ManaKamba Milonga
A nossa Melita (Amélia Aguiar) trata-nos por manamiga. Tu optaste pelo popular e actualizado mizirmã. Nos idos e belos tempos revolucionários, éramos camaradas irmãs. Perfeita simbiose de cultura e ideologia política. De esquerda.
Misturando tudo isso, criei manakamba. Rimando com a tua personalidade. Com o teu ser afectuoso e solidário. Com Sílvia Milonga. Teu nome. Com o teu rosto e perfil. De Empatia. De busca permanente de justiça social. De generosa na partilha de saberes e sabores. De humanista.
De mulher inteligente das artes e das letras. Da fotografia, da poesia e do conto. Da crónica, da reportagem e da entrevista. De jornalista, escritora e pedagoga.
Porque para ti “sem poesia, não há paz”, eu queria escrever-te um poema. Como escreverias para mim. Mas eu não sou poeta. Não sei ser poeta, como tu tão bem soubeste. Com candura e firmeza e lirismo.
Tal como canta Paulino Vieira, poética e veludosa voz de Cabo Verde, em “M’ Cria ser poeta”, um hino ao amor à música, também “Ami dja N kria ser puéta/Pa N fazê un mar di poezia/Pa N konpará ese bo beléza ku natureza”.
Cabo Verde, teu lugar de eleição. Para férias culturalmente ricas e tranquilas. Onde aprendeste a amar a cultura das ilhas, incluindo a gastronomia. A comer e fazer couscous doce. Onde criaste makamba, que fizeram de ti “cidadã honorária” dos dez grãos de terra.
Eu queria escrever esse mar de poesia. Uma infinitude. Como a tua infinita ligação à poesia. À escrita. Ao mar. Cá e lá. O mar da Liberdade que a terra de homens continua a recusar a tantos nossos povos.
Teus povos. Porque acompanhavas e citavas Khalil Gibran, intelectual libanês do século XIX/XX que afirmava: “considero-me estrangeiro em qualquer país, alheio, a qualquer raça. Pois a terra é a minha pátria e a humanidade toda é o meu povo”.
E concordando com Virgínia Woolf, dizias que “como mulher eu não possuo país. Como mulher meu país é o mundo todo”.
Com o Mundo como teu país, no teu livro de crónicas “Nós por Cá e Lá”, convidas as pessoas a reflectirem “acerca do ser estrangeiro em terras inicial e aparentemente estranhas e o sentir-se estrangeiro na pátria de que descendemos”.
Preocupada com o rumo da Humanidade em “+ AMOR” alertas que “o noticiário é demasiado chocante/E não há livro, em nenhuma estante/que possa ser tão interessante/quanto a liberdade de pensar em ti”.
No teu conto poema “Menino de Rua”, vencedor do prémio literário Jornal de Angola/Odebrech, no início dos anos 90 sublinhas que “no meio da rua/o menino não sente/não fica doente/ diz palavrão para aderir ao ambiente/come e dorme no chão /não há fantasia/no meio da rua/há solidariedade”.
Parecia fácil escrever sobre a tua generosidade. O teu combate pela Liberdade. De pensamento. Artística. Política e económica. Contra a discriminação. Pelo direito à diferença. Pelo bem comum.
No entanto, é difícil escrever sobre ti com o coração e os olhos cheios de lágrimas. Escrever contra a negligência médica que precipitou, em finais de Novembro passado, o fim da tua bela missão humanitária, é soltar um grito de revolta.
Seguindo Machado de Assis, para quem “o tempo é um tecido invisível em que se pode bordar tudo”, espero conseguir bordar no tempo o controlo da minha emoção e comoção e escrever um poema de agradecimento - nga sakidila - do tamanho da tua generosidade. E, então, como no poema de Agostinho Neto, “criar com os olhos secos”.
Nesse poema, lembrar que trabalhavas de graça. Sem remuneração. Mas com qualidade e empenho. Por causas. Anti-racistas. Em defesa dos imigrantes. Pela diáspora africana. Contra todas as formas de discriminação. Por amor ao jornalismo. E à literatura.
Falar da tua entrega às causas, sem esperar nada em troca. Da tua criatividade e candura. Da forma didáctica como ajudavas os mais novos, sobretudo jornalistas, a crescer. “Do teu enorme valor humano”, parafraseando a Maria João Teles Grilo.
