A queda do muro da Tunísia
Em termos de simbologia política, a revolução tunisina é equivalente, para o mundo árabe, ao que foi para o ocidente a queda do muro de Berlim em 1989.
Pela primeira vez em décadas, a Tunísia está livre da ditadura de um homem só. Os extraordinários eventos de Dezembro de 2010 e Janeiro de 2011 são uma revolução política: a consistente pressão da fúria popular obrigou o presidente Zine El Abidine Ben Ali, primeiro, a uma promessa sem precedentes, de deixar o poder; depois, derrubou-o do poder; e finalmente conseguiu impedir uma tentativa de transferência inconstitucional de poder, marcando-se eleições ainda sem data, mas que se devem realizar em médio prazo.
Começou a incerteza pós revolta: três dias depois de Ben Ali ter partido, dia 14 de Janeiro, para o exílio na Arábia Saudita, o encarregado do governo Mohammed al-Ghannouchi anunciou a constituição de um gabinete “de unidade nacional” composto de muitos nomes do partido dominante no governo que acabava de ser deposto (Rassemblement Constitutionel Democratique, RCD), que manterá (pelo menos por enquanto) os ministérios do Interior, da Defesa, de Relações Exteriores e das Finanças. Os partidos da oposição aceita como “legal” no governo de Ben Ali também ganharam postos. O anúncio foi feito depois de uma noite de confrontos e tiroteios em torno do palácio presidencial, nos quarteirões dos partidos de oposição e em áreas próximas dos principais bancos, além de tiros esparsos por toda a capital Tunes. O jornal The Guardian, citando activistas de direitos humanos, atribuiu os ataques a milícias leais a Ben Ali; e Ghannouchi disse, pela televisão estatal, que “os próximos dias mostrarão quem está por trás deles”.
Muito mais consequentes foram os manifestantes reunidos à frente do palácio presidencial dia 17 de Janeiro, que gritavam furiosos contra notícias de que haveria membros do RCD no Gabinete de transição. As manifestações foram dispersadas com canhões d’água, mas voltaram às ruas quando foram anunciados nos nomes do Gabinete. Vários membros da oposição, incluídos na relação de nomes do Gabinete de transição, três dos quais ligados à federação nacional do trabalho (a Union Générale des Travailleurs Tunisiens, UGTT), imediatamente renunciaram, o que deu novo impulso às manifestações de “Fora RCD!”. Para tentar controlar a revolta das ruas, Ghannouchi e outros renunciaram a qualquer filiação ao partido RCD, mas não renunciaram aos cargos no Gabinete de transição. Não há como prever qualquer resultado. Seja como for, não parece haver retrocesso possível na conquista original e extraordinária que os manifestantes tunisinos conseguiram: Ben Ali não voltará.
“Pão, água e sem Ben Ali”
A rápida e completamente surpreendente queda da ditadura na Tunísia começou com o que parecia ser pouco mais que manifestação de jovens famintos e irados. Logo porém, em movimento espontâneo, as manifestações cresceram e ganharam orientação abertamente política e económica. Não foram, de modo algum, manipuladas de cima para baixo, por algum partido que visasse implantar alguma agenda política inventada no calor da hora – como o governo tentou pintá-las.
Dia 17 de Dezembro, Mohammed Bouazizi, vendedor de rua, de 26 anos, da cidade de Sidi Bouzid, ateou fogo ao próprio corpo, depois de a Polícia confiscar a sua mercadoria, sob a alegação de que não tinha licença de vendedor ambulante. O gesto desesperado de um jovem com graduação universitária, condenado ao subemprego, disparou protestos em todo o país. A indignação contra a situação geral da população incendiou cidadãos de várias gerações, categorias profissionais e sensibilidades ideológicas, apesar da dura repressão policial, que fez cerca de 200 mortos. (Dia 19 de Janeiro, a ONU declarou que só havia confirmação de 100 mortes, aí contados os 42 prisioneiros que morreram no incêndio de uma prisão, mas esse número parece estar fortemente comprimido.) O levante começou como movimento contra o desemprego e a carestia, sobretudo contra o preço dos alimentos, mas rapidamente converteu-se em revolução que exigia liberdades civis e a deposição do homem que a população via como responsável por suas tragédias. As multidões gritavam “Pão, água e sem Ben Ali”.
