O Nkeklet e a Janela Mandinga

O kriol evoca o nkeklet, também chamado nenúfar e ninfa das águas – uma divindade secundária, por sinal. Como ninfa das águas, a língua assumiu corpo entre o mar fora e os antigos Rios da Guiné, a zona de África Ocidental entre o rio Senegal e a Serra Leoa ou, como diz Álvares d’Almada em 1594, do rio Sanagá aos baixos de Sant’Anna. Como a flor dos pântanos e bolanhas, o kriol é vivaz, persistente e as suas raízes misturam-se e confundem-se por baixo da superfície que a língua exibe. Raízes europeias por via de um português quinhentista oral e popular. Raízes africanas dos diversos grupos etnolinguísticos da costa ocidental, com locutores bilingues e plurilingues como ainda hoje na sub-região.

À superfície encontra-se o léxico, de origem maioritariamente portuguesa – ou não fosse o português a língua em que bem ou mal se procurava comunicar, por necessidade ou por obrigação – no qual surgem, dispersos ou concentrados em áreas, termos de origem africana. Este léxico maioritário, transformado por mudanças várias, nem sempre conserva o seu significado original, servindo de suporte a conceitos e expressões próprias das línguas africanas. Na sua laboriosa autoconstrução como língua independente, o kriol recorre às suas várias raízes, procedendo por vezes a uma autêntica bricolagem – toma elementos lexicais, gramaticais, sintácticos e semânticos daqui e dali, corta, acrescenta, desfaz, combina e torna a montar.

Pecixe, fotografia de Marta Lança (2019)Pecixe, fotografia de Marta Lança (2019)

Num ambiente etnolinguístico diversificado como o que rodeia a formação do kriol, diversas terão sido as línguas africano-ocidentais que concorreram para a sua formação. Porém, elas são certamente convergentes do ponto de vista cognitivo, na maneira de ver o mundo e apreender as situações, no desenho de ditos e expressões, no pensamento associado à linguagem. Entre estas línguas sobressai o mandinga, extensamente difundido na África Ocidental e utilizado como língua veicular na altura da formação do kriol. É esta, pois, a janela proposta aqui para aceder a alguns elementos lexicais e semânticos do substrato africano do kriol, principalmente através de dicionários mandinga bilingues (francês e inglês) publicados entre 1929 e 1999 sobre os dialectos da língua mandinga no Senegal, na Gâmbia, no Mali. O afastamento dos registos no tempo e no espaço oferece eventualmente um índice de permanência dos elementos lexicais e traços linguísticos.

Naturalmente, pela diversidade etnolinguística atrás referida, a presença no kriol de termos e expressões mandingas não significa necessariamente que eles sejam exclusivos a esta língua ou que provenham directamente dela; por vezes o caminho percorrido pode ter sido menos linear, isto é, terem sido veiculados por outras línguas oeste-africanas ou pelo próprio português. Todavia, isso não ofusca a paisagem que a janela mandinga oferece.

