Fazer da herança cultural um mote de criação contemporânea

ROOTS é o mais recente projeto de residência artística realizado pelo LAC - Laboratório de Actividades Criativas uma associação cultural sediada na cidade de Lagos, fundada em 1995 e que congrega ativistas de diversas áreas da cultura e das artes. O LAC promove residências artísticas, tirando partido das circunstâncias de espaço do local em que se encontra instalada, no edifício da antiga cadeia comarcal. Esse peculiar «espírito do lugar» possibilita o desenvolvimento de ambientes de criatividade, cruzando experiências e percursos artísticos de uma grande diversidade. É esse ambiente que, paradoxalmente, tem contribuído para transformar aquilo que foi outrora um espaço de privação de liberdade numa incubadora de afirmação de autonomia criativa, cruzando artes visuais e performativas e novas tecnologias de comunicação e que tem afirmado o LAC como uma das mais interessantes incubadoras de criação artística no Algarve.

obra de Abraão Vicenteobra de Abraão Vicente

O projeto ROOTS aborda o tema da escravatura através de uma visão contemporânea, inspirando-se numa descoberta arqueológica efetuada em 2008 no «anel verde», em Lagos, em local conhecido antigamente como Vale da Gafaria. Nesse local, as escavações arqueológicas preventivas que antecederam a construção de um dos parques de estacionamento subterrâneo na cidade, possibilitaram a investigação metódica de toda a área afetada por esse empreendimento – um dos ex-libris da regeneração urbana que a administração municipal pôde levar a cabo na primeira década do século XXI.

Aqueles trabalhos arqueológicos confirmaram a presença no local das ruínas, já soterradas, da antiga leprosaria da cidade, convenientemente situada fora do perímetro das antigas muralhas medievais e que continuou a ser mantido extramuros com a construção da Cerca Nova quinhentista. A leprosaria estava já referenciada na mais antiga planta conhecida da cidade, datável do século XVI e que, por circunstâncias próprias da Monarquia Hispânica dos Filipes, se conserva atualmente no Arquivo Militar de Estocolmo, na Suécia. Contudo, a descoberta mais surpreendente daquela campanha de pesquisas arqueológicas foi a presença de um potente monturo de lixos, acumulados entre os séculos XV e XVII no exterior das muralhas da antiga urbe, verdadeira capital dos Descobrimentos no dealbar da Era Moderna. Durante mais de dois séculos, entre o período em que o Infante Dom Henrique foi donatário da Vila de Lagos e o ocaso da capitalidade da Cidade de Lagos, como residência dos Governadores Militares do Algarve, essa vasta lixeira foi acolhendo os restos mortais de escravos pretos, mais de uma centena e meia que, uma vez falecidos, ali foram sendo arrojados.

LagosLagosJá a «Crónica da Conquista da Guiné», de Gomes Eanes de Zurara, e sobretudo a notável descrição, nela contida, da venda dos 235 negros cativos trazidos por Lançarote de Freitas, ocorrida em Lagos em agosto de 1444, sob o direto comando do Infante, era seguro indicador do papel central desempenhado pela cidade nas rotas da escravatura moderna. Também o edifício histórico da antiga vedoria, conhecido como «Mercado de Escravos», colocava Lagos numa posição privilegiada para a evocação da memória do tráfico negreiro em Portugal e no Mundo. Mas a descoberta arqueológica da antigo lixeira do «anel verde» e a caraterização bioantropológica dos restos humanos ali recuperados vieram dar um direto testemunho material de uma das facetas mais sombrias da história da cidade dos Descobrimentos, sobre a qual sobre a qual praticamente não existem testemunhos literários.

Reclamando essa memória da escravatura, o projeto realizado pelo LAC compaginou-se, simultaneamente, com duas linhas de orientação estratégica que têm vindo a preconizar-se para o desenvolvimento do Algarve no plano cultural: por um lado, para a valorização do Património Cultural da região, criando pontes entre a herança histórica e a criação cultural contemporânea, potenciadoras de novas dinâmicas sociais e criativas; por outro lado, para a internacionalização do potencial criativo endógeno, reforçando as relações em cadeia que estimulam o trabalho artístico e podem contribuir para a afirmação internacional do Algarve no domínio da Economia Criativa.

Em boa hora se efetivou o convite da direção do LAC (Nuno Pereira, Maria Alcobia, Jorge Pereira) aos cinco artistas que protagonizaram a residência ROOTS, para desenvolverem um trabalho criativo, de grande diversidade cultural e miscigenação global e plural. A residência artística aconteceu num ambiente de identificação com raízes comuns, entre criadores que, na sua condição de «deslocados», refletiram sobre a sua própria identidade, num processo de simbiose com a trajetória histórica do local. Essa dupla noção de trajeto – pessoal (física) e local (histórica) – foi também a tónica do Conexões ROOTS, parte de um programa complementar devido, principalmente, à iniciativa de Jorge Rocha, um dos dinâmicos «cuidadores» do Projeto ROOTS, em que tive o gosto de participar juntamente com outros convidados – historiadores, gestores culturais, artistas –, cuja presença, nalguns casos virtual, possibilitou conversas que giraram em torno da descoberta arqueológica do «anel verde» e de projetos que estimulam intercâmbios abarcando processos colaborativos de produção no domínio da Economia Criativa.

Lagos, 3Lagos, 3

O projeto ROOTS é exemplo do que é possível e necessário: que se multipliquem na região as iniciativas deste tipo, de criação artística contemporânea, promovidas por entidades que, embora recebendo pouco, têm sabido ocupar o espaço de um serviço público que o Estado, até agora, tem sido pouco capaz de estruturar convenientemente. Tirando partido de um «espírito do lugar» que possibilita a afirmação de ambientes de criatividade, o LAC tem vindo a mostrar-se à altura desse indispensável cruzamento de experiências e percursos artísticos, os mais diversificados, com múltiplas áreas de produção de conhecimento – em ambientes onde o processo criativo, com partilha de ideias e vivências, não só dá sentido ao lado material que remanesce mas constitui, afinal, a sua essência.

 

por Rui Parreira
Vou lá visitar | 15 Fevereiro 2012 | escravatura, LAC, Lagos, roots