Acostumado a seguir a sua própria agenda, Ben Ali viu-se forçado a discursar três vezes, em 30 dias. Dia 28, na primeira tentativa, tentou atribuir os tumultos, como todos os ditadores, ao trabalho de “extremistas”. Dia 11 de Janeiro, já intimidado, prometeu criar 300 mil empregos, tentando esfriar as ruas com prodigalidade do Estado. Dois dias adiante, afinal, reconheceu o carácter político dos protestos, e prometeu que não concorreria à reeleição em 2014; libertou os manifestantes presos e levantou todas as proibições que cercavam a imprensa. O veredicto dos tunisinos foi rápido: muito pouco e tarde demais.
No início da tarde de 14 de Janeiro, o primeiro-ministro Ghannouchi anunciou que o presidente estava temporariamente impossibilitado de exercer suas funções e que ele próprio se encarregaria do governo, até que se organizassem novas eleições.
A oposição imediatamente denunciou a violação do artigo 57 da Constituição, segundo o qual caberia ao presidente do Parlamento, não ao primeiro-ministro, assumir a presidência no caso de vacância do cargo. Na manhã de 15 de Janeiro, a Corte Constitucional, autoridade máxima do Estado da Tunísia para assuntos de sucessão, declarou “definitivamente vago o cargo de presidente”, o que obrigou Ghannouchi a afastar-se, dando lugar a Fouad Mebazaa, presidente do Parlamento, que prometeu realizar eleições no prazo prescrito pela Constituição, de 45-60 dias. A oposição protestou ferozmente, e quer ampliar o prazo para novas eleições, para de seis a sete meses a partir de Janeiro, de modo a que haja tempo para se organizem eleições limpas e haja campanha eleitoral.
Os eventos da Tunísia, por surpreendentes que tenham sido, não são só explosão de frustração acumulada. Representam, sobretudo, a consequência óbvia de uma fórmula insustentável de falsa estabilidade política e económica, exactamente a fórmula que políticos ocidentais várias vezes elogiaram como “o milagre tunisino”. Apesar da tragédia, a auto-imolação de Bouazizi (que morreu em consequência das queimaduras) foi apenas o gatilho, não a causa, dos protestos, que têm raízes mais profundas e mais antigas.
Muitos e destacados aliados de Ben Ali várias vezes apresentaram o seu governo como democrático e eficaz. Em Abril de 2008, em visita oficial a Tunes, o presidente Nicolas Sarkozy da França disse que “alguns têm sido muito duros ao falar da Tunísia, que está a construir aberturas e tolerância em vários campos, e está a aumentar o espaço das liberdades” [1] – disse ele. Sarkozy apenas repetia as palavras de Chirac que dissera, em visita à Tunísia em Dezembro de 2003, que “o primeiro dentre os direitos humanos é o direito à comida (…) Desse ponto de vista, é preciso reconhecer que a Tunísia está muito à frente de outros países”.
Desde o final dos anos 1990s, também o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional, vários países europeus e os EUA têm apresentado a Tunísia como exemplo de reforma económica bem sucedida no Norte da África. Em 2008, por exemplo, o Banco Mundial elogiou a Tunísia como “ reformador regional top” nos processos de facilitar acesso ao crédito; e o perfil que o Banco Mundial oferece do país regista que a Tunísia duplicou a exportação de bens e serviços naquela década. Dominique Strauss-Kahn, presidente do FMI, declarou em Novembro de 2008 que “a economia tunisina vai muito bem” e que a Tunísia “é bom exemplo de país emergente.” [2] Nos dois casos, no campo político e no campo económico, a realidade sempre foi muito diferente e mais sombria.
Depois do golpe de 1987, que tirou do poder o “presidente vitalício” Habib Bourguiba, Ben Ali passou a atacar metodicamente as poucas liberdades políticas e civis que os tunisinos tão penosamente haviam conquistado. Sempre foi mestre no artifício de encenar eleições nas quais sempre aparecia reeleito com mais de 90% dos votos. Depois de duas dessas encenações eleitorais em 1994 e 1999, alterou a Constituição em 2004 e eliminou a lei que só autorizava duas reeleições consecutivas para a presidência, de modo a poder concorrer a uma 3ª reeleição em 2009. O partido RCD venceu com grande margem de diferença todas eleições parlamentares que houve nesse período. Servindo-se do aparelho partidário, o governo acompanhava de perto as actividades dos sindicatos, de associações de estudantes, de grupos de militantes pelos direitos das mulheres e pela liberdade de imprensa, e ditava o conteúdo dos eventos culturais. O programa de censura manifestava-se em três níveis: primeiro, os activistas políticos eram vítimas de campanhas de intimidação e de severa repressão nas mãos da Polícia. A Tunísia passou a ser um dos Estados mais fortemente policiais do mundo, com mais de 100 mil policiais armados, num país de 10,4 milhões de habitantes. Há documentos que comprovam tortura de prisioneiros, repetidamente denunciadas por organizações nacionais e internacionais de direitos humanos.
Segundo, o partido do presidente construiu sistema complexo e pervasivo para vigiar e monitorizar os cidadãos, que a francesa Béatrice Hibou, especialista em economia política, chama de “dispositif de quadrillage”NTs [aprox. “grade de controle”]. Um cidadão tunisino tinha de cuidar para não se tornar alvo da ira dos espiões locais do partido RCD, se quisesse poder continuar a viver a sua vida normal. Se, contudo, passasse a ser visto como inimigo do governo, tudo se complicava infinitamente: a admissão à universidade, a aprovação nos exames finais, o casamento, os planos para inaugurar um restaurante, a compra de um apartamento, um parto, conseguir passaporte ou, mesmo, comprar um telefone celular.
Em terceiro lugar, e devido à intrusão desmedida do Estado, a paranóia generalizou-se entre a população. Depois de 23 anos de prática diária, os tunisinos converteram-se em autocensores.
A repressão contudo não é o único factor a explicar a resiliência do regime. A longevidade do governo autoritário é efeito de uma combinação de coerção e consentimento que Hibou, em seu “La Force de l’obéissance” (2006), chama de “um pacto de segurança”. Nos termos desse acordo tácito, em troca de acesso facilitado ao crédito e a bens de consumo, os tunisinos acabavam forçados a conviver com a ausência de liberdades civis e políticas. Crédito e consumo, afinal, são parte importante do “milagre tunisino”. O regime comprometeu a velha base produtiva da economia, seguindo à risca as recomendações de sempre do FMI e do Banco Mundial, para privatizar indústrias e cooperativas agrícolas do sector público. Em lugar do que antes havia, cresceu uma economia muito mais contingente, de empresas têxteis e call centers operados por investidores estrangeiros, que só ofereciam empregos e subempregos temporários e mal remunerados, e resorts e spas para atrair turistas às ensolaradas praias do país. Turismo e call centers, nos quais os tunisinos trabalhavam como empregados de consumidores ocidentais, são os dois principais itens da lista de exportações recomendada pelo Banco Mundial.
A promessa de crédito, que como noutros lugares do mundo, também ajudaram os tunisinos a iniciar pequenos negócios, logo se revelou promessa efémera, em parte por causa da corrupção sempre crescente: quem tivesse conexões nos altos escalões do governo colhia para si as melhores oportunidades. No governo de Bourguiba, ainda havia uma classe média dinâmica, com formação académica e profissional e educação para empreender. A corrupção e o governo incompetente dos anos Ben Ali geraram a pauperização daquela classe média e o crescimento dramático do desemprego, sobretudo entre os que tivessem formação académica. 46% dos jovens egressos das universidades, como Bouazizi, enfrentavam o desemprego ou o subemprego. A ganância do presidente e de parentes da sua esposa, aos poucos espantaram os investidores tunisinos e estrangeiros, que se cansaram de ser exauridos pelas extorsões da família ‘real’, e preferiam aplicar os seus recursos nos países do Golfo. A chamada história de sucesso da Tunísia converteu-se em pesadelo para a população.
Quando começaram os protestos em meados de Dezembro, a imprensa referiu-se a eles, inicialmente, como movimentos sociais, “uma revolta contra a miséria e a corrupção” [3] ou, como noticiou o canal Europa 1 de TV por satélite, “uma revolta dos jovens”. Assumiu-se que os protestos fossem motivados exclusivamente pela frustração com os maus resultados da economia e o nenhum avanço social. Os comentadores, na primeira hora, insistiam que as manifestações estavam desorganizadas, acontecendo sem qualquer plano, estrutura ou comando. Todos diziam também que o movimento não se sustentaria: a maioria dos analistas previa que, sem a liderança de qualquer oposição formal, as manifestações teriam vida curta. Ainda no dia 11 de Janeiro, o jornalista francês Christophe Ayad avaliava a possibilidade de surgir qualquer “alternativa” ao governo de Ben Ali como “difícil”, e explicava que “todas as formações da oposição ao regime, por mais respeitáveis que sejam, são anémicas, exangues” [4]. Pouco antes, dia 6 de Janeiro, a repórter Marie Kostrz definia a oposição na Tunísia como absolutamente “desligada da realidade” e garantia aos seus leitores que “o vácuo político criado por Ben Ali não permite qualquer ilusão: ninguém pode afirmar que o regime cederá numa semana ou num mês.” Em seu artigo, citava análise do cientista político Vincent Geisser, que garantia que “não haverá mudança radical e, se alguma mudança houver, virá de dentro do regime”. [5] Apesar dessas previsões sombrias, o movimento popular não só se manteve; também cresceu e converteu-se em revolta que pôs fim a 23 anos de governo ditatorial brutal.
Estereótipos confrontados
Os eventos dos últimos meses foram impulsionados pela convergência orgânica de várias linhas de descontentamento. Uniram-se rapidamente aos graduados desempregados: estudantes, advogados, blogueiros, artistas, hackers, donas de casa, crianças, médicos, professores, feirantes – cada grupo trazendo seus específicos sofrimentos e usando seu específico vocabulário simbólico, mas todos unidos no objectivo geral. Esses clusters divergentes de protesto reuniram-se muito rapidamente num movimento de resistência civil, que sobreviveu porque se adaptou às tácticas de repressão do regime.
A conversão da “Primeira Família” da Tunísia, como o embaixador dos EUA em Tunes se refere a ela nos telegramas publicados por WikiLeaks, em extraordinário poder predador, é a chave para entender por que se dissolveu tão rapidamente e com tão aparente facilidade, depois de 23 anos, o “pacto de segurança” que Hibou identificou. A classe média e a burguesia profissional liberal (advogados, professores, médicos que se uniram aos protestos de rua) deixaram de aceitar o pacto, na medida em que se ia tornando claro que o governo já não estava empenhado em honrar o seu lado do mesmo pacto. Pode-se argumentar que, diferente de países como a Síria, onde os Assads e familiares também estão afundados em corrupção, os clãs reinantes da Tunísia tornaram-se de tal modo gananciosos que perderam a capacidade de redistribuir qualquer porção do saque, por pequena que fosse, mesmo entre os seus cúmplices das classes altas. Assim, negligenciaram os deveres de cumplicidade com a burguesia pensante. À parte ter transposto as cisões de classe, três aspectos do levante popular na Tunísia merecem atenção especial.
Primeiro, destacado com euforia pela imprensa ocidental, a acção das redes de informação. A imprensa estatal, claro, sempre fonte de desinformação, e o próprio regime, sempre tiveram poderosa influência no sentido de impedir que os cidadãos soubessem o que, de facto, estava a acontecer. No passado, em várias ocasiões, o estado conseguiu bloquear os portais e páginas da imprensa estrangeira na Internet e os esforços de comunicação dos cidadãos nas suas redes interpessoais. Intimidação de jornalistas, estrangeiros ameaçados e aconselhados a não se envolver em manifestações de rua e a não sair de casa foram também usados dessa vez e conseguiram, sim, manter amordaçada os média estrangeiros.
A principal excepção foi a rede de televisão por satélite Al-Jazira, com base no Qatar, que abertamente desafiou as ameaças da polícia nas ruas e entusiasmou muitos tunisinos e não desistiu de cobrir o movimento, chamando-o pelo nome, e desde o primeiro momento. Mas os eventos na Tunísia não foram novo exemplo da acção do poderoso “efeito Al-Jazira”, porque nem esse nem outro canal de televisão teria o que mostrar, não fosse a acção clara e empenhada dos próprios tunisinos. Desde 2006 não há sucursal oficial de Al-Jazira na Tunísia, depois que, irritado com a cobertura da rede, Ben Ali retirou de Doha o embaixador da Tunísia. Pelo menos no início do movimento, a rede teve de contar com vídeos amadores, fotos e entrevistas que os próprios manifestantes enviavam, da Tunísia. [6]
Em Dezembro e Janeiro, grupos de jovens tunisinos conseguiram distribuir informação crítica pelas suas redes, inclusive áudio e vídeo, sobre os desdobramentos reais. Usando plataformas de Web 2.0 como a de nawaat.org e outros médias sociais, o movimento distribuiu informação fidedigna sobre prisões e sequestros de manifestantes, e resumos do que escreviam analistas e observadores internacionais, além de divulgar locais e horários das manifestações. Os manifestantes também usaram as redes para comparar relatos e comentários sobre como estavam a operar as instituições de segurança, como o Exército e as várias unidades policiais, a partir das quais puderam avaliar o enfraquecimento progressivo do aparelho de repressão.
Por tudo isso, os eventos da Tunísia foram chamados de “a primeira revolução Twitter”. No seu último discurso, dia 13 de Janeiro, Ben Ali ofereceu o fim da censura ao YouTube e outros meios da Internet, o que provocou resposta rápida. A grande maioria das respostas, pelo Twitter e outras plataformas assemelhadas, podem ser resumidas numa frase: “Não queremos YouTube livre nem democracia virtual. Queremos mudança real de regime. Exigimos que Ben Ali deixe o país e seja julgado. E queremos eleições livres.” Desorientado talvez por muitos anos de reclamações sobre limitações impostas à Internet, Ben Ali parecia acreditar que os manifestantes estivessem nas ruas para obter “liberdade de imprensa” , mais do que mudanças políticas e justiça.
Mas nem só a Internet assistiu aos intensos debates públicos que caracterizaram o mês anterior. Houve debates pelas ruas, transformadas numa espécie de grande café, no qual a excitação ante a liberdade de manifestação recém reconquistada convivia com o medo de uma sempre presente ameaça de violência. Houve centenas de mortos e feridos. Apesar de tudo, mais forte que a brutalidade e o medo, as ruas encheram-se de falas e risos, felicidade, loquacidade e humor, em cidades como Tunes, Gafsa, Sousse e Sidi Bouzid. Cada um queria contar a sua história dos malfeitos do regime, não só para começar a narrar uma nova história de confronto e sucesso, mas também para propor novas linhas de análise e prever desenvolvimentos futuros. Instituições que foram instrumentos de facto do regime, adaptaram-se muito rapidamente àquele despertar da sociedade civil.
Por exemplo, a grande central sindical UGTT, que apoiou o governo de Ben Ali a partir do final dos anos 1980s, mudou completamente a atitude e os discursos. A partir dos trabalhadores dos Correios e dos professores de escolas primárias, várias subcentrais e sessões regionais da UGTT organizaram debates nas suas bases sobre o curso dos acontecimentos. Emoções liberadas de prazer colectivo partilhado, que brotaram do simples direito de falar livremente e ouvir sem medo, desafiam agora a noção, tão disseminada de que, “a rua” no mundo árabe seria espaço quase absolutamente sem lei, onde sempre reinam ira e ódio difusos.
Surpreendente, e claramente revelada nas demonstrações na Tunísia, é a grande participação das mulheres – outra vez contra outro estereótipo, segundo o qual “a rua árabe” seria imagem viva de espaço público dominado pelos homens.
Todos esses estereótipos estão associados a outros estereótipos que envolvem religião. Ben Ali e vários outros ditadores há muito tempo trabalham para convencer o ocidente de que, se algum dia for entregue aos cidadãos, a “rua árabe” será tomada por terroristas irados, que imporão a ferro e fogo a lei da Sharia e aprofundarão cada vez mais as desigualdades que separam homens e mulheres, ou, mesmo, também a Jihad. O que se viu foi que, em manifestações que expulsaram do país o ditador, homens e mulheres marcharam lado a lado, de mãos dadas, cantando a favor de direitos civis para todos, não do Islão. O Hino Nacional, não “Allahu akbar” [NTs], foi o canto que mais se ouviu; e havia mulheres veladas e mulheres sem véu. O tom dos protestos foi mais de reapropriação dos símbolos e da linguagem nacionais históricos: mulheres e homens nas ruas, com os próprios corpos, reaprendendo a soletrar “liberdade” e “fim dos assassinatos”, trabalhando juntos para alcançar e arrancar e queimar os gigantescos retratos de Ben Ali que se viam pelos prédios e esquinas das cidades.
A questão agora é saber como essa confluência de actores sociais responderá à transição, depois de Ben Ali e adiante. Evidentemente, o anúncio, por Ghannouchi, de que o partido RCD conservaria os ministérios chaves no governo de transição foi interpretada, por toda a parte, como atitude de escárnio contra o levante e insulto aos mortos e feridos. Imediatamente as ruas voltaram a ser tomadas pelas multidões, apesar do toque de recolher ordenado pelo Exército e pela polícia, cantando palavras-de-ordem pela dissolução do RCD exigindo que o primeiro-ministro e todos os membros do governo de Ben Ali renunciassem.
Agora, parece que o debate se vai estruturando em torno de dois grandes tópicos. Alguns dizem que é crucialmente importante que o governo de transição tenha a possibilidade de organizar-se e buscar alguma estabilidade. A grande massa dos cidadãos nas ruas denuncia a ilegitimidade também desse governo de transição e exige “um novo Parlamento, uma nova constituição e uma nova República”. Esse foi o slogan que reuniu os milhares de manifestantes nas ruas de Tunes dia 19 de Janeiro.
A situação permanece incerta. No momento em que encerrávamos este artigo, tudo fazia crer que a balança do poder está a pender a favor dos que se opõem ao governo de transição.
As manifestações continuaram mesmo depois da partida de Ben Ali, o que parece assegurar simbologia importante aos eventos na Tunísia. Em termos de simbologia política, esta revolução é equivalente, para o mundo árabe, ao que foi para o ocidente a queda do muro de Berlim em 1989. Ela mostrou, se mais não for, que os muitos ditadores que ainda governam na região não são eternos nem é inevitável tolerá-los até que morram de morte natural ou não. Aconteça o que acontecer nas próximas semanas e meses, e ainda que seja interrompida, abortada ou “roubada”, a revolução na Tunísia é precedente dramático, que faz ver como pode começar, a qualquer momento e em vários pontos, também no mundo árabe, a democratização de baixo para cima.
Tradução do colectivo da Vila Vudu
NOTAS
[1] Citado em Marc Semo, “La volte-face tardive de la France,” Liberation, 17/1/2011.
[2] Oumma, 13/1/2011.
[3] Politis.fr, 13/1/2011.
[4] Christophe Ayad, “Autour de Ben Ali, la politique du vide,” Liberation, 11/1/2011.
[5] Marie Kostrz, “Revolution de jasmin: qui pour remplacer Ben Ali en Tunisie,” Rue 89, 6/1/2011.
[6] Le Monde, 19/1/2011.
NTs Béatrice HIBOU, 2006. La force de l’obéissance. Économie politique de la répression en Tunisie. Paris: Ed. La Découverte.
NTs “Allahu akbar” [“Deus é grande, Deus é o maior, Deus me protegerá das armadilhas dos meus inimigos”] é hino religioso, adoptado como Hino Nacional em alguns países islâmicos (http://pt.wikipedia.org/wiki/Allahu_Akbar_(hino)).
Nadia Marzouki, Middle East Report 20 JANEIRO
parceria BUALA / Esquerda.net