Dança Não Dança? Pois dancemos…
Eis como a Society for American Archaeology define o seu campo de acção: «É o estudo do passado humano, antigo e recente, através dos seus restos materiais. Os arqueólogos podem estudar fósseis com milhões de anos dos nossos antepassados em África, ou podem estudar edifícios do século XX da cidade de Nova Iorque.» Não são duas arqueologias, é uma só porque os processos e os métodos são os mesmos independentemente de se aplicarem na savana ou no Empire State Building. E, no entanto, a exposição Dança Não Dança, patente no edifício-sede da Fundação Calouste Gulbenkian, tem como subtítulo “Arqueologias da Nova Dança em Portugal”. Arqueologias, no plural.
Não se trata de uma liberdade curatorial de Ana Bigotte Vieira, Ana Dinger, Carlos Manuel Oliveira e João dos Santos Martins, urdida para justificar a diversidade e a abrangência de âmbitos arqueológicos que é coberta por esta sétima edição do work-in-progress Para uma Timeline a Haver. Há algo mais que implicitamente o parece explicar: a relação com a arqueologia como ciência do passado, distante ou próximo, é pacífica, mas está-lhe subjacente um outro entendimento que, sendo menos legível porque lida com imaterialidades, se faz sentir: o de uma arqueologia do desejo que é necessariamente projectada no futuro, seja este simplesmente sonhado, intencionado ou preparado. O mesmo desejo que levou Fredric Jameson a dedicar-lhe um dos seus mais cativantes escritos, “Archaeologies of the Future: The Desire Called Utopia and Other Science Fictions”, e de novo colocando o título no plural, porque – neste caso verificando a questão no sentido inverso – não é possível “futurizar” sem analisar a história, como muito bem compreendeu esse génio-louco do pan-africanismo que foi Sun Ra.
Segundo a lógica da causalidade, o estabelecimento de uma timeline implica que haja percursos para trás e para adiante, pelo menos se considerarmos o tempo como uma linha contínua, coisa que não é. O gato que poisa no chão não é o mesmo gato que salta, nem o gato intermédio que rompe o ar. Está aqui um dos aspectos mais brilhantes da organização dos conteúdos de Dança Não Dança, e tanto na exposição como no seu catálogo. A timeline é quebrada e os seus pedaços são colados de modo a que surja o remoto ao lado, em baixo ou em cima do quase actual, esbatendo as diferenças entre o que é história e o que é jornalismo, e daí a ênfase nos recortes de artigos saídos na imprensa. Junta-se, a cada instante, a demasia do desejo e da utopia que conduziram a nova dança portuguesa e as expressões que dela resultaram no dia de hoje. Aqui está outro factor assaz interessante: do arquivo que é mostrado, esmiuçado, intercalado e manipulado, na articulação dos seus fragmentos, irrompe algo que (ainda, se alguma vez) não é possível arquivar: uma procura, uma idealização, uma vontade que nunca são realizados, porque o futuro para que apontam, tentativamente, é sempre o futuro de si mesmo, e por isso inalcançável. É essa, aliás, a condição primeira do utópico.
Esse futuro é sempre múltiplo, condizente com um presente que toma várias direcções e um passado que foi sortido. Porque nenhuma unicidade dançante alguma vez existiu, Dança Não Dança é muitas danças e não danças. Melhor: é muitas possibilidades de movimento. Numa das visitas guiadas à exposição, Ana Bigotte Vieira disse mesmo que a última sala do percurso podia ser encarada como a primeira. Na verdade, podemos começar o visionamento seja em que sala for. Julio Cortázar, o autor do romance-jogo “Rayuela”, gostaria com certeza de assistir a algo assim de tão performativo, uma vez que seja com o próprio público a performar.
