La Ruta del Che: os últimos passos de Ernesto Che Guevara cinquenta anos após seu assassinato
“Acertem apenas nas pernas!”. Não se sabe exatamente de quem veio a ordem, no dia 9 de outubro de 1967. Segundo Adalit Valderrama Flores, um dos guias turísticos da região, talvez respaldado pela própria narrativa de Fidel Castro em sua introdução ao Diário de Che na Bolívia1, o major Miguel Ayoroa e o coronel Andrés Selnich teriam sido os responsáveis pela ordem. Ambos faziam parte do seleto grupo de militares bolivianos treinados pela agência de espionagem norte-americana para capturar Ernesto Che Guevara e barrar os planos de criação de um campo de treinamento guerrilheiro no país com a finalidade de irradiar revoluções na América do Sul, a começar pela própria Bolívia, criando uma nova frente de guerra para os Estados Unidos, além do Vietnã.
Ficou a cargo do suboficial Mário Terán a ingrata tarefa de assassinar Che Guevara rendido e feito prisioneiro desde o dia anterior numa emboscada na Quebrada do Yuro - localidade próxima a La Higuera, em uma região montanhosa de mata fechada situada no departamento de Santa Cruz de la Sierra, a cerca de dois mil metros de altitude. Hesitante, e supostamente embriagado, Terán se recusou a assassinar o prisioneiro desarmado que tinha em mãos. Vacilante, voltou para ponderar com seus superiores sobre a missão ingrata da qual estava incubido, ao que lhe ordenaram, intransigentes, que retomasse a tarefa sem mais.
A decisão de assassinar Che Guevara foi tomada pelo próprio presidente boliviano René Barrientos Ortuño e pela alta cúpula militar do país. Seria ingênuo acreditar que agentes da CIA em missão na Bolívia não tenham dado o aval para tal decisão. A morte de Che já havia sido divulgada pelo governo boliviano no dia anterior, afirmando que o revolucionário não resistira aos ferimentos resultados da troca de tiros com o exército no momento de sua captura. Daí a necessidade de metralhar apenas as pernas e manter peito e rosto intactos, evitando o aparecimento de ferimentos recentes.
Tem então início um verdadeiro ritual fúnebre. Seu corpo é levado de helicóptero para a pequena cidade de Vallegrande, então com seis mil habitantes. Che permanece durante horas no necrotério do Hospital Municipal Señor de Malta, o único da cidade, onde suas mãos foram decepadas, alegando-se a necessidade de recolhimento das impressões digitais para averiguar sua identidade. Os restos mortais de Che foram então exibidos ao longo dos dias 9 e 10 de dezembro na lavanderia do hospital.
Além de jornalistas internacionais e diversos políticos, a população de Vallegrande decide conhecer o famoso revolucionário de quem tanto havia escutado pela rádio ao longo dos últimos meses, e sobre o qual desconheciam praticamente tudo, salvo de que seria um terrorista perigoso. O governo de Barrientos utilizava-se de emissões radiofônicas como elemento fundamental na estratégia de neutralizar e vencer a guerrilha, impedindo que camponeses pobres pudessem aderir ao movimento e recriassem a experiência de Sierra Maestra.
O tratamento dispensado pelas autoridades bolivianas ao corpo de Che pode ser interpretado como um verdadeiro procedimento ritual, que ressalta o teatro do poder que ali se encenava: um corpo sem vida, fragilizado, indefeso, subjugado, exibido e apresentado como signo inequívoco da vitória e poder sobre o inimigo. Uma ritualística como pedagogia política: não ousem!
Sete camiões saíram do Hospital Municipal Señor de Malta. Todos tinham destinos desconhecidos e apenas um deles continha o corpo de Che Guevara. A intenção era clara: evitar que se conhecesse o paradeiro de seu corpo e, assim, impedir que sua imagem convertera-se em um símbolo inspirador ao eliminar qualquer traço de memória. O próprio local de seu assassinato, na escola comunal de La Huiguera, foi convertido em uma fossa sanitária.
