PADI SABI , o “renascer” do Museu de Bissau

I

O Museu Etnográfico Nacional de Bissau iniciou as atividades de recolha e catalogação em 1985/86 e foi oficialmente inaugurado no edifício do Bairro da Ajuda em 1988. Herdou cerca de uma centena de peças do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa (ativo de 1946 a 1975) e funcionou até à guerra civil de 1998/99. Durante o conflito, a coleção etnográfica e os arquivos nacionais sofreram danos irreparáveis pois o edifício onde estavam alojados foi usado como base das forças armadas senegalesas em 1999. Assim, foram  perdidos definitivamente muitos objetos e documentos, incluindo um importante espólio fotográfico que documentava os primeiros anos de atividade do Museu (1986-90). Entre 2001 e 2009 a equipa do Museu reuniu esforços assistindo-se ao realojamento da coleção no edifício do Bairro da Ajuda. Contudo, este projeto não se mostrou duradouro uma vez que o edifício tinha já sido destinado a albergar a biblioteca pública, projeto que não teve continuidade, estando hoje o edifício ao abandono. Esta medida fez o Museu voltar para o edifício que servira o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa na Praça dos Heróis Nacionais, localizada no centro da cidade, junto do Palácio Presidencial onde se mantém até hoje.  

Edifício do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa – imagem postal da época colonial, Bilhete Postal, Coleção 'Guiné Portuguesa, 143', s/d. (Edição Foto Serra, C.P. 239 Bissau. Impresso em Portugal).Edifício do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa – imagem postal da época colonial, Bilhete Postal, Coleção 'Guiné Portuguesa, 143', s/d. (Edição Foto Serra, C.P. 239 Bissau. Impresso em Portugal).

Edifício do Museu Etnográfico Nacional da Guiné-Bissau (na atualidade)Edifício do Museu Etnográfico Nacional da Guiné-Bissau (na atualidade)

II

Em Dezembro de 2012 o antropólogo Ramon Sarró1 visitou um conjunto de peças etnográficas expostas no Centro Cultural Franco-Guineense localizado no centro da cidade de Bissau. Aí, foi-lhe dito que as peças pertenciam ao Museu Etnográfico Nacional da Guiné-Bissau. Sarró fez então uma breve pesquisa na internet e encontrou um website da Direção Geral da Cultura onde se solicitava apoio para a recuperação de um espólio fotográfico pertencente a este Museu. Visitou a Direção Geral da Cultura e falou com a diretora do Museu (Dra. Eveline Marta Diallo) e com o diretor-adjunto (Dr. Albano Mendes). O Museu existia enquanto figura jurídica, como um departamento da Direção Geral de Cultura, mas não tinha nenhum espaço físico para exposição da sua coleção. Os  objetos estavam guardados no gabinete dos diretores do Museu, na sede da Direção Geral de Cultura. Quanto à coleção fotográfica  tudo o que restou das imagens que  encontrara na internet foi um arquivo fototeca de 35 folhas de provas de contacto (com cerca de 30 imagens por folha), muitas das quais deterioradas devido à humidade. Na sua ida seguinte a Bissau, Sarró levou consigo um scanner com o objetivo de digitalizar este arquivo de imagens fotográficas. Contudo, o corte de luz constante de que a cidade é alvo não permitiu que esse trabalho fosse realizado com a qualidade necessária.

Sala de direção / Museu (2014)          Sala de direção / Museu (2014)

Provas de contacto encontradas  (2014)Provas de contacto encontradas (2014)

III

Dada a impossibilidade de tratamento das imagens em Bissau e graças a uma ajuda da Universidade de Oxford, o então diretor do Museu – Dr. Albano Mendes – deslocou-se até Lisboa em Março de 2016 trazendo consigo o arquivo de provas de contacto. Aí, trabalhou com Sarró e comigo (museóloga e curadora da exposição) no tratamento das imagens com uma qualidade suficiente para serem impressas, expostas e editadas em livro. Para além de digitalizadas, cada uma das cerca de 400 imagens foi descrita detalhadamente (com base na entrevista realizada em simultâneo ao diretor do Museu). A informação necessária para uma primeira legendagem das imagens fotográficas foi recolhida e as imagens foram, posteriormente, numeradas e organizadas em núcleos temáticos facilitando o seu acesso. Na mesma altura, Sarró e eu entrevistámos também o museólogo António Nabais que, nos anos 80, fizera parte da equipa de museólogos portugueses que fora até Bissau ajudar na formação dos técnicos guineenses. Cedendo muitas memórias quer imateriais (de experiências vividas) quer materiais (documentação do seu arquivo pessoal da época), o seu testemunho mostrou-se determinante para o projeto. Na época, Nabais estava ligado ao ICOM (Internacional Council of Museums) − organismo que preparava os encontros dos museus dos países de língua portuguesa − e ao MINOM (Movimento para a Nova Museologia) que regia na época as diretrizes dos ecomuseus e museus comunitários.

Digitalização, descrição e tratamento e da coleção de imagens em Lisboa (2016) Digitalização, descrição e tratamento e da coleção de imagens em Lisboa (2016)

IV

Após reunir os testemunhos dos atores-chave neste processo de criação do Museu Etnográfico Nacional da Guiné-Bissau que foi possível identificar e localizar, foram reunidos esforços para redigir um projeto que, alertando para a importância da preservação da memória passada, ajudasse o Museu também no presente permitindo a captação de fundos. Contactaram-se várias instituições nacionais e internacionais que, por diversos motivos, não se mostraram disponíveis para participar no projeto. Finalmente, as verbas necessárias chegaram em 2017. Foram obtidas através do apoio do Instituto de Cooperação Portuguesa Camões, da Fundação Calouste Gulbenkian, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, da Universidade de Oxford, do Grupo de Estudos das Sociedades Africanas (GESA) da Catalunha, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa da Guiné-Bissau (INEP) e da Embaixada de Espanha na Guiné-Bissau. Este trabalho de captação de fundos foi realizado com o objetivo de reunir as condições necessárias à implementação do projeto em causa, tendo Sarró e eu trabalhado a título voluntário. A partir daí e com o entusiasmo redobrado, foram redigidos os textos para a exposição, a partir de documentação recolhida por Sarró no Museu em 2012, depois complementada quer por especialistas, quer através da consulta de bibliografia específica. As imagens foram divididas em 13 roll-ups temáticos (e.g. a cestaria e a olaria, a tecelagem, a agricultura e a música) que narram a história do museu e da sua herança cultural. Foi escolhida esta opção expositiva por dois motivos: a) pela anterior experiência deste museu na divulgação do seu património através de exposições itinerantes, iniciativa que se julga poder vir a ser continuada no futuro próximo caso seja possível reunir os meios necessários; b) pela necessidade encontrada de transportar para Bissau o material expositivo desta exposição produzido em Portugal.  

V

As imagens digitalizadas revelam-nos o Museu no período de 1986 a 1990, ilustrando o trabalho de colheita no terreno e de investigação e criação do Museu pela “Comissão Instaladora”. Foram encontrados registos das expedições etnográficas realizadas por uma equipa de pesquisa coordenada por Malcom Mcleod (curador principal da coleção africana do Museum of Mankind na época) em diferentes partes do interior da Guiné-Bissau e da coleção de objetos etnográficos que era exibida em Bissau antes de se perder (quer na guerra civil de 98/99, quer nas exposições internacionais, donde muitas vezes os objetos não regressaram). A coleção de imagens fotográficas mostra a rica variedade estilística da cultura material da Guiné-Bissau, bem como o entusiasmo de um grupo de investigadores e administradores locais em construir um património nacional, e até de certos técnicos portugueses que ajudaram a criar o Museu, oferecendo cursos de museologia em Bissau. A reconstrução digital destas imagens permitiu a realização de uma exposição que, realizada no Museu em Bissau, teve como objetivo auxiliar a sensibilizar os públicos guineenses para a sua cultura material, bem como ajudá-los a refletir sobre as consequências de uma guerra que causou não só muitas perdas humanas e muita dor, mas também a desmaterialização do seu património cultural, que pudemos agora parcialmente reconstruir graças a estas provas de contacto.

 

VI

De 5 a 17 de Setembro de 2017 viajámos até Bissau com o objetivo de diagnosticar o estado geral do Museu Etnográfico Nacional e montar uma exposição fotográfica que, concebida integralmente em Portugal, chegou connosco a Bissau distribuída por dois em volumes de porão de 23 kg cada. A exposição “Museu Etnográfico Nacional – 30 anos de História” inaugurou no dia 15 de Setembro de 2017 permanecendo no Museu até hoje. A fachada do edifício do Museu em nada deixava adivinhar a existência de um museu no interior. O edifício, localizado na praça dos Heróis Nacionais em Bissau, que fora em tempos o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa,  é hoje partilhado com a Direção Geral da Cultura e Desportos. Uma das primeiras ações de preparação da exposição e “reabertura” do Museu à cidade passou então por solicitar a execução em Bissau de banners de fachada de grande escala que, impondo-se na frente e na lateral do edifício, tornariam o Museu visível a todos aqueles que o quisessem visitar. Entre uma vida e outra o edifício fora adaptado para servir os propósitos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, estando agora subdividido em pequenas salas e revestido de chão em tijoleira.

VII

A reserva ocupava uma sala e a exposição permanente, uma área ampla dividida por painéis amovíveis, outra. As peças expostas não tinham legenda e estavam distribuídas pelo chão ou colocadas sobre plintos. Notava-se, na sala de exposição, um esforço de organização dos objetos por tema: a cestaria estava toda reunida, a música também, o mesmo se passando com a olaria e outras artes. Contudo não existia um percurso, um “princípio, meio, fim”. O Museu possui um grupo de trabalhadores permanentes mas está aparentemente fechado ao público. Praticamente ninguém na cidade sabe da sua existência. Conversando com o Diretor do Museu e com o Diretor Geral da Cultura e Desportos, ficamos a saber que o edifício será libertado na sua totalidade para esta exposição e futuramente para o Museu. O trabalho de restauro das salas do Museu ainda não começou. É preciso ainda pintar as paredes, os plintos, trocar os vidros partidos e tapar os buracos no tecto. Só depois de terminadas estas tarefas, o Museu ficará preparado para receber a exposição. A espera torna-se tempo útil para fotografar todos os artefactos da reserva colocados, um a um, cuidadosamente num pequeno estúdio fotográfico improvisado com um lençol branco. Esse momento desperta a curiosidade de alguns funcionários que logo se dispõem a ajudar. Uns conhecem e descrevem a história dos objetos, mimetizando o seu uso. Outros, apenas observam e ouvem atentamente os colegas sentando-se no parapeito das janelas abertas. Faz muito calor. O Museu tem vinte plintos que terão de servir para mostrar uma pequena seleção dos objetos mais representativos que, divididos em temáticas, serão colocados em relação direta com os roll-ups que mostram reproduções fotográficas de muitos objetos fotografados no momento da sua aquisição. Subjacente a esta exposição e a este museu (como aliás a tantas e tantos outros) está a ideia de palimpsesto de significados, de representações.  

Vista da sala de exposições (2017)Vista da sala de exposições (2017)

Terminado o restauro levado a cabo nas três salas destinadas à exposição, os plintos tomam o seu lugar e os roll-ups – previamente numerados – ajudam a definir um percurso expositivo. Como planeado, a exposição conta a história do início do trabalho do Museu, no final da década de 80, através da reprodução do espólio de imagens fotográficas encontrado. Cada um dos núcleos de plintos, encaixados como peças de puzzle, dialoga  com o respetivo roll-up que, enunciando a temática e enquadrando-a na cultura material da Guiné-Bissau, cumpre aqui  um papel pedagógico ao confrontar os vestígios do passado (imagens fotográficas) com a cultura material  em acervo no Museu, alertando deste modo para a importância da sua preservação.

Montagem da Exposição (2017)Montagem da Exposição (2017) Durante os dias de montagem desta exposição, o Museu foi sendo a cada dia mais estimado por todos aqueles que nele trabalham, tornando-se cada vez mais apelativo: as funcionárias cozeram cortinas para as janelas e cobriram as pernas das vitrines com panos negros, os convites foram finalmente enviados. Por último, os roll-ups, temporariamente fechados por causa do pó que se fazia sentir no ar, afirmaram-se no espaço como bandeiras de uma cultura material a defender e chamaram a atenção de todos.

VIII

A inauguração da exposição “Museu Etnográfico Nacional: 30 anos de História” fez-se acompanhar de um colóquio onde estiveram presentes alguns dos membros da “comissão instaladora” que relataram a experiência e os objetivos do Museu no final da década de 80. No mesmo colóquio discutiu-se também o futuro do Museu e do sector cultural na Guiné-Bissau, fortemente afectado pelo clima de constante instabilidade vivido neste país.

Inauguração da Exposição (2017)Inauguração da Exposição (2017)A visita à exposição foi orientada pelo Diretor do Museu, Dr. Albano Mendes, que entusiasticamente guiou os visitantes pelas salas de exposição contando a história do Museu e respectivos objetos. Por isso, a visita tornou-se dinâmica e os objetos, levantados dos plintos, tomaram lugar na mão do diretor do Museu (ou até mesmo dos visitantes) sendo ativados através de movimentos miméticos que evocaram a sua função original.

A exposição foi um sucesso e cumpriu o seu papel: curou o Museu (mesmo que apenas superficialmente) dos males sofridos e dando-lhe uma oportunidade de renascer.

Padi Sabi (Parir dá prazer)2.

 

  • 1. Universidade de Oxford e Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
  • 2. Inscrição no pano que me foi oferecido no dia após a inauguração como forma de agradecimento e símbolo de renascimento do museu.

por Ana Temudo
Vou lá visitar | 19 Março 2018 | fotografias, Museu de Bissau