Entre os termos do léxico kriol registados igualmente no mandinga, alguns designam insectos ou animais como o oricterope ou timba (mdg. timpa, timpoo, timba), as térmites ou bagabaga (mdg. baabaa, bagabaga), o percevejo ou dabí (mdg. daboo, dabiu, daba, dabi), o cão selvagem chamado djurtu (mdg. djurutoo, djuritoo, djuruutu), serpentes venenosas como a cobra negra ou bida (mdg. biidaa, bida, bira, birafin) e a mamba ou kakuba (mdg. kankun, kankumbaloo), a coruja ou kikía (mdg. kikio, kiikyoo, kikiyan, kiikiya), uma águia chamada abutre-das-palmeiras, a kotedúa ou djugudé-di-palmera, (mdg. kootoduu, kotoduwa, koto duwoo), uma iguana com aspecto de dragão ou kutó (mdg. koto, kuutu, kutoo), uma cegonha-de-papo de andar sorumbático ou djumé (mdg. djimme, djimoo, djume), um coucal de olhos vermelhos ou djambatutu (mdg. djamba tuutuu, djambatutuo, djambaduuduu). Árvores, frutos e legumes como a palmeira-leque ou sibi (mdg. sibo, sibi), uma borrachífera chamada foli (mdg. foleo, foolee), a Parinari macrophylla ou tambakumba (mdg. tamba kumba) e a Parinari excelsa ou mampatás (mdg. mampato, mampata); também o quiabo ou kandja (mdg. kandjoo, kandja) e o tomate amargo ou djagatú (mdg. djato, djaaro, ndjagaro, djaado), que são utilizados condimentos tal como os caroços de alfarroba ou netetú (mdg. netetuu, netetuwo, nete tuu). Na vida quotidiana em kriol, as pessoas acocoram-se em djúngutu, dormitam em djungu, cobrem-se de poeira ou ficam esbranquiçadas em fúnguli e antecipam-se em muni, enquanto as galinhas esgaravatam em kiskisi e têm piolhos misís.

Os exemplos anteriores ilustram os empréstimos do substrato africano do kriol visíveis à superfície, através de formas lexicais idênticas ou com poucas modificações. Noutras ocasiões, valendo-se do suporte lexical português, o kriol procede à extensão semântica de um termo, integrando os vários significados da língua de substrato. Assim, o termo fidju (mdg. -din) designa simultaneamente filhos, crias e frutos. Kabelu (mdg. tió) estende-se a cabelos, pêlos, barbas (de milho), espinhos eriçáveis e penas. O termo boka (mdg. daa) recobre ao mesmo tempo os significados de ‘boca, focinho, bico, abertura, lado afiado da faca’, e sabi (mdg. dyaa, dia) significa ‘saboroso, agradável, melodioso, afiado, eficaz’; obi (mdg. moyi, moi) significa simultaneamente ‘ouvir’ e ‘perceber’, kansa (mdg. bataa) envolve fadiga, chatice, velhice e avaria, pista (mdg. donto) é ‘emprestar’ e ‘pedir emprestado’, e tras (mdg. kooma) significa ‘atrás’ e ‘na ausência de’, como em Fidju ka ta padidu tras di si mamé, o filho não nasce na ausência da mãe.

A transferência dos conteúdos das línguas de substrato tem lugar também no decalque de construções e expressões, como no caso de fidju di baka (mdg. ninsidin, ‘bezerro’, lit. ‘filho de vaca’), fidju di katchur (mdg. wulidin, ‘cachorro, filho de cão’), fidju di kabra (mdg. barin, ‘cabrito, filho de cabra’), fidju di po (mdg. iridin, ‘fruto, filho de árvore’). De uma faca afiada diz-se que é sabi (mdg. dia, diyaa), e de uma faca que não corta bem, ka sabi (mdg. man dia, man diyaa), tal como um ouvido que não ouve bem diz-se oredja ka sabi (mdg. tulo man dia). O kriol designa a seiva das árvores por iagu-di-po (mdg. iri-djió, ‘água-de-árvore’), as lágrimas por iagu-di-udju (mdg. nha-djió, ‘água-dos-olhos’), as pupilas dos olhos por kuku-di-udju (mdg. nha kesó, ‘grão-do-olho’), a amigdalite por duensa-di-pedra (mdg. beré dimó, ‘doença-da-pedra’), a hérnia umbilical por biku garandi (mdg. bara-ba, ‘umbigo grande’) e a febre por kurpu kinti (mdg. bala kando, ‘corpo quente’). Aliás, ‘quente’ (kriol kinti, mdg. kando/i) veicula simultaneamente ideias de calor, de rapidez e de algo correr mal. A ideia de rapidez figura na forma redobrada kinti-kinti, ‘depressa, imediatamente’, redobro que se encontra igualmente no mdg. sain-sain, saayin-saayn, lit. ‘agora-agora’ (e no fula djoni-djoni, etc.); a rapidez na acção é qualificada kinti-sangi, ‘sangue quente’, que designa alguém dinâmico, enérgico, que age depressa, e a rapidez nas palavras kinti-boka, ‘boca quente’ (mdg. daa kandoo), que se aplica a quem é precipitado ao falar, imprudente, que fala irreflectidamente ou dá informações sem ser perguntado. A mesma ideia está contida em firbi boka suma kaleron (mdg. fadji la ko kaleeroo, ‘ferve como uma panela’, em que o mandinga utiliza o termo português arcaico caldeirão), com o significado de ‘falar sem cessar, falar pelos cotovelos’. Também de alguém eloquente ou persuasivo diz-se boka sabi (mdg. daa dia-ta), e uma boca exageradamente grande numa pessoa é boka suma lagartu (mdg. bambá da, bambó daa, ‘boca de crocodilo’).

