Francisco Vidal x Fronteiras Invisíveis
Se a arte é um território de reflexão, em que medida pode a pintura ser uma arma para criar composições que desafiam as fronteiras do pensamento contemporâneo? De que forma pode a prática artística desconstruir códigos e conceitos, éticos e estéticos, para que estes contribuam para uma reflexão sobre o espaço e o tempo presentes? O que nos une, e o que nos separa, nesse cruzamento de fronteiras invisíveis? Será que, no século XXI, ainda é possível fazer pintura a óleo revolucionária? Ainda podemos acreditar numa atitude insurgente, usando um médium e técnica com mais de 500 anos? Como desafiar esta anacronia futurista, colocando-a em diálogo com o espaço digital dominante na era atual?
Mais do que obter respostas ou debater sobre o lugar da arte na sua relação com o sistema, importa usar a pintura e o desenho como palavra, enquanto veículo para falar sobre uma exposição que pretende invocar a Utopia, como um médium e uma técnica, que permite partilhar pensamento e estimular o diálogo, através de composições visuais que convidam a deambular por flores de algodão pintadas a óleo sobre catanas ou desvendar rostos familiares por entre retratos de ilustres (des)conhecidos que, através de quem são e do que fazem, contribuem para a concretização de uma “Revolução Industrial Africana”, numa “LUUanda” inspirada na obra seminal de José Luandino Vieira que, em si, semeia a raiz e os valores de uma “Utopia Luanda Machine” em coreografia com “Kiekelela” (entrega em Kimbundu). São estes alguns dos títulos atribuídos às séries de trabalhos que integram as narrativas apresentadas nesta exposição, que nos remetem para lugares imaginários, situados algures, entre o real que se rejeita, e o ideal que se espera e deseja. Estas são fronteiras invisíveis que confluem na raiz do percurso de Francisco Vidal - de origem cabo verdiana e angolana, que cresceu em Portugal, viveu em Berlim, Nova Iorque e Luanda – e, é nessa encruzilhada de códigos e referências culturais, que o seu trabalho ganha vida, forma e cor, através do desenho, escultura e instalação, debruçando-se sobre temas que debatem a diáspora africana e a sua herança, no presente e no futuro, desenvolvendo exercícios e estudos, de ética e estética, que servem de bússola para uma leitura deste espaço de partilha de Pensamento Contemporâneo Africano, que acontece muito além das suas latitudes geográficas. É, também, em consequência desta reflexão, que nasce a série “Padrão Crioulo”, composta por retratos desenhados a tinta da china sobre complexas e coloridas composições gráficas, que nos remetem para a estética dos panos africanos, recriando telas que ganham uma dimensão própria, pela força e movimento dos seus traços, através das quais nos são contadas histórias e estórias crioulas, cunhadas com memórias e simbologias, desvendando narrativas, rostos e padrões, que mapeiam estes exercícios de alteridade.
Comunicar através de composições visuais é uma dessas ferramentas, que permite ativar pensamento e combater uma complexa realidade na qual somos reféns das mais diversas formas dominantes de disseminação de informação que se impõem em 2019, num mundo fissurado, uma vez mais, por fronteiras invisíveis, de tempo e espaço, entre as quais a televisão, livros, jornais, revistas, publicidade, e, a mais presente e ofuscante de todas, a internet. A pintura e o desenho, a par da escultura, são derradeiros resistentes, que (sobre)vivem em verdade neste mundo predominantemente virtual e tecnológico, tendo como base a matéria prima, como técnica e médium, em coreografia com o gesto humano, que lhe atribui uma singularidade única, pela beleza do erro que dá forma, cor e textura ao seu processo e resultado. Por alguma razão a tinta a óleo é uma tinta de secagem lenta. Tal processo implica um ritual de espera, entrega, contemplação, maturação e descoberta – exercícios que nos ligam à essência e à matéria, fintando o efémero e a fugacidade que, velozmente, se apropriam, cada vez mais, do tempo em que vivemos. É essa a verdade da pintura e do desenho - nunca mentem, apenas podem usar a verdade como matéria prima, se não, não são pintura nem desenho. São poéticos sobreviventes de um outro tempo, pré internet, independentes, intemporais, resilientes e não alinhados - na estética e na ética –, gestos delicados que refletem atos de bravura e resistência, ao encontro do espírito que está na génese de um espaço assumidamente não alinhado, quase Utópico, poeticamente falando, que dá origem à série “NAM – Non Aligned Movement” - na qual os contornos do desenho desafiam as fronteiras cromáticas da pintura.
É nesta intersecção, de cores e formas não alinhadas, que as pessoas retratadas nesta série, adquirem um lugar de pódio, dando voz às várias vozes que pretendem representar através da sua. Uma estrutura de pessoas que, de forma determinante em questões essenciais, contribuem para uma mudança de paradigma e de mentalidade, através da maneira como se relacionam em comunidade, e como usam a sua palavra e conhecimento, para fazerem a diferença, agindo em coerência, consistência e consequência com as suas convicções. Entre eles, destacam-se os retratos de pessoas com vozes mais silenciosas/silenciadas às mais vociferantes - Poetas, Artistas, Ativistas; Políticos, Escritores, Músicos, Pintores; Crianças da Roça São João dos Angolares, em São Tomé; Albinos de Angola; Adolescentes do Bairro da Outurela; Dj’s produtores afrodescendentes da periferia de Lisboa; entre outros protagonistas de uma Revolução de Pensamento Contemporâneo Africano.
Nunca foi tão imperativo repensarmos a nossa forma de estar no mundo, e, é ao encontro desta necessidade de combater mentalidades e atitudes que possam condicionar a possibilidade de fazer acontecer mais além deste tempo, que devemos lutar por uma poesia fértil, transparente e inteligente que, neste espaço expositivo, começa com um simples gesto de pintura. É neste território, de reflexão e de expressão, individual e coletiva, que a arte cumpre um papel fundamental, enquanto motor de mudança, reflexo do tempo presente, e património de amanhã – um lugar Manifesto, entre o Real e o Ideal, como o que é invocado nesta exposição, e celebrado através da pintura e do desenho. Cores e formas que, usadas como armas de paz, neste espaço de reivindicação, insurgem-se para desafiar as fronteiras do pensamento contemporâneo, em confronto poético com um conjunto de frases emblemáticas (inscritas nas paredes e tetos da exposição), proferidas por autores, intemporais, como: Nina Simone, Pablo Picasso, Jean-Michel Basquiat, Henri Matisse, Simone de Beauvoir, Jimi Hendrix, John Coltrane, Miles Davis, Jean-Paul Sartre, Kurt Cobain, Muhammad Ali, entre outros.
NAM
NOT A MUSEUM é um projeto/espaço cultural independente que, no contexto do programa paralelo da ArCo Lisboa 2019, apresenta duas exposições: “ÁFRICA DIVERSIDADE COMUM” - Exposição coletiva, com curadoria de Manuel Dias dos Santos, com obras de artistas de Angola, Cabo-Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe; e “FRONTEIRAS INVISÍVEIS” - Exposição individual de Francisco Vidal, com curadoria NAM. Com inauguração prevista para o dia 16 de maio, estas duas mostras de artes visuais convidam a uma incursão por uma seleção de obras de artistas de África e da sua Diáspora, que falam português. As exposições podem ser visitadas até 25 de maio, das 14h00 às 18h30.