Rostos fechados

Rostos fechados, tensos, encerrados no poço da sua feroz melancolia, presos nas malhas de uma profunda e reservada gravidade. Sob o véu da tristeza não há sorrisos cúmplices, olhares trocados, sinais de subterrânea alegria - cada um deles traz às costas o seu infortúnio pessoal, carrega a sua memória a arder, é o centro de uma dor intransmissível. Corpos cautelosamente contraídos, captados pela câmara em receosa pose estática ou ordeira postura de trabalho. Roupas pesadas como grilhetas, que escondem as formas e circunscrevem extensas zonas de pudor, constrangem os movimentos, ensinam a esquecer a pele. Chapéus de aba larga e lenços caídos sobre a testa, para afunilar o campo de visão, reduzir o horizonte verde ao local onde os pés assentam e as mãos trabalham. Movimento contínuo de produção organizada, vida de sol a sol entre sanzala e terreiro, sob o chicote ardente dos dias e o olhar fixo, inquiridor, do capataz.

Não nos deixemos enganar: o fotógrafo chegou e encontrou uma multidão obediente e manipulada, à espera do acontecimento. A preocupação com a “produção de um texto ideológico” é evidente e as situações, grosseiramente artificiais, pretendem retratar as roças como universos exemplares de trabalho e progresso. Há nas fotografias sentido de representação (figurantes conscientes do seu papel), composição da imagem (cenários, guarda-roupa, adereços – tudo pensado ao pormenor) e preocupação estética (ocupação simétrica dos espaços; homens de um lado, mulheres do outro). Mas, limpando os retratos de tudo quanto é retoque e montagem, fica apenas o essencial – aquela multidão sem voz, com olhos tristes que nos interpelam. É esse o subtexto dos oprimidos.

(Como são diferentes os rostos com que agora me cruzo nas ruas… Energias desencontradas, correntes caudalosas percorrem a multidão e as vidas são matéria iluminada que trepida, leveda, fermenta. Uma ruidosa vontade de dançar libertou os corpos, devolveu-lhes o gesto e a palavra. Há ainda o rato da pobreza a roer o novelo dos sonhos e a ilha é um animal ferido, golpeado por sortilégios antigos e pragas endémicas, mas um destino comum reúne agora todos os destinos, pousa as suas grandes asas sobre os dias reunidos.)

 

Depois de ver a exposição do Instituto Marquês de Valle Flor

“Um Olhar Sobre São Tomé e Príncipe no Início do Século XX”

por Paulo Ramalho
Vou lá visitar | 4 Dezembro 2011 | Fotografia, roça, rosto