Como nas tragédias gregas de heróis desaparecidos que desafiaram a vida e a morte, talvez nada mais relevante para a criação do mito que se tornara Che que o desaparecimento de seu corpo. Hoje se sabe - ou pelo menos se acredita, já que o que mais importa quando se trata da História não é a mera concatenação fatual, mas as invenções ao redor daquilo que se acredita ter ocorrido - que um dos camiões que saiu do hospital em outubro de 1967 deixou o corpo de Che em um terreno localizado entre a pista de pouso do pequeno aeroporto local e o lixão municipal.
Nos anos 1990, um acordo de cooperação trinacional envolvendo Argentina, Bolívia e Cuba, com a participação de renomados antropólogos forenses, estabeleceu como objetivo a busca pelos restos mortais de Che Guevara e dos corpos dos outros guerrilheiros em fossas comuns em áreas afastadas do centro da cidade de Vallegrande. Começa aí a transformação daquilo que um dia fora segredo de Estado em uma atração turística marcada por um tom kitsch e incentivada pelo governo de Evo Morales, que tem início em 2006, e desde então articula sucessivas reeleições.
Em uma época em que tudo pode servir de mote para negócios e empreendimentos, os últimos passos daquele que se convertera no ícone da revolta latino-americana parece não poder ter outro destino senão o da exploração turística. O diferencial aqui, entretanto, parece ser que o projeto turístico de La Ruta del Che objetiva criar uma espécie de genealogia política para o governo de Evo, com discurso marcadamente de esquerda - ainda que sua prática esteja sujeito a questionamentos contundentes, inclusive pela esquerda não alinhada ao governo.
Existem diversos planos turísticos para refazer a Ruta del Che. Os preços variam de acordo com o número de dias e localidades visitadas, podendo alcançar até 800 dólares por pessoa. Resolvemos empreender o caminho por nossa própria conta, tomando uma van que com destino a Vallegrande, saindo de um estacionamento escondido na rua atrás de uma grande avenida de Santa Cruz de la Sierra.
O trajeto de cinco horas até Vallegrande é tão bonito quanto assustador. A rodovia não é totalmente pavimentada; e vans, caminhões, ônibus e caminhonetas se ultrapassam constantemente, tanto na descida como na subida, nas curvas ou em retas. A apreensão dos passageiros é compensada pela vista marcada por montanhas e vales, embora também se vejam planaltos disputados por cidades e terrenos de plantio.
Uma imensa mata fechada, entrecortada por diversos rios, preenchendo montanhas e vales, podia ser avistada da estrada. Foi por essa mata que Che Guevara e seu minúsculo grupo de guerrilheiros em treinamento enfrentaram durante dez meses o exército boliviano, após serem descobertos.
“Com um tiro na cabeça, assim se resolve’’, comentou comigo um senhor boliviano ao falar de Evo Morales, no Bar del Don Bigote, na rodoviária de Puerto Quijarro, no pantanal boliviano e fronteira com o Brasil. “E veja que não vai demorar’’, completava, com o dedo em riste. Com ar ainda exasperado, embora evidentemente feliz por conversar com alguém que vinha de São Paulo, o senhor, que finalmente nunca se apresentara, contava com ânimo que havia crescido em um vagão de trem entre Santa Cruz de la Sierra e Campo Grande. Seu pai era ferroviário e tinha um vagão-casa: “Talvez por isso eu tenha me acostumado com a estrada e não consigo ficar em um lugar só’’, refletindo acerca da condição de motorista de caminhão entre São Paulo e Santa Cruz, vivendo uma semana em cada cidade.
Como não poderia deixar de ser, as questões políticas do país se fizeram presentes desde os primeiros momentos na Bolívia. Muitas vezes em conversas instigadas por nossa curiosidade, outras pela própria vontade das pessoas de compartilhar suas reflexões. A divisão política do país se sente nas próprias ruas, com as incontáveis pichações a favor da reeleição de Evo Morales, tão numerosas como aquelas contrárias à reeleição, entre tantas outras pichações ao redor das propostas do governo.
Seria impreciso e perigoso mergulhar de cabeça nas contradições ao redor da figura de Evo e nos processos macropolíticos pelos quais o país vem passando, e que se concentram em sua figura, nas poucas páginas dessa reportagem. A polarização aparenta estar entre aqueles que, de um lado, o veem como um político corrupto, próximo do narcotráfico, ambicioso, com posturas despóticas, além de um falso indígena e péssimo administrador; e aqueles que, por outro lado, o concebem como alguém que fez pelo país aquilo que nenhum presidente fizera antes, em termos de desenvolvimento de infraestrutura e combate à pobreza e ao racismo. Ainda assim, não faltam aqueles que fazem uma crítica à esquerda do governo, enfocando-se na maneira como Evo se vale de um discurso indígena, próximo às propostas do buen vivir, embora defenda interesses de grandes empresas em confronto direto aos direitos indígenas, como sojeiros e obras de infraestrutura questionáveis.
Num país cindido, as comemorações oficiais ao redor da morte de Che Guevara foram mais um motivo de divisão de opiniões. Evo visitou Vallegrande no dia 7 de outubro de 2017, participando de uma marcha com alguns guerrilheiros que fizeram parte do grupo de Che Guevara cinquenta anos antes, e participantes de diversos movimentos sociais. Moradores de Vallegrande contam que nunca viram a cidade tão cheia - inclusive mais do que no carnaval, evento mais importante da localidade e um dos maiores do país.
Para opositores do governo, a comemoração era uma afronta nacional. Segundo setores da oposição, o governo deveria organizar atos em homenagem aos soldados bolivianos que morreram defendendo o país de um invasor estrangeiro. “Nenhum boliviano sabe quem foi Che Guevara! O boliviano médio não está nem aí para o Che Guevara!’’, afirmava indignada Blanca, uma jovem publicitária que me pediu para não identificar seu sobrenome. Segundo ela, aqueles que o governo chama de participantes de movimentos sociais não passavam de miseráveis que receberam alguns trocados para estarem presentes.
Por mais controversas que sejam as opiniões quanto ao governo de Evo, em um ponto todas as pessoas que entrevistamos parecem concordar: o fato de um indígena passar a ocupar a posição máxima do país mudou completamente as formas pelas quais o racismo estrutura a vida cotidiana. Muitos veem tal transformação com bons olhos, outros, principalmente pessoas brancas, reclamam de uma suposta perseguição.
Replicar a experiência cubana de Sierra Maestra era o principal objetivo de Che Guevara na Bolívia. Diversas guerrilhas latino-americanas, como a na Colômbia e na Nicarágua, passaram a se inspirar na experiência cubana, o que certamente incentivou Che nessa nova empreitada. O país sul-americano parecia um terreno fértil, devido aos fortes movimentos de mineradores e camponeses que convulsionaram a política nacional ao longo dos anos 50. Além disso, a Bolívia tem uma posição central no subcontinente, com fronteiras com o Chile, o Paraguai, a Argentina, o Brasil e o Peru, o que facilitaria o trânsito de guerrilheiros e a expansão da revolução para esses países.
Entretanto, todos parecem concordar que houve erros estratégicos fundamentais. Che entrou disfarçado em La Paz, assemelhando-se a um comerciante de meia idade, e seguiu para a região montanhosa do departamento de Santa Cruz para realizar treinamentos guerrilheiros. O plano era começar a luta revolucionária propriamente dita apenas ao redor de La Paz. Assim, quando foram descobertos, encontravam-se em franca desvantagem devido a altitude e a densidade da mata, além dos declives do terreno que obrigavam guerrilheiros ainda em etapa de formação a desgastes físicos sobre-humanos - a começar pelo próprio Che, que reclama incessantemente dos famosos ataques de asma que lhe acometiam.
