Situar-se. Identidade e tradução em Ruy Duarte de Carvalho
Aconteceu uma nação independente. Depois de anos de lutas, exatamente quando o Movimento Popular da Libertação de Angola (MPLA) se encontrava de “bragas na mão”, como lembrou o escritor Pepetela num corajoso depoimento escrito por ocasião dos 40 anos da Revolução dos Cravos, chegou a independência que, na verdade, já existia enquanto capacidade de sonhar o futuro através das palavras, poder que a literatura às vezes parece ter. E Angola foi, finalmente. Um país sonhado, mas por fazer. Ruy Duarte tinha-se aproximado, digamos, com pouco fôlego e escassa curiosidade aos movimentos de libertação. Como ele mesmo declarou em algumas entrevistas e escreveu em alguns textos, ninguém o levou muito a sério como militante anticolonial. Estava ocupado a descobrir o seu lugar num determinado tempo e num espaço específico, o de um continente que vivia uma profunda mudança e uma promessa, igualmente profunda, de futuro. O ato de situar-se, enquanto processo necessário, levou-o muito corajosamente a definir-se como órfão do império, definição lúcida de quem nunca foi capaz de construir para si próprio um passado mais glorioso do que a realidade dos dias vividos ou, tampouco um lugar, de alguma forma, apenas “funcional” para os novos tempos.
Mas os novos tempos chegaram e, num primeiro momento, foram as imagens. Ruy Duarte de Carvalho empenhou-se então em retratar e mostrar o momento extraordinário, o nascimento de Angola, o que para ele nunca foi um momento/facto adquirido, mas sempre um objetivo a perseguir, como ele próprio nos lembra em Actas da Maianga (Carvalho 2003). Assumiu, então, um compromisso perante o presente angolano que se fez, desde logo, contranarrativa da ênfase patriótica dos demais, enquanto se opunha às certezas do partido único, que tão pouca atenção parecia prestar à complexa composição cultural de que se fazia o país. À semelhança de Partha Chaterjee em The Nations and its Fragments (1993), as margens pareceram logo a Ruy Duarte a melhor via de aprendizagem de um espaço cultural e geográfico compósito que não parecia saber dialogar adequadamente com as outras partes que compunham a nação.
Descentrar o olhar sobre a nação pareceu o caminho mais adequado e, vieram, assim, os pescadores da ilha de Luanda e a epifania dos Kuvale e do Namibe. Situar-se, com os pés firmes no chão angolano, começando o processo de aprendizagem do espaço nacional enquanto indivíduo, para depois ampliar o espaço do registo e passar a observar como e onde se colocam os outros. Para começar, situar-se no continente – proposta essa que, reivindicando outras pertenças, subvertia qualquer concessão a uma possível duração do colonial ainda dentro do “pós”. Recolocar Angola dentro de África, com as suas fronteiras impostas pela história colonial escrita pelos outros e recolocar a nação dentro de uma geografia bem mais ampla e, sobretudo, bem mais natural do que aquela imposta pelas leis da Conferência de Berlim.
Esse projeto intelectual, complexo, sólido, orgânico equivale a renegociar identidades e todas aquelas Angolas de que se compõe um nós, como Ruy Duarte de Carvalho veio depois a escrever. À macrocefalia de Luanda que, mesmo na literatura anticolonial, não deixou de ser muitas vezes uma espécie de metonímia da nação sonhada, Ruy Duarte opõe espaços vastos e outros, tentando uma quase poética da relação, como diria Édouard Glissant, poética necessária e incontornável, na qual sempre houve uma dinâmica, apenas aparentemente contraditória, construída à volta do conceito de opacidade entre as partes. Trata-se, como Glissant nos ensina, de um primeiro passo para encurtar a distância na relação com o outro, porque ela não se deve reger forçosamente pelas leis da compreensão racional, mas por uma aceitação pacífica das diferenças. O outro, seja ele uma pessoa ou uma parte do projeto da nação, passa a ser assim observado, dito e narrado, sem nenhuma pretensão de compreensão racional. Eticamente, pôr-se no lugar do outro é impossível, mas podemos, sim, observá-lo, descrevê-lo até à saturação dos pormenores que por si testemunharão a existência de uma possível outridade. É um processo deste tipo que Ruy Duarte encena na forma como constrói as partes mais descritivas, por exemplo, de Vou lá visitar pastores, através da descrição minuciosa da cultura material dos Kuvale, das dinâmicas que regem a sua vida social e o seu quotidiano.
É assim que a narrativa da nação se faz polifonia necessária, capaz de restituir uma imagem mais exata do corpo nacional, finalmente devolvido à sua possibilidade de ser inteiro. A bem ver, esse processo de criação que parte da tão necessária, quanto utópica, construção de um diálogo entre as partes, prende-se com um conceito amplo de tradução entendida como trânsito possível entre sistemas de significado que tem como objetivo não tanto a sua inteligibilidade automática e recíproca mas a evocação de possíveis correspondências de ordens semânticas capazes de suscitar e produzir diálogo. Trata-se de respeitar, como diria Jaques Derrida, o monolinguismo do outro, partindo do princípio de que a comunicação pode acontecer transmitindo o sentido das coisas mais do que a correspondência automática de sintagmas, sobretudo quando se procura registar na escrita vozes que se fazem dentro do horizonte, também e sobretudo experiencial, da oralidade.
O ensaio “A tradição oral enquanto recurso e referência para uma atualização poética interveniente” (Carvalho 2008) ajuda-nos a refletir melhor. O próprio título é um programa, também político. Ruy Duarte de Carvalho foi ele mesmo tradutor de alguma produção oral do continente africano, como sabemos. A partir de materiais recolhidos por outros, o processo de tradução daqueles textos aproxima-se da criação de um território de escrita possível alimentada por um processo de reescrita dentro da própria língua portuguesa. As versões de Ruy Duarte acabam por tornar-se exemplos possíveis da emergência de vozes e formas reconhecidas como manancial de inspiração para uma eventual criação não apenas poética ou literária, mas sobretudo intelectual. Aquelas vozes vindas de outros espaços do continente, e as suas memórias, ajudam-nos hoje a ler a contemporaneidade porque nos remetem para outros tempos possíveis do tempo que (ainda) hoje podemos habitar. É assim que aquele património poético se faz testemunho de possíveis formas de dizer o tempo, o atual e todos os outros tempos possíveis que compõem e declinam o tempo presente. Cria-se assim uma relação profunda com a reflexão intelectual e teórica presente na produção ensaística do autor, uma espécie de mise-en-scène do seu pensamento crítico que se desdobra sempre até o limite possível da linguagem e que se amplifica e se reduz simultaneamente, num constante esforço de reconhecer a voz e não apenas a fala possível do outro, sem nunca se tornar num “dar voz”, ciente como Ruy Duarte de Carvalho sempre foi, da perigosidade ética, também pelo seu implícito paternalismo, de tal operação.
Aprendi, lendo Ruy Duarte, que esta também é uma prática política, enquanto ensaio permanente de uma legitimidade fortemente exigida para todas as partes da nação, na teimosa luta por uma geografia do direito a uma plena cidadania de todos os que podem fazer Angola.
Bibliografia
Carvalho, Ruy Duarte. 1989. Ana a Manda. Os Filhos da Rede. Lisboa: IICT
———. 1999. Vou lá visitar pastores. Lisboa: Cotovia.
———. 2003. Actas da Maianga, Lisboa: Cotovia.
———. 2008. A câmara, a escrita e a coisa dita… Lisboa: Cotovia
Chaterjee, Partha. 1993. The Nation and its Fragments, Princeton: Princeton University Press.
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in Diálogos com Ruy Duarte de Carvalho (2019), Marta Lança et all (org), Lisboa: BUALA - Associação Cultural I Centro de Estudos Comparatistas (FL-UL). ISBN: 978-989-20-8194-6