Do artifício como natureza
Posso afirmar, então, sem exagero que Dança Não Dança é um dispositivo de ficção científica. Para todos os efeitos, é este o último refúgio da formulação de utopias e do questionamento do que essas utopias possam ter de… distópico. Não se surpreendam: afinal, esse aspecto esteve sempre em causa. Leia-se esta passagem da pena de António Ferro, citado no catálogo: «As mulheres e os homens por enquanto ainda têm o parti-pris da forma humana, da forma instituída por Deus, ainda não estão absolutamente artificializados. Ainda há muitos preconceitos a derruir para que a Natureza seja destruída pelo artifício, para que o artifício seja a Natureza…»
Quem? António Joaquim Tavares Ferro, o responsável pela política cultural do Estado Novo, autoridade maior do Secretariado de Propaganda Nacional de Salazar, entusiasta dos Ballets Russes e responsável pela fundação da Companhia Portuguesa de Bailado Verde Gaio, nesta cruzando uns equívocos conceitos de modernidade com a exaltação turística do folclore nacional. Em Dança Não Dança o seu fantasma está por todo o lado, até nas recusas da sua herança que vemos projectadas diagonalmente em telas, na parede por detrás e no chão, dando-nos uma ilusão de tridimensionalidade – corpos (por exemplo, os corpos de Vera Mantero, João Fiadeiro, Margarida Bettencourt, Francisco Camacho, Paulo Ribeiro, Marlene Monteiro Freitas, Sónia Baptista, Diana Niepce) que se movem e manifestam como construções culturais sobre a naturalidade da carne, já não artifícios pós-humanos, mas extroversões e extrapolações propriamente humanas, mesmo quando metamórficas e mutantes no seu devir-animal ou devir-monstro (Deleuze via José Gil).
Dança Não Dança deixa os fantasmas circular nas suas transitoriedades cortadas, remetendo para nós o acto de atar as pontas dos fios. Outro desses fantasmas é Valentim de Barros, internado no Hospital Psiquiátrico Miguel Bombarda pelo fascismo com o diagnóstico de “patologia homossexual”. É um de vários corpos inviabilizados que a nova dança recuperou na sua afirmação de um devir-queer e de um devir-crip. Mas nestas arqueologias fazem-se igualmente sentir algumas ausências, factos que não chegaram a ver a luz do dia, que não se concretizaram. O que teria acontecido se Fernando Lopes-Graça tivesse podido aplicar as suas ideias de juventude sobre o bailado, que eram mais abrangentes do que o lugar da música nele (não pôde, enfrentando constantemente as exclusões de António Ferro, a censura do regime e a perseguição pela PIDE, devido à sua militância comunista)? O que teria mudado no “salto” da dança?
E como seria presentemente a dança se Almada Negreiros tivesse sido fiel às suas ligações com o futurismo, essa vanguarda original de que até Gramsci reconheceu o carácter revolucionário, em vez de apresentar em 1918 algo de tão pueril quanto “O Jardim da Pierrette”? Estes e outros não-eventos também incluem o arquivo e a exposição, como espectros condutores do que não foi e do que é porque não foi. O “se”, a conjectura, a especulação, que assim se impõe é matéria da utopia tanto quanto da ficção científica – a nova dança anunciou-se na década de 1980, precisamente, como hipótese.
Deixar o passado e o presente incompletos
É claro que há outras ausências em Dança Não Dança, ou pelo menos presenças que mal surgem ou que surgem débeis. Gostaríamos que Aldara Bizarro e Sofia Neuparth, dois casos entre outros, fossem mais visíveis, mas é difícil ser exaustivo, eu sei. Aliás, num dos textos do livro que acompanha esta exposição, “Glossariar: Ensaio Permanente”, Carlos Manuel Oliveira e Paula Caspão citam Ariella Azoulay quando esta sustenta que é preciso «manter o passado incompleto», sendo que o presente o é (incompleto) por condição e o futuro não se sabe muito bem quando começou. Afinal, esta timeline está em reformulação e os focos foram variando desde o início do projecto em 2016. Mas há que constatar algo de fundamental: pouquíssima atenção é dada à música nesta versão de Para Uma Timeline a Haver. Carlos “Zíngaro” só é referido (e apenas no catálogo, com falas do próprio) a propósito de “Zoo&lógica”. Ouvimo-lo num ou noutro vídeo, mas não há um tratamento do trabalho ímpar, e vasto (para Paula Massano, Olga Roriz, Margarida Bettencourt, João Natividade, Vasco Wellenkamp, Vera Mantero), que desenvolveu para a nova dança portuguesa. Estranho, tendo em conta que este é o mesmo “Zìngaro” que, no debate “Anos 80. Lastro e Rasto” (2007) realizado na Fundação de Serralves, foi indicado por António Pinto Ribeiro como o ícone que representa essa década.
