O transeunte que ao início da noite

O transeunte que ao início da noite tivesse tomado a estrada de Santa Luzia que desce da Fortaleza da Amura, junto à foz do Geba, ao Quartel General, e que, à altura do antigo restaurante Casa Santos, tivesse feito um desvio à direita, teria entrado numa ruela estreita ladeada de casas sóbrias ao fundo da qual teria visto uma dezena de viaturas estacionadas ao lado de uma vistosa vivenda. E se, por curiosidade, tivesse entrado naquela vivenda pelo portão metálico lateral que dá acesso ao quintal, ter-se-ia encontrado num restaurante caseiro mudialmente conhecido.

De cada vez que o enorme Antonov da força aérea Angolana aterrava no aeroporto de Bissau em missão de apoio logístico à Missang, vinha com uma dúzia de marmitas que eram levadas àquele restaurante e enchidas de comida que era depois transportada de volta para ser comida em Luanda no dia seguinte.

A fama do restaurante em Luanda nascera da sua frequência por clientes Angolanos célebres. João Miranda não só apreciava a culinária soberbamente requintada como também admirava-se com o ambiente acolhedor. Georges Chicote uma vez jantou alí com a esposa, a qual pediu que lhe oferecessem as lindas plantas que decoram o interior do restaurante como lembrança da mais perfeita combinação entre a beleza e o bom gosto. A selecção de futebol de Angola também alí jantou e os jogadores, fazendo jus à veia festiva dos Angolanos, após o jantar derraparam numa interminável festa, com danças kuduro. De vez em quando, o Manucho lá ia espreitar a dona do restaurante na cozinha, dizendo-lhe:

–  Tia, sabe, em toda a minha vida, nunca comi peixe e frutos do mar tão saborosos assim!

–  Tia, tá a perder dinheiro, porque não vem instalar-se em Luanda?

O restaurante foi criado em 1993 por uma senhora cujo nome é de uma grandeza tal que não cabe numa folha de papel. Começou no quintal de uma pequena casa alugada. Alguns anos mais tarde, a dona construiu a sua própria casa, uma aprimorada vivenda, com os redimentos do próprio negócio, e transferiu para alí o restaurante. Desde o início, a especialidade foi sempre a mesma: peixe grelhado, espetadas de carne grelhada, frango à cafriela e saladas à moda da casa. Desde então, o desfile de clientes seduzidos pelo sabor peculiar daquela culinária típica nunca mais parou.

Em 1995, os peritos Africanos do Banco Central dos Estados da África Ocidental (BCEAO) que vieram instalar a filial do banco em Bissau fizeram despedidas emocionantes no restaurante, no final de suas missões, levando consigo marmitas de comida para o Senegal, Burkina Fasso, Cote d’Ivoire e Benin.

–  Vá lá saber-se se, com amostras, as nossas esposas aprendem a fazer igual a isto – diziam com um ligeiro sorriso nos lábios.

As esposas não vão aprender com certeza. Ninguém aprende a fazer aquelas saladas de tomate e alface. Aquilo é um mistério, algo vistoso e extremamente delicioso que quase se tornou numa lenda.

Philip Dacoury Tabley, ex-governador do BECEAO em Dakar, sempre que visitava Bissau, não prescindia daquele grelhado à mistura com salada.

– Ah, a salada!,  dizia, quando lhe punham à frente o delicioso prato.

Certa vez, um cliente Português, sempre impressionado com a famosa salada, perguntou à proprietária do restaurante qual era o segredo. Ao que esta respondeu espontaneamente:

 – O segredo está nos ‘tomates’.

Instantes depois, a resposta deu lugar a uma hilariante gargalhada à volta da mesa, quando as cabeças dos homens, sempre prontas a jogos perversos, deram largas à livre interpretação da frase…

Quem é esta senhora que muitos já convidaram a ir montar o negócio nos seus prórpios países; que recebe regularmente no seu restaurante visitas de ilustríssimos clientes como o Bispo de Bissau, D. José Camnaté Na Bissign; que o Ramos Horta, quando ainda Ministro dos Negócios Estrangeiros, convidara a ir a Dili montar um restaurante e formar Timorenses; e que, jura agora o Representante Especial do Secretário Geral das Nações Unidas, vai levá-la a Dili como quer que seja, quando terminar a sua missão na Guiné-Bissau?

Fernanda Gomes FumaFernanda Gomes FumaConheci-a no ínicio dos anos 90. Numa outra vida ela era Secretária de Direcção, uma das melhores  que já conheci. Um dia dei-lhe um texto meu para bater à máquina, e fiquei espantado quando vi a rapidez com que batia  enquanto me olhava nos olhos e falava comigo. Quando deixou a profissão entrou no mundo de negócios e, com o tempo, a sua garra de batalhadora catapultou-a para o patamar do sucesso.

Mulher carismática, de grande carácter e de muita fé, nunca desistiu de lutar e de ir atrás do que quer, apesar das contrariedades da vida. Durante anos foi uma empreendedora incansável. Vendeu srovetes, gelados e bolos, dedicou-se ao comércio, importou e vendeu vinho e cerveja, e desenvolveu vários outros negócios.

Em 2000, no meio de  uma grave crise de energia eléctrica em Bissau, instalou no seu bairro um gerador que fornecia electricidade a uma boa parte do bairro através de contratos de partilha de custos. Actualmente, com quatro grupos instalados em várias partes da cidade, fornece energia eléctica a cerca de duzentas habitações.

Mas, de entre os seus vários talentos, é seguramente a culinária, uma arte tão ancestral como a própria civilização, que a projectou definitivamente como um monumento da cozinha típica Guineense  e, incontestavelmente, como património nacional. O nome dela é Fernanda Gomes Fuma. Aliás, DONA FERNANDA!!!

 

(Em homenagem aos 20 anos do restaurante D. Fernanda)

 

por Geraldo Martins
Vou lá visitar | 21 Agosto 2013 | Guiné Bissau, restaurante