No entanto, este mecanismo de decalque semântico nem sempre é tão linear como nas construções e expressões atrás escolhidas. Além disso, quando já existe uma expressão corrente no kriol que cobre com sucesso um determinado espaço semântico, a tentativa de uma outra ocupar este lugar através da tradução literal da língua materna pode ser mal sucedida, sendo tomada literalmente e gerando incompreensão. É o que parece ter acontecido há alguns anos atrás quando um locutor mandinga com pouco domínio do kriol utilizou publicamente uma expressão de ameaça pouco ou nada corrente nesta língua, ratcha boka te na oredja, a qual, presumivelmente por ter sido tomada à letra, resultou chocante e provocou uma forte indignação, nomeadamente entre alguns políticos. Presumivelmente, a popular ameaça findi kadera (‘fender o traseiro’) teria gerado uma reacção menos exacerbada, pelo facto de, embora também pouco elegante, ser uma expressão mais familiar e habitual em kriol. Findi kadera significa apenas ‘dar uma tareia a alguém’ e hoje em dia ninguém se lembraria de a associar ao seu conteúdo literal. Mas tratava-se de “fender a boca” (até às orelhas), e a imagem que isso evoca à letra é sem dúvida arrepiante. Ora, o termo mandinga fara, que em kriol está contido em farfari (mdg. farafara, ‘cortar mato ou palha’) não se fixou em kriol com o significado de ‘fender, rachar’ (madeira, boca), e resulta esclarecedor o facto de no Mali ele continuar a circular com esse sentido em ameaças verbais semelhantes às expressões populares portuguesas “vou-te pôr em postas” ou “vou desfazer-te em miúdos”. Mais ainda: as origens de daa fara, literalmente ‘fender a boca’, remeteriam para um castigo à insolência e à sedição nos impérios do Segu e de Samory Touré. 

Sugestivamente, as origens de findi kadera parecem ter sido semelhantes e não menos violentas, se atentarmos à descrição de uma prática estigmatizante mandinga referida em português em princípios do séc. XVI: “E se alguun acha outro homem com sua molher leua ho diante delrey, e elrey da huun cuytello ao acusador na mão com q ha de fender ao adultero ho coyro de tras des ho pescoço ata o cuu”. Isto é, em caso de adultério flagrante, o marido ofendido fazia-se acompanhar pelo autor da ofensa à presença do rei, pondo este na sua mão uma faca destinada a fender a pele do adúltero desde o pescoço até ao traseiro.

São fendas como estas que marcam literalmente a vida do kriol, e é destas fendas que nos dá conta a janela mandinga, lançando luz sobre expressões antigas como as florestas e a esperança em Deus, como o apelo à coragem que diz que para sobreviver à dor é preciso amarrar, como um cativo, o coração.

por Teresa Montenegro
Vou lá visitar | 3 Dezembro 2024 | Guiné Bissau, kriol, léxico, língua, Mali, mandinga