A música de Nuno Rebelo também é detectável nos áudios da exposição para quem a lembra, mas as únicas alusões escritas que se lhe faz são sobre uma passagem por Cabo Verde e uma inclusão documental numa ficha técnica, não sobre as suas colaborações com Paulo Ribeiro, Vera Mantero, João Fiadeiro ou Aldara Bizarro. É como se o não-feito por Lopes-Graça ficasse em repetição desde esses idos de 1930, ainda que somente por não haver reconhecimento do que se fez. Mas… e se não tivesse havido um Carlos “Zíngaro”, um Nuno Rebelo, que outras voltas daria a nova dança? Que outros desejos seriam os seus? Sabemos já como ficaram imbricadas as utopias dançadas no pós-Lopes-Graça pelas prosas críticas e teóricas que o compositor nos deixou em publicações como a Seara Nova, a Presença e a Vértice, e apenas por elas, mas os contributos de “Zíngaro” e Rebelo ainda estão por avaliar, embora pertençam ao arquivo, e embora haja objectos físicos ao alcance como os discos “Musiques de Scène” (AnAnAnA, 1993), do primeiro, ou “On the Edge” (Raka, 2002), resultado da parceria do segundo com uma personalidade que é admirada por tantos coreógrafos portugueses, Mark Tompkins.
No que a espectralidades respeita há mais a assinalar. Sabendo-se que vários dos protagonistas da nova dança se dedicaram ou dedicam paralelamente à performance-arte, surpreende que a parede entre a dança e a dita performance não seja deitada abaixo em Dança Não Dança, apesar de essa decisão parecer implicada pelo lado “Não Dança” do título. Ficam assim de fora figuras como Susana Mendes Silva, Ritó Natálio – embora tivesse sido contemplado numa edição anterior –, Mário Afonso, as irmãs Andresa e Lígia Soares, Fernanda Eugénio ou Rafa Jacinto. E ficam de fora os artistas brasileiros – exceptuando Gaya Medeiros, que com Ary Zara revisitou, numa actuação, os nus artísticos do início do século XX - imigrados em Portugal que bastante têm contribuído para os recentes impulsos nesse domínio das artes performativas, a exemplo de Daniel Pizamiglio, Joana Levi, Gustavo Ciríaco, Tita Maravilha, Tony Omolu e Rezmorah. Falta ainda assumir Yael Karavan, bailarina-performer nascida em Israel e criada em Florença e em Paris que tem estabelecido entre nós uma obra singular com base no butô. Qualquer arqueologia do movimento que por cá se faça terá alguma vez de os incluir, mas não foi esta a altura: o limite deste estudo arqueológico ficou marcado no ano de 2011. Sabendo-se, além disso, da relevância da dança-teatro dentro do complexo da nova dança portuguesa não damos conta, ainda, de um gancho que relacione a dança com o teatro. O legado do grupo Os Cómicos, no seu corte com o teatro declamado (Ricardo Pais em “As Cuecas”, de 1975) fica por explorar. Estas omissões, estou certo disso, serão cobertas em próximas edições da Para uma Timeline a Haver, porque são bodies that matter, para parafrasear Judith Butler.
Colocações em conflito
Mas adiante. Nas arqueologias agenciadas por Dança Não Dança deparamo-nos, isso sim, com um bem-vindo derrube das fronteiras entre a alta cultura do bailado clássico europeu e a cultura popular nas suas mais diversas disposições, muitas delas de importação dos Estados Unidos, e não só porque a nova dança se alimenta de ambas essas fontes. Há algo nesta colocação em X que vem antes de qualquer tentativa epistemológica e ontológica de definição do que é a nova dança, e algo de iminentemente político, que é a construção de um pensamento democrático radical nos termos em que Chantal Mouffe o vem colocando: a aceitação plena de que é o conflito, o desacordo, e não a busca de consenso, que deve nortear uma sociedade que se pretende livre e igual. Dança Não Dança é uma encenação corporizada deste conflito. As práticas e os conceitos retratados são colocados em confronto, inclusive pela forma como se espalham e distribuem pelo espaço da exposição.
Há cruzamentos, oposições, sobreposições, tangencialidades e espelhamentos cénicos que têm como deliberação problematizar. Cada fórmula levada para as tábuas é assim relativizada, mas é por essa relativização de cada nexo criativo que emergem os questionamentos implicados por uma visão global e colectiva do que é essa tal de “nova dança portuguesa”. Questionamentos a que nunca se dá uma resposta definitiva: as inquirições do passado e do presente são deixadas a pairar, dirigidas para o outro lado do arco arqueológico, o do futuro, o do desejo não satisfeito, não cumprido.