Do teu lado pedagógico que sempre existiu em ti. Apurado, certamente, com a tua passagem pelo Instituto Superior de Ciências de Educação (ISCED), onde te bacharelaste em Ciências da Educação nos anos 90.
Das causas humanitárias que te juntam a todos os lesados da sociedade. Da saúde. Da educação. Da cultura. Da economia e da política. Da justiça. E da (des)ordem internacional.
Daí vem a nossa identidade de pontos de vistas. A nossa cumplicidade. De duas mulheres africanas. Diaspóricas. Angolanas. Militantes da luta anti-racista no Mundo. Contra a subjugação dos povos. Contra o racismo estrutural. Contra o fascismo e a xenofobia. Contra a violência policial, racial e sistémica em Portugal. Contra a exploração, as desigualdades e violência de género e outras. Contra o enriquecimento de uns à custa da miséria de outros, a maioria.
Contra a desvalorização da discriminação racial por quem “evita o tema e até sugere que o racismo não passa de um simples complexo, uma desculpa para justificar o insucesso, um pretexto usado pelas minorias”.
O racismo e a defesa das minorias que nos levou a criar o BuÉtnico. Jornal de que fiquei directora, por tua escolha generosa, apesar de, como editora, carregares todo o fardo da publicação. E outros projectos comuns, como o filme com a Hilária Vianeke, que me apresentaste porque temos combates similares.
Usavas como ninguém a capacidade para juntar e cruzar pessoas. Eras uma exímia construtora de pontes e de laços. Derrubavas muros. Desatavas amarras. “Eras uma líder!”. Escreve o jornalista Jorge Eurico.
Juntas caminhámos na solidariedade com a Cláudia Simões, a angolana negra que a polícia portuguesa violentou e a justiça humilhou com uma absurda condenação. Nesse dia, no Tribunal de Sintra, nosso concelho de residência, orgulhosamente ouvi o teu grito: “sem justiça não há paz”, ou seja, a luta continua!
E, sem paz, escreves, “não há tempo para o amor, sem amor não há concórdia, nem esperança. Sem esperança, não há vida, sem vida, não há sonho, sem sonho, não há fantasia, sem fantasia, não há arte, sem arte, nenhuma fé nos sustenta a alma”.
Juntas na indignação pelo assassinato policial do Odair Moniz, de Cabo Verde. E contra a discriminação de tantas e tantos outras e outros manas e manos diaspóricos. De políticos a empregadas domésticas.
Também juntas contra a misoginia e a discriminação da mulher que, denuncias, “continua a ser vista como alguém que serve para muita coisa menos para pensar (na melhor da hipótese que o faça calada).”
Mulheres que “ainda perdem empregos por engravidar, por casar, por não aceitar affairs com chefes e patrões”.
Com a “certeza de que dignidade todos queremos…e merecemos”, sempre recusaste e combateste estranhas e desumanas fórmulas e equações matemáticas que multiplicam fome, opressão e injustiça. E subtraem liberdade, dignidade e democracia.
Também rejeitavas e lutavas contra progressões geométricas ou mesmo aritméticas de pobreza e miséria. De desumanização. De luxo na miséria, ganância e desigualdades, na nossa sociedade.
Porque o “sensacionalismo não fazia parte da escola da vida” que frequentaste, a ética e a integridade tornaram-se bussolas nos teus caminhos e assumias sem dificuldade as tuas falhas como elogiavas os justos êxitos de outros.
Como mulher que respirava cultura e artes, de acordo com o KB Gala, o jornalista Costinha, meu tio, eras “pessoa de bons costumes e eticamente recomendável, inteligente e aguerrida nos debates entre os colegas”.
Eras “uma profissional que não olhava para o relógio quando a conversa fosse dar voz e visibilidade aos fazedores de cultura”, acrescenta o Jorge Eurico.
A Sandra Santos Borges tem razão quando te resume assim: “Mulher discreta e de garra, senhora de teclados e palavras e papéis e livros. Descontraída, abnegada, bem-humorada, de roupa descontraída e sorriso em prontidão. Observadora… prática… espontânea”.
Por tudo isso e porque eras uma excelente companhia, amiga do seu amigo, com grande amor pela família, minha manakamba Milonga, repito a frase que te disse momentos antes da tua última partida de Lisboa para Luanda: “vou sentir (muito) a tua falta!”
Artigo publicado originalmente no Novo Jornal.