Sobre soltar a língua: a verdade da carne é maior quando é nossa
Junto com toda a estratosfera literária do eixo RJ-SP, fiquei obcecada pela série nova que, sem aviso prévio, entrou no nosso streaming mental na penúltima semana de janeiro. Não teve Netflix que superasse aquele episódio e toda a sua repercussão. O caso de abuso psicológico denunciado pela escritora Vanessa Bárbara no podcast da Radio Novelo, afinal, envolvia o sócio de uma grande editora brasileira, a Todavia. Como a torcida do Flamengo, adiei a minha promessa de sair da Meta para ler tudo sobre o caso, e tudo para, ao final, chegar ao mesmo impulso de sempre: voltar aos dois volumes de O segundo Sexo, de Simone de Beauvoir. É uma espécie de dependência química, o livro dela tem cheiro de lucidez, aquela colônia leve que não enjoa e faz com que eu sinta que não sou louca nem exagero no perfume.
Li a fundo Beauvoir logo depois de perder a minha mãe, em 2018, mesmo ano em que me mudei para Portugal, pouco antes do Bolsonaro ser eleito. Ela com uma doença terminal, eu com a decisão mais difícil da minha vida, a de seguir adiante mesmo assim. Enfrentando uma oncologia que pode ser bastante fria e desumana, ela não teve poder de decisão sobre o próprio corpo, não teve a força de dizer que preferia o conforto a tratamentos invasivos e dolorosos que serviam para adiar o inadiável. Poderia ter sido diferente, mas pra isso o mundo teria que ser diferente. A minha família fez o que parecia ser o certo a se fazer com a melhor das intenções, mas faltou perguntarem a ela. Sempre falta perguntar a uma mulher o que ela acha certo para o seu corpo.
Simone de Beauvoir
Naquele ano fúnebre, muita coisa aconteceu para ao menos metade do Brasil. O bolsonarismo serviu como um filtro, uma peneira que mostrou, em meio a pouquíssimas pepitas éticas, muitas pedras cheias de lodo reacionário e misógino nas nossas cestas. Afinal, quem não se lembra, ter uma filha era dar uma “fraquejada”. Fui uma daquelas que precisou se afastar um pouco da família, no que o mar Atlântico no meio do caminho foi muito útil. Mas o pior rompimento aconteceu com um primo que resolveu me julgar na rede defendendo um “parça” dele, pouco antes da eleição. Foi uma escolha: entre me respeitar e seguir o fio da agressão iniciada pelo amigo de fé bolsominion, ele optou por dar coro ao brother, afinal os clubinhos de meninos são mais unidos do que se pensa e essa camaradagem tóxica é sem dúvida o tema do podcast, embora ele fale sobre traição.
Mas voltando ao primo perdido: eu seria ingênua se dissesse que aqueles comentários de Facebook, que ele apagou depois de eu já ter feito um print, foram a causa verdadeira do meu afastamento. Não. A questão é que tem sempre uma gota d’água, aquela que, mesmo 14 anos depois de um trauma, faz a gente clicar com o dedo trêmulo num “post” qualquer. No caso da Vanessa, ficou claro que por ali passou muita terapia e elaboração do trauma debaixo da ponte, o que torna o clique mais lúcido e corajoso, ao menos.
O podcast, fofocas e agulhadas à parte porque as pessoas ainda são pessoas, traz questões importantes para pensarmos a misoginia, se é que ainda falta alguma coisa a entender no fato de que a ideologia cristã não contribuiu pouco para a opressão da mulher, e isso quem me sussurra já é a Beauvoir, a quem gosto de chamar de S.B.
Enquanto escrevia esses parágrafos acima, a S.B me cutucou para mostrar a página 230 do vol.1: “O grande homem jorra da massa e é levado pelas circunstâncias: a massa das mulheres acha-se à margem da História e as circunstâncias são para cada uma delas um obstáculo e não um trampolim.”
Enquanto acompanhava o caso, o que mais me entristeceu foi ver a mulher do sócio da editora, que fez um pedido morno de desculpas e saiu de cena, se jogar aos leões na arena pública para defender o marido. Lembrei das portuguesas que, no episódