Palavra de curandeiro: “Planta roubada não tem virtude”
Fotografias de Daniel Rocha
Diz a lenda que não se deve ir à floresta apanhar plantas medicinais sem antes pedir licença. E o são-tomense Lourenço Sousa Pontes, de 86 anos, sempre cumpriu à risca este preceito. “Quando nós vamos para o mato buscar planta, a gente tem de pedir”, diz.
“Sum Pontes”, como é conhecido este que é um dos mais experientes e respeitados curandeiros de São Tomé e Príncipe, recita as palavras que emprega neste ritual. Não é fácil entendê-las, mas é uma nítida adaptação de uma prece católica, num misto de latim e crioulo. “É para planta ter bênção. Senão planta não cura”, explica.
Plantas que curam doenças é o que não falta na rica flora de São Tomé. Há cerca de 350 espécies diferentes e mais de 1000 receitas de como empregá-las. São tradições com séculos de existência e que até hoje perduram, num país onde 40% da população não têm acesso a serviços regulares de saúde.
Basta ir ao mercado da cidade de São Tomé para confirmar o quanto a medicina tradicional é importante. No meio da barafunda de vendedores e fregueses, do ruído incessante do comércio e de jogos electrónicos, dos cães, das moscas e do cheiro a peixe, uma mulher vende soluções naturais para diferentes mazelas. O seu nome de baptismo é Eugénia, mas conhecem-na como “Sam Diô”.
Sobre a sua banca, encontram-se plantas como chimon-coiá (Lagenaria breviflora) para o reumatismo, o inhé-bobô (Xylopia aethiopica) para a tosse, a flá-tataluga (Basella alba) para a hepatite, o ucuetê-d’Obô (Costus giganteus), um anti-inflamatório. Em português: simão-correia, pimenta-da-Guiné, folha-tartaruga e cana-de-macaco. Sam Diô mostra um frasco especial, com uma mistura de cascas e raízes diversas: é a sua fórmula de Viagra. Quando se pergunta qual é o tipo de doença de que mais trata, a curandeira responde: “É febre tifóide. Dá sempre”.
Uma mãe jovem aproxima-se para comprar um “medicamento” para o filho, que tem pouco mais de um mês de vida. “Ele tem macaco”, afirma, referindo-se a um estado de desnutrição que estará associado à incapacidade de digerir o leite materno. Acaba por levar, por 20.000 dobras (0,80 euros), uma mistura de ervas embrulhadas num papel pardo.
“Há muito por estudar”
O preço dos medicamentos importados faz da medicina tradicional a única alternativa para largos sectores da população de São Tomé e Príncipe. A maior parte das receitas já identificadas diz respeito a tratamentos para dores e febres, para problemas do sistema digestivo, como diarreias e cólicas, e do sistema respiratório, como asma, tosse e bronquite. Também há muitas receitas para problemas genitais ou urinários, para doenças de pele e para males do coração.
“Há muita coisa ainda por estudar”, afirma a investigadora Maria do Céu Madureira, do Centro de Ecologia Funcional da Universidade de Coimbra, que há duas décadas se dedica ao tema. O interesse surgiu no princípio dos anos 1990, quando assistiu, em Lisboa, a uma palestra sobre plantas medicinais de São Tomé. Em 1992, foi ao país em férias e no ano seguinte voltou, com mais uma colega, para desenvolver uma tese de doutoramento, que resultou na identificação das plantas medicinais e das receitas.
Num dos seus trabalhos posteriores, Maria do Céu Madureira estudou 13 espécies vegetais usadas pelos curandeiros para tratar a malária. Em todas foram encontradas substâncias com comprovado poder antimalárico. AThitonia diversifolia - parecida com um girassol - foi a que mais despertou interesse, devido à sua toxicidade mais reduzida.
Todo este trabalho não poderia ter sido realizado sem a aproximação dos investigadores aos curandeiros locais. Há várias categorias. Sum Pontes, por exemplo, é um stlijon ou cirurgião do mato, aquele que vai buscar nas florestas os ingredientes para tratar de diversas doenças. Há também os massagistas, os tiradores de ventosas (tchiladô ventosa), os explicadores de urina (piadô zauá), as parteiras tradicionais.
São pessoas respeitadas, conhecidas. Quando Sum Pontes chega junto ao casebre de madeira de Maria Torres dos Santos Martins - ou Sam Verónica, uma parteira tradicional de 78 anos -, um grupo de crianças cerca o curandeiro, gritando, alegres: “Popô, popô, popô”.
Ao redor da casa, Sum Pontes vai identificando várias plantas. Aponta para um arbusto, agarra numa folha, mastiga-lhe uma ponta e diz que é para dor de dentes. “Faz-se um chá para bochechar, não é para beber”, explica. Numa pequena área, encontram-se outras espécies úteis: uma serve para desintoxicações, outra trata hepatite, uma terceira cura a tosse, uma quarta é para angina.
O preparo da “vumbada”
Sam Verónica não está lá, mas sim mais adiante, junto a outra casa que foi do seu marido. É uma moradia rural típica de São Tomé, rústica, de madeira, sobreelevada como palafitas e com um espaço aberto em baixo. “Aqui criava tudo, porco, pombo, galinha, tinha cultura. Agora está tudo roto. Roubam tudo”, queixa-se a curandeira.
Sam Verónica mostra como prepara os seus medicamentos. Com um enorme machim, retira bocados da casca de uma árvore que Sum Pontes ajuda a triturar num pilão. Numa bagatela de barro sobre o fogo, ferve-se a água, misturam-se alguns ingredientes, passa-se para uma chaleira, acrescentam-se ervas e coa-se o resultado. E está pronta a “vumbada”. “É um preparativo para curar intestino mal-funcionado de criança”, explica Sum Pontes.
A medicina tradicional cura mas pode também ser fonte de problemas. No relatório de uma visita recente a São Tomé e Príncipe, o Comité da ONU para os Direitos das Crianças classifica alguns tratamentos tradicionais como “práticas lesivas” que devem ser evitadas. Entre eles está “pisar barriga”, que consiste em massagens violentas no abdómen das crianças, ou “curar angina”, em que as amígdalas infeccionadas são espremidas com a mão.
Muitas plantas têm, de qualquer forma, efeito terapêutico comprovado. A cata-pequena (Rauvolfia vomitoria) é a fonte da qual se isolou, na década de 1950, o componente activo do primeiro fármaco para combater a hipertensão. A planta continua a ser utilizada pelos curandeiros de São Tomé.
Já a cata-grande (Rauvolfia caffra) serve ao tratamento da diabetes. Maria do Céu Madureira conta o caso de um médico que, perplexo com o estado de alguns dos seus pacientes diabéticos, perguntou-lhes se estavam a tomar algo. “Tinham níveis óptimos, mesmo sem medicamentos”, diz Madureira. “Disseram-lhe que era a cata-grande”.
A própria investigadora utiliza o sumo da hortelã-brava-indiana (Centella asiatica) quando tem algum tipo de infecção nos ouvidos. “Põe-se três gotinhas de manhã e de noite e em dois dias está bom”, afirma. “Antes, andava sempre em antibióticos”.
Sum Pontes assegura que há uma doença de pele, o cubelo, que só a medicina tradicional é capaz de tratar. “Remédio de farmácia não cura”, garante. “O que cura isto é a cola [Cola acuminata]”.
Há um esforço em curso para que o conhecimento dos terapeutas tradicionais seja mais utilizado na prática médica em São Tomé e Príncipe. Num projecto que está agora a ser lançado, curandeiros como Sum Pontes ensinarão algumas receitas tradicionais a agentes sanitários de sete postos de saúde do Sul do país, que estão sob gestão da organização humanitária AMI. Nestes postos, há necessidade de alternativas locais e baratas para tratar sobretudo doenças de pele, curar diarreias, aliviar dores e desinfectar feridas.
Mas introduzir a medicina natural no sistema de saúde como um todo, não é uma tarefa fácil. “Em 20 anos, já conheci 14 ministros da Saúde”, afirma Maria do Céu Madureira.
Aproveitar o conhecimento dos curandeiros tradicionais é também uma espécie de corrida contra o tempo. Muitos têm já uma idade avançada e há poucos jovens que se interessam pelo ofício.
A própria saúde dos curandeiros está-lhes a condicionar a actividade. Quando o PÚBLICO falou com Sam Verónica, a parteira estava a recuperar de um longo período acamada, nitidamente frágil, embora com energia suficiente para manejar o pesado machim com que recolhe os seus ingredientes.
“Tem que pedir”
Sum Pontes também teve sérios problemas há alguns meses. A causa, diz Pontes, foi ter tomado uma cacharamba - uma espécie de aguardente - que não prestava. “Senti-me mal, tive de ir para o hospital”, conta. “O intestino provocava o fígado”, explica.
Permaneceu dois meses internado e agora vive num lar. É ali que pratica o seu ofício, aplicando as suas curas e ajudando a uma fisioterapeuta que visita a instituição regularmente. Já não vai ao mato apanhar plantas com tanta frequência. Mas à volta da sua casa, quando para lá se desloca, encontra muito do que precisa. Ou então pede que lhe tragam os ingredientes.
Em qualquer situação, Sum Pontes não deixa de pedir licença prévia à floresta. É uma forma de autorização, uma espécie de versão ancestral do que viria a ser fixado em 1992 pela Convenção da Diversidade Biológica, da ONU, que determina que os recursos genéticos de um país não podem ser explorados sem um consentimento prévio.
“Tem que pedir. Quem não pedir vai só arrancar, é planta roubada”, diz Pontes. “E planta roubada não tem virtude. A gente vai curar moléstia e moléstia não fica curada”.
O PÚBLICO esteve em São Tomé e Príncipe no âmbito do projecto No Trilho dos Naturalistas, da Universidade de Coimbra, financiado pelo QREN e Ciência Viva, que envolve a produção de uma série de documentários sobre explorações botânicas às ex-colónias, do século XVIII ao século XX.
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publicado originalmente no jornal Público