Réquiem para os invisíveis
Na sala escura, vozes. Dizem coisas que nossa compreensão não alcança. Invisíveis que são, assim se apresentam diante de nós: são suas não-imagens que nos confrontam. A negação da identificação imagética amplifica o som dos fragmentos capturados por Susan Hiller em The Last Silent Movie (O último filme mudo). Perante a quase morte das falas que se repetem, é a indiferença que grita.
A descolonização do olhar
As vozes de Susan Hiller não constroem discursos, mas perfuram convicções. Sua obra recusa a espetacularização da tragédia ali anunciada e a utilização de visualidades estandarizadas. Constantemente iludidos pelas promessas midiáticas de alcançar e decifrar qualquer realidade por meio de imagens enlatadas, como reagimos diante um dispositivo que nos nega narrativas audiovisuais prontas para o consumo? Deslocados do centro do mundo, somos convidados a testemunhar, de forma sensível, línguas à beira do silêncio. Frente à iminência da aniquilação de um dialeto e tudo que carrega consigo – sua cosmovisão, sua potência, encaramos nosso abismo: incapazes de tocar a fronteira do outro, é nossa própria finitude que enxergamos ali.
A língua desencarnada é muito pior do que um fantasma porque nem mesmo assombra. É o que sinto quando repito a palavra “etnocídio”. Como explicar que a morte cultural é a morte daquilo que um povo é, a morte de um ser e de um estar no mundo totalmente singular, é a morte que precede a extinção física, porque a cultura é o que dá sentido às batidas de um coração humano.
Eliane Brum,em coluna para o El Pais
Cartografia do esquecimento
Se o sistema Raposo-Castelo é o caminho que hoje nos leva a Sorocaba, reconhecemos, sob o asfalto, as trilhas rasgadas por quem aqui estava antes do Brasil tornar-se Brasil. Para invadir o território, os colonizadores tomaram de assalto o Peabiru: além do ouro, saquearam também os saberes dos povos nativos, abrindo o caminho para o domínio europeu. Na epopeia sorocabana, Baltazar Fernandes é herói. Sua imagem se ergue diante do Mosteiro de São Bento, fundado por doação de sesmaria à Ordem Beneditina pelo notável bandeirante em 1660. Além da fundação da cidade, consta entre seus feitos a subjugação de centenas de indígenas, escravizados e solenemente apagados da saga épica paulista. Em Um Vazio Pleno, Maria Thereza Alves abre uma fresta no tempo e no espaço: aos pés do monumento e em outros locais da cidade, deposita réplicas de artefatos indígenas como urnas funerárias e moringas, reproduzidas pelo ceramista guarani Maximino Rodrigues. Como no conceito proposto por Lygia Clark, o vazio pleno de Maria Thereza é lugar de gestação: por meio de uma série de ações colaborativas articuladas pela artista, Maria Thereza reinscreve a presença indígena no espaço público e no imaginário local. Sua obra é uma arqueologia do futuro: trazidas à superfície, as urnas são um um rito para um povo que resiste. Assim como as vozes de Susan Hiller, os Guarani encaram o abismo. Falta a eles Tekoha – o lugar onde se é.
O inferno são os outros?
A floresta está viva. Só vai morrer se os brancos insistirem em destruí-la. Se conseguirem, os rios vão desaparecer debaixo da terra, o chão vai se desfazer, as árvores vão murchar e as pedras vão rachar no calor. A terra ressecada ficará vazia e silenciosa. Os espíritos xapiri, que descem das montanhas para brincar na floresta em seus espelhos, fugirão para muito longe. Seus pais, os xamãs, não poderão mais chamá-los e fazê-los dançar para nos proteger. Não serão capazes de espantar as fumaças de epidemias que nos devoram. Não conseguirão mais conter os seres maléficos, que transformarão a floresta num caos. Então morreremos, um atrás do outro, tanto os brancos quanto nós. Todos os xamãs vão acabar morrendo. Quando não houver mais nenhum deles vivo para sustentar o céu, ele vai desabar.
Davi Kopenawa, em A Queda do Céu
Expulsos do Pindorama, somos o Povo-Novo de Darcy Ribeiro. Se foram as trocas de bugigangas por ouro e prata as primeiras estratégias de subtração da América, Davi Kopenawa recusa o escambo e nos devolve o espelho em A Queda do Céu. No livro, o ativista e xamã yanomami nos faz mirar um reflexo de difícil digestão: somos o povo da mercadoria, uma civilização tola que valoriza o ter em detrimento do ser. Se o Manifesto Antropófago era a resposta dos modernistas diante da invasão europeia, hoje já não sabemos quem somos. Em 2017, quem devora quem? Acostumados a reduzir à índio qualquer outro que não obedeça à ordem do lucro e da acumulação, somos napë, inimigos. Somos nós o outro, os canibais que vieram comer a terra dos Yanomami depois de terem devorado a sua própria. Diante dos sinais da insustentabilidade do capitalismo, seguimos marchando em direção ao Antropoceno – a partir de nossa pretensão autocentrada, tornamo-nos até força geológica. Alienados da cosmologia yanomami e de tantas outras já silenciadas pela mão do homem branco, cumprimos desavisados a profecia xamânica.
O desastre objetivo nos serve, antes de mais nada, para mascarar uma outra devastação, ainda mais evidente e ainda mais massiva. O esgotamento dos recursos naturais provavelmente está muito menos avançado do que o esgotamento dos recursos subjetivos, dos recursos vitais que atinge nossos contemporâneos. Se nos satisfazemos tanto ao detalhar a devastação do ambiente, é também para cobrir a assustadora ruína das interioridades. Cada maré negra, cada planície estéril, cada extinção de espécies é uma imagem das almas em farrapos, um reflexo da nossa ausência do mundo, da nossa impotência íntima para habitá-lo.
Comitê Invisível, Aos nossos amigos: crise e insurreição
Sobre nosso silêncio ensurdecedor
Hannah Arendt alcançou “a banalidade do mal” ao testemunhar, em Jerusalém, o julgamento do nazista Adolf Eichmann. Ao desempenhar seu papel no assassinato de milhões, Eichmann não era movido pelo ódio, era apenas um burocrata cumprindo ordens que não lhe ocorreu questionar. É na ausência de pensamento que a banalidade do mal se instala: conformados pela nossa ideia de progresso e desenvolvimento, permanecemos em silêncio diante do etnocídio em curso em terras brasileiras. A Constituição atribui ao Estado o dever de demarcar terras indígenas, destinadas à sobrevivência dos povos originários. Para o agronegócio, a prerrogativa é um entrave para o desenvolvimento do país. É sob este argumento que a sombra do totalitarismo se projeta: articulado no Congresso pela bancada ruralista e concretizado em campo por violentos conflitos, o extermínio segue. Pela promessa de segurança hídrica e energética, concordamos que o Estado financie obras como a transposição do Rio São Francisco e a construção de Belo Monte, numa perigosa mistura entre público e privado, enquanto reserva à população políticas de austeridade. A quem interessa este desenvolvimentismo acrítico? É possível definir pós-colonialismo num território que permanece aberto à exploração estrangeira, capitaneada pelas grandes corporações? Para muitos, 1500 ainda não acabou.
O que é necessário opor aos planos de austeridade é uma “outra ideia de vida”, que consista, por exemplo, em partilhar em vez de economizar, em conversar em vez de calar, em lutar em vez de sofrer, em celebrar as vitórias em vez de invalidá-las, em se aproximar em vez de manter distância. Não é possível, por exemplo, medir o tamanho da força que os movimentos indígenas do subcontinente americano ganharam ao assumir o “buen vivir” como afirmação política. Isso traça, por um lado, um claro perfil daquilo pelo que é contra o que se luta; e, por outro, abre a porta para a descoberta serena das mil outras formas de entendimento da “boa vida”, formas que, apesar de diferentes, não são inimigas, pelo menos não necessariamente.
Comitê Invisível Aos nossos amigos: crise e insurreição
Resistir ou Re-existir
É possível experimentar outras formas de existir? E se ousássemos pensar numa existência que não estivesse subordinada a uma finalidade como o progresso, a competência ou o dinheiro, como provoca Peter Pal Pélbart? Para além do debate sobre a questão indígena, é a disposição para a alteridade, a capacidade de encontrar e acolher perspectivas que não obedeçam a nossa lógica que nos é solicitada. A escuta é necessária, antes que o silêncio desabe sobre nós. É tempo de descolonizar o pensamento.