Kaydara - introdução
Introdução
Kaydara é o título de uma história didáctica que faz parte do ensino tradicional do povo fula da região da curva do rio Níger.
É habitual o mestre contar a história em serões, perante um público de jovens e idosos. Na maior parte das vezes, conta apenas fragmentos; chega ao círculo dos aldeões, senta-se, conta a história, pára e só retoma o seu relato três meses mais tarde. Porém, por vezes, conta-a de uma só vez durante “as longas noites da estação fria”, enquanto um guitarrista o acompanha. Ou pode começar subitamente a desenvolver um dos símbolos, por ocasião de um acontecimento que tenha analogias com esse mesmo símbolo.
Diz, pois, o mestre expressamente no início da sua história: “Sou fútil, útil e instruidor”.
No entanto, ele não contará Kaydara da mesma forma para crianças ou para eruditos. Há um resumo do conto para os ouvintes não informados, e um conto esotérico a que só faz alusão perante aqueles que o conhecem ou são capazes de o compreender. Qualquer pessoa pode ter acesso ao conto. Depende apenas do seu grau de maturidade intelectual. É assim que o cativo ou o servo conseguem muitas vezes tornar-se os herdeiros espirituais do seu senhor, porque a vida lhes deu a oportunidade de o ouvir mais vezes do que qualquer outra pessoa.
Um mestre sem herdeiro pode também deixar os seus conhecimentos à sua filha, que, por sua vez, iniciará a sociedade1. E este é apenas um dos indícios do estatuto da mulher Fula, tão privilegiada entre as de outras etnias africanas!
No entanto, as mulheres interessam-se pouco pelas ciências místicas, preferindo geralmente dedicar-se aos segredos da cozinha (que, aliás, é sagrada, com todo um ritual), e há poucas mulheres “iniciadas” na sociedade Fula. (Mas este “desinteresse” é, sem dúvida, o resultado de um condicionamento, e não devemos julgar prematuramente a falta de capacidade de uma mulher para penetrar na filosofia do seu grupo).
Assim, em princípio, qualquer indivíduo do grupo pode tornar-se um “iniciado”, consoante o tempo que consagra à escuta do mestre e o grau de compreensão que a sua inteligência poderá alcançar. Com base nestes dois critérios, dá-se uma selecção natural que faz com que, em cada dez adeptos, apenas um ou dois consigam evoluir com desenvoltura nos arcanos desse magistral ensinamento.
Mas não nos deixemos iludir! O facto de ser oral, “igualitário” e anedótico, não significa que seja fácil de ensinar.
É verdade que o mestre fala quase exclusivamente por imagens, porque sabe que o Africano o ouve sem se cansar, enquanto as ideias abstractas parecem secas e cansativas. Mas
não nos enganemos: quase todas as imagens dissimulam, como uma armadilha, um símbolo e, por detrás do símbolo, uma ideia muitas vezes complexa. O mesmo símbolo pode por vezes transmitir uma dúzia de ideias diferentes (os atributos do camaleão), para não falar da referência frequente ao esoterismo dos números.
Não se diz que “o número é a ilusão do mistério”, e que, se existe o signo (sigui) e a palavra (woliide), o número (limngo) é o produto da palavra e do signo, e, portanto, mais essencial e mais misterioso?
Tal como a imagem, o número deve ser recordado e estudado em profundidade, porque nunca é uma questão de acaso na iniciação.
Sob a sua aparência quase ingénua, de conto de fadas, a narração iniciática exige uma atenção constante do discípulo e uma ginástica intelectual espantosa daquele que, em medi- tação solitária, terá de lhe extrair a “essência”.
No panteão Fula há, antes de mais, Guéno2, o eterno, omnipotente, criador, preservador e destruidor, o que dá a vida e a tira. O mal, tal como o bem, vem de Guéno, e a prece deixa-o bem claro: “Dá-me o teu bem e não o teu mal; e se me deres o teu mal, dá-me a força para suportá-lo”. A preguiça, os vícios, as guerras, tudo vem de Guéno. E achamos isto normal, porque a sua autoridade é inquestionável, e Guéno não é mais responsável perante os homens do que um pai perante os seus filhos.
O Fula nunca se revolta contra os seus pais, nunca os considera injustos, mesmo que estes o maltratem. A sua noção de justiça depende da noção do direito. Os pais, o chefe, o mais-velho, têm todos os direitos. Se um deles dividir os haveres de forma desigual e um jovem reclamar, a resposta é: “São as partes de Guéno iguais?”
“Não.”
“Então toma o que te dão, e quando for a tua vez de par- tilhar, podes fazer o que quiseres”.
A tradição Fula desconhece Satanás, que polariza as más intenções no Islão e no Cristianismo. Quando o diabo é mencionado no conto, é utilizada uma palavra emprestada. Na realidade, trata-se de um génio. Porque Guéno não está em contacto directo com os humanos. Antes de mais, existem algumas das suas “emanações”, espécies de espíritos sobrenaturais que são como que os “intermediários de Guéno”. Como Kaydara, o iniciador, Feddo-Dewal, a maléfica, ou os deuses originais a quem se oferecem sacrifícios: Ham, Dem, Yer, etc. Depois, há um número infinito de génios específicos dos elementos (génios do ar, das ondas, do fogo) ou ao serviço de um dos espíritos sobrenaturais (génios de Kaydara) ou que vagueiam livremente na natureza, ajudando ou atormentando a humanidade. Um belo sonho será enviado por um génio bom, uma suspeita desagradável será obra de um génio mau. Por último, existem os génios que desempenham funções muito especializadas, os génios da cozinha, os génios da caça, os génios do campo, os génios do gado, dos quais Koumen3 é o chefe.
O resultado é uma “população oculta”, extremamente densa, que vive no “país das trevas”, onde vivem os “ocultos” (soudibés), espíritos invisíveis, mas reencarnáveis de todos os géneros.
Este país é o intermediário entre o “país da luz”, onde vivem os visíveis de todos os géneros, e o “país da noite profunda”, a morada das almas dos mortos ou seres-por-nascer, que inclui não só as dos humanos, mas também as almas dos ani- mais e das plantas. Estes são os três países dos Fula.
Então, quando, como refrão, falamos nesta história do “país dos anões”, este país é o país das trevas e, particularmente, a região ocupada pelos Yaamana-Juuju, génios- pigmeus4, servos de Kaydara.
Kaydara é, portanto, “um raio proveniente do centro que é Guéno”. Polimorfo quando se faz visível, escolhe preferencialmente as feições de velhinhos deformados ou mendigos para melhor enganar os oportunistas ou os superficiais.
Não fomos capazes de determinar o significado do seu nome com precisão. Se analisarmos a etimologia, Dara = pa- rar; Gay = aqui, de que Kay seria uma corruptela eufónica. Então Kaydara poderia significar “pára aqui”: meta, limite, fronteira, fim.
Mas, por que é isso uma meta, por que desejar alcançar, a qualquer preço, através de 1000 provações, o misterioso Kaydara? Porque no início da história não foi mencionado o porquê da espantosa viagem que Hammadi, Hamtoudo e Dembourou empreendem.
É que Kaydara é justamente o deus do ouro e do conhecimento.
Deus do ouro, está como o ouro, debaixo da terra, e assim toda a jornada dos aventureiros será subterrânea. Eles terão que passar por 11 camadas correspondentes a 11 símbolos e 11 provações, para se encontrarem diante do espírito sobrenatural que lhes concede o metal sagrado5.
O metal real, que é um dos mitos básicos em toda a África Ocidental, por que se tornou esotérico, muito antes de receber um valor monetário? “Porque não enferruja nem se suja”; porque é o único metal “que se torna algodão sem deixar de ser ferro” e que “com um grama de ouro podemos fazer um fio fino como um cabelo para cercar uma aldeia inteira”; porque finalmente “o ouro é o fundamento do conhecimento, mas, se confundirmos o conhecimento e o fundamento, ele cai-nos em cima e esmaga-nos”.
Nesta última máxima, aparece claramente a associação de ouro-conhecimento, tal como se apresenta no deus Kaydara.
Se o ouro, no entanto, mais do que o conhecimento, atrai aventureiros, é o conhecimento que caracteriza Kaydara e determina até mesmo a sua aparência. Este monstro com 7 cabeças, 12 braços, 30 pés, empoleirado num trono com 4 pés que gira constantemente é a própria estrutura do mundo e do tempo, com os 7 dias da semana, os 12 meses e os 30 dias do mês, é o movimento perpétuo da Terra (que os Fula adivinharam muito antes de Copérnico!); os 4 elementos fundamentais, os 4 cataclismos que, de acordo com as previsões, destruirão a terra dos homens.
Conhecimento da ordem cósmica, mas também da desordem: dualismo em tudo e aniquilamento dos seres por outros seres. Conhecimento das leis sociais, mas também das leis psicológicas: cada símbolo encontrado no caminho, para Kaydara, corresponde a um tipo humano, com o seu lado positivo e o seu lado negativo. Os três conselhos dados pelo próprio Kaydara visam tornar absolutas as leis da natureza e as dos ancestrais – sem revelar o seu segredo. Ai daqueles que os não respeitem. Mas o conhecimento do deus do conhecimento é insondável e, provavelmente, é por isso chamado de “limite”, porque é, de facto, o limite do conhecimento humano. É “o distante, e tão próximo” simultaneamente, porque acreditamos que o entendemos facilmente, mesmo sendo inesgotável. Não é por acaso que, no final, Kaydara6 dá três passos para trás e voa para longe, assim que o homem que ele acaba de iniciar o abraça, num movimento de alegria: a distância e o véu, que separam o mestre do discípulo, o deus do homem e o conhecimento das suas abordagens imperfeitas, não devem permanecer sempre?
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A iniciação de Kaydara terá três fases distintas.
A primeira está inteiramente contida na busca dos viajantes pelo país dos anões. Itinerário cheio de provações, onde lhes aparecem seres “carregados” de um significado que lhes escapa: o camaleão, o morcego, o escorpião, a lagoa das serpentes, o bode lascivo, os 3 poços: tantos símbolos dos quais Kaydara detém a chave, tantos “graus” na iniciação que o adepto deve transpor; é necessária uma obediência cega, e qualquer pergunta permanece por enquanto sem resposta: “este é o mistério de Kaydara”.
Essa jornada subterrânea simboliza a penetração no reino esotérico, enquanto o ar e o espaço celestial são o reino do exoterismo.
Esta primeira fase termina com o encontro de Kaydara e a recompensa do esforço com a doação dos 9 bois carregados de ouro. Mas Kaydara dará ouro, não dá ainda o conhecimento. A segunda fase descreverá o retorno dos viajantes à superfície da terra e, durante este segundo período experimental, o seu comportamento determinará o seu destino. Pois o ouro adquirido tão meticulosamente é ambíguo; pode ser usado para a conquista de riqueza, poder ou conhecimento. Os dois companheiros de Hammadi, obcecados pela sua recente fortuna, perderão toda a prudência e a sua ganância fá-los-á violar as proibições. Eles vão perder a vida. Assim, o ouro ter-se-á tornado a própria causa da morte deles.
Apenas Hammadi mantém a cabeça fria e, lembrando que “o ouro é apenas a base do conhecimento”, pensará usá-lo para adquirir sabedoria. A sua atitude cheia de atenção e respeito para com aqueles que ele supõe serem os detentores dos segredos essenciais, fará com que se torne, sem o ter procurado, rico e poderoso, e até rei do seu próprio país.
Mas a história não termina com este final feliz um pouco infantil. A iniciação não está concluída. E Hammadi, em vez de se aburguesar numa felicidade fácil, permanece distante da sua situação e do seu papel, e sempre ansioso para encontrar o iniciador supremo que lhe revelará os símbolos de Kaydara.
Um dia, Kaydara aparece-lhe, de aspecto insignificante, como era seu hábito. Imediatamente Hammadi pressente o Mestre e recebe-o com a mais absoluta deferência. O mendigo é o próprio Kaydara e, desta vez, revelará ao discípulo perseverante e merecedor os símbolos do país dos anões. Hammadi desfrutará finalmente da verdadeira alegria.
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Durante esta primeira abordagem, não podemos extrair todo o sumo desta história fula. É que ela excede infinitamente a sua anedota!
Trata-se, antes de tudo, no seu modo de desenvolvimento, de uma pedagogia especializada, que se compreende viva, em acção. Resta apenas deduzir a teoria. É necessário detalhar a riqueza do conteúdo? Nela se sobrepõem toda uma ética social e pessoal, uma tipologia original de personagens ou temperamentos, uma introdução à linguagem simbólica dos espíritos da natureza, enfim, como contraponto, a constante referência a uma cosmogonia esotérica, necessária apenas para “queixos cabeludos e calcanhares gretados”, o que nos faz vislumbrar essas “realidades superiores”7, cuja importância escapa ao comum dos mortais.
Deste modo, o presente “conto” é tão místico e filosófico, que nos sentimos um pouco confusos quando chamamos a atenção para a sua beleza formal. É sério falar de literatura quando se olha para o abismo da Weltanschauung africana?
No entanto, não podemos agora passar em silêncio sobre a poesia delicada que atravessa como um fio de ouro, ao longo de todo o enredo da história, e a faz brilhar com o fogo das suas imagens e ritmo. É ela que o torna um “passatempo delicioso”. Por isso, ao invés de dizer, como se tornou habitual, que a poesia, e até a estética africanas, são funcionais, portanto puramente utilitárias, eu preferiria inverter os termos desse raciocínio ocidental e sugerir que em África “o belo actuar” e o grande saber são inseparáveis da linguagem culta.
Abidjan, Março de 1966
Kaydara, de Amadou Hampâté Bâ, Falas Afrikanas
Tradução do livro: Malé Kassé e Zetho Cunha Gonçalves
Lançamento 12 de abril, 17h30, com performance de Braima Galissá e Michel Té- na Casa Mocambo, Lisboa,
- 1. No entanto, ela usará então roupas de homem, tal como a filha iniciada nos segredos dos caçadores ou dos pastores. Isto para respeitar, pelo menos na aparência, a especificidade das tarefas, segundo o costume. Entre os Bambara, onde existem associações de mulheres, o homem iniciado nos seus ritos usará também roupas de mulher.
- 2. Yonqudo = ser eterno; Ngendi = cidade eterna.
- 3. Koumen: cf. trabalhos de H. Bâ e G. Dieterlen. (Ver referências bibliográficas no final NE)
- 4. Pigmeus: a teoria de que eles são os primeiros ocupantes de África explicaria o seu papel sobrenatural nas lendas.
- 5. Não conhecemos o número exacto de símbolos. H. Bâ, em mais de 25 anos de pesquisa, encontrou 11. Mas 11 é o número sagrado por excelência, chave para todo o esoterismo muçulmano, Bambara. É isso influência ou coincidência?
- 6. Haveria outra vez influência ou concordância com Khadru: quem é o iniciador de todos os profetas na tradição islâmica, incluindo Moisés? No entanto, Kaydara é conhecido nessa tradição fula, muito antes da penetração islâmica e, por outro lado, é desconhecido entre as tribos vizinhas, como bambaras, etc.
- 7. Segundo a feliz expressão da Sr.ª Dieterlen em “Essai sur la religion bambara”. N. E.: Referências bibliográficas no final.