As ferramentas deste olhar para a retaguarda e para os pés do momento com sentido num além são interseccionais, e sim, trata-se da interseccionalidade feminista que foi continuada pela teoria queer, uma interseccionalidade decolonial e antipatriarcal que contesta o capacitismo, o racismo, a misoginia e a homotransfobia, fagulhas de uma normatividade em queda – “cair”, fazer tombar as estátuas, desequilibrar e horizontalizar os corpos (André Lepecki em “Esgotar a Dança”) é, aliás, um recurso coreográfico introduzido pela nova dança. Uma operação pela negativa que tem o propósito de dar lugar àquilo que possa vir quando – wishful thinking – o que é negado finalmente descambar.
Dança Não Dança incorpora as genealogias culturais das danças africanas e das da diáspora negra nas Américas, viajando de Josephine Baker ao Ballet Nacional da Guiné-Bissau – de que se falou num debate – e do charleston à breakdance. A exposição como que observa o processo de contaminação do colonizador ocidental (e português) pela África colonizada e neocolonizada depois das independências, numa claríssima proposta de mudança das mentalidades no próprio berço do arranque esclavagista e imperial do capitalismo, Lisboa – urgente numa altura em que esse mesmo Ocidente, Portugal incluído, está a ser palco de um regresso dos fascismos. O mais perigoso entre eles um fascismo que pretende a sobrevivência do Capital num tempo posterior ao cada vez mais esperado apocalipse, um tempo em que uma entidade biónica e genética ou tecnologicamente intervencionada se substituirá, supostamente, ao humano, o tal corpo artificial imaginado por António Ferro. É esse o empreendimento de Elon Musk, o director executivo da Tesla Motors e da Space X que é o principal aliado de Trump, preparando um cenário de evasão intergaláctica e de settler colonialism de outros planetas. Como poderíamos nós não falar em ficção científica, se a realidade ganhou tais contornos?
O bom vírus a que se abre Dança Não Dança é afrofuturista, dessa linhagem filosófica e estética que nos está a oferecer uma história alternativa e uma concepção outra da ciência, influída pelo realismo mágico, retirando a potencialidade de um futuro que não o supremacista branco. Nos passos que percorrem a exposição ecoam também Samuel R. Delany, Octavia Butler, Jean-Michel Basquiat, Robert Springett, Funkadelic, Earth, Wind and Fire, Lil Nas X, Afrika Bambaataa, Herbie Hancock e o Sun Ra já nestas linhas aludido, com o seu visionarismo mesclado de egiptologia e misticismo UFO. E ecoa a exaltação da negritude de Leopold Senghor, Frantz Fanon, Malcolm X, Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Angela Davis, Audre Lorde, Leroy Jones aka Amiri Baraka, James Baldwin, bell hooks. Nada disso está cartografado ou explicitado, mas pressente-se como uma metanarrativa. Uma metanarrativa com pessoas dentro, corpos, existências. É necessário mencioná-la.
Não é o fim
Não me lembro de alguma vez ter sido equacionado o que é português com tal predisposição psicoterapêutica e transformadora. Se este tipo de trabalho curatorial sobre ruínas é evidentemente pós-moderno, não compactua com o catastrofismo (ou com a ânsia de redenção) que identificamos com a pós-modernidade, aquele que declara solenemente o fim da arte, o fim da ideologia e o fim do mundo, tema que também ocupou Fredric Jameson em “Postmodernism or the Cultural Logic of Late Capitalism”. E muito menos encontramos ironia, a ironia que Lyotard identificou com o pós-modernismo tornado cartilha, se bem que haja humor. Dança Não Dança é a lufada de frescura de que muita precisava a dança contemporânea deste país, porque atesta que nada está acabado, que mais acontecerá embora não se saiba o quê entre tantas pistas, que não se organizou apenas uma comemoração da morte, que haverá oportunidades mais adiante para coser outras junturas e conjunturas, as que faltam. É um reposicionamento, uma reactivação.
Agora dancemos, porque «If I can’t dance, I don’t want to be part of your revolution» (Emma Goldman).
Fotografias ©Maria Abranches – Fundação Calouste Gulbenkian.