explicados exclusivamente por eles.     

O projeto d’A Terceira Metade coloca este tipo de problemáticas, porquanto o seu autor, uma vez dispensado o narrador, revela ter aspirado a “um discurso direto que […] desse para falar de tudo a pessoas que não precisassem mais do que querer saber, gostar de ouvir e discernir…………..” (298, itálico meu). Falar de tudo: por mais simples que isto possa parecer, respondendo ao impulso narrativo que se encontra na base de qualquer projeto literário, é importante interrogar-se sobre a sua viabilidade junto de um público leitor que continua a procurar, nas literaturas africanas, um eixo de temas e problemas, além de recursos linguísticos e estratégias narrativas, facilmente reconhecíveis enquanto africanos, e negando, ainda que, porventura, inconscientemente, a hipótese – considerada óbvia e plenamente legítima para um escritor oriundo de contextos hegemónicos – de os autores dessas literaturas poderem, precisamente, falar de tudo. Assim, se o projeto literário de Ruy Duarte inclui, evidentemente, propostas tanto para a nação como para a literatura angolanas e, de uma forma geral, africanas – pense-se na proposta de romance austral, que engloba muito mais do que Angola enquanto nação –, nisto não se afastando significativamente da tradição literária do seu país, há, nele, um conjunto de preocupações de natureza estética e filosófica, que nesse tipo de projeto não se esgotam, exigindo abordagens diversificadas.

Neste sentido, o desfasamento entre a expectativa de uma determinada dicção ou reportório temático e a singularidade de projetos como o de Ruy Duarte, se, por um lado, contribui para explicar a sua escassa popularidade junto dos leitores – mesmo, como é sabido, académicos –, poderá, por outro lado, apontar para caminhos alternativos e, creio, mais produtivos, para o estudo das literaturas africanas (e o facto de a discussão em torno da Odisseia ser suscitada pelos comentários de um escritor e de uma estudante de literatura sul-africana não pode deixar de funcionar como provocação dirigida a intelectuais e académicos), em que a atenção às especificidades locais, designadas pelo segundo termo, se articule com o caráter de universalidade que, desde o clássico homérico, se atribui ao primeiro.

 

Bibliografia

Carvalho, Ruy Duarte de. 2006. Desmedida. Lisboa: Cotovia.

———. 2009. A Terceira Metade. Lisboa: Cotovia.

Rocha, João Cezar de Castro. 2015. Cultures latino-américaines et poétique de l’émulation. Littérature des faubourgs du monde? Trad. François Weigel. Paris: Pétra.

Shakespeare, William. 2006. The Tempest. Veneza: Marsilio.

———. 2012. Julius Caesar. Cambridge: Cambridge University Press.

Venâncio, José Carlos. 1987. Uma Perspectiva Etnológica da Literatura Angolana: “chuva chove em cima da nossa terra de Luanda”. Lisboa: Ulmeiro.  

Filmografia

Carvalho, Ruy Duarte de. 2004 (1989). Moia. O Recado das Ilhas. Director’s cut: 62 min. Ficção, Cabo Verde, cor, 35 mm.

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in Diálogos com Ruy Duarte de Carvalho (2019), Marta Lança et all (org), Lisboa: BUALA - Associação Cultural I Centro de Estudos Comparatistas (FL-UL). ISBN: 978-989-20-8194-6  

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por Sonia Miceli
Ruy Duarte de Carvalho | 18 Setembro 2019 | Diálogos com Ruy Duarte de Carvalho, Literatura