Além disso, uma análise política equivocada teria causado grandes dificuldades para a instauração da guerrilha. Muito embora o presidente Barrientos tivesse ascendido ao poder por meio de um golpe militar em 1964, era popular e tinha um amplo apoio dos camponeses e militares, em um governo que ficou marcado pelo Pacto Militar Campesino, além da simpatia de Washington. Para o missionário de origem quechua Juan Carlos Rodríguez Villigas, que visitava a tumba de Che em Vallegrande com amigos e familiares, “se Che tivesse chegado em 1953 teríamos tido uma nova Cuba na Bolívia’’, referindo-se ao importante movimento político dos mineiros de Potosí que convulsionou o país e terminou reprimido pelo Estado.
Para o historiador britânico Eric Hobsbawm, em livro recentemente lançado acerca das experiências revolucionárias latino-americanas2, a experiência da guerrilha de Che na Bolívia estava fadada ao fracasso desde o início, por conta de um erro político fundamental: “eles presumiram que, estando presentes várias das condições objetivas para a revolução, seria decisivo para deflagrá-la o puro voluntarismo, a decisão de algumas pessoas de fora. Em consequência, grupos pequenos, em alguns casos em números muito insuficiente, ficaram isolados e foram vítimas relativamente fáceis de seus inimigos”3. Hobsbawm argumenta que todos os movimentos revolucionários que perduraram no continente tinham uma forte base camponesa, e importantes conexões com guerrilheiros urbanos.
A campanha de ódio disseminada pelo exército boliviano nas rádios foi o elemento decisivo para a derrota de Che Guevara. Sierra Maestra se tornara em grande parte possível pelo apoio popular que Fidel e seus guerrilheiros receberam diante do ódio generalizado da população a Fulgencio Batista - situação em nada similar a de Barrientos na Bolívia. Diante do receio dos camponeses bolivianos, incluindo grupos indígenas que não falavam espanhol, e com os quais os guerrilheiros tinham dificuldades de comunicação, a condição de vida na mata se tornava mais e mais dura sem acesso a alimentos e água. Don Lorencio Aguillar Terán, hoje proprietário de um pequeno terreno na região montanhosa acima da Quebrada del Yuro, e com mais de setenta anos, era adolescente quando Che foi morto: “Não sabíamos nada, e de um dia para o outro apareceram guerrilheiros dizendo que estavam treinando para ir a La Paz lutar. Depois do que aconteceu, as pessoas ficaram com muito medo”.
Nas páginas de seu diário, Che parece mais preocupado com a dificuldade de estabelecer um bom contato com os camponeses diante da campanha de ódio disseminada pelas rádios, do que com os enfrentamentos com o exército boliviano destreinado, que ele comparava a ovelhas. A cilada que finalmente capturou os guerrilheiros foi organizada a partir da denúncia de um camponês que verificou uma movimentação estranha em seu milharal no meio da noite, e não hesitou em chamar o exército.
Perguntado o que ele imaginava que teria acontecido com a Bolívia se a guerrilha tivesse vencido, Don Lorencio respondeu: “talvez estivesse melhor. Porque agora trabalho, muito, muito, e estou muito cansado’’.
Se com a superexposição do corpo de Che Guevara o governo pretendia demonstrar a força e estabilidade do seu governo, criando um marco visual e um sentimento claro de sua força, a teatralidade do ritual parece assegurar a Che uma verdadeira aura heroica. O assassinato do jovem de 39 anos, que abrira mão de uma confortável posição institucional na política cubana para voltar às duras condições guerrilheiras, lhe permitiu superar a morte e entrar definitivamente para a história.
Fim da história? Fim de um ciclo progressista na América Latina? Se o ângulo de análise escolhido para refletir sobre o mundo atual enfoca-se apenas no plano da governabilidade macroestrutural, o plano revolucionário e a figura de Che pertencem a um passado longínquo, sem conexões com um presente para o qual inexistem alternativas. Entretanto, ao mudar o ângulo de observação, e a depender das pichações nos principais pontos turísticos de La Ruta del Che, com a presença de frases e siglas fazendo referências a diversos movimentos estudantis latino-americanos, ao Exército Zapatista de Libertação Nacional, ao MST, entre tantos outros, indicam um mundo em constante disputa. A imagem que se entrevê do futuro da América Latina não poderia estar mais distante da de um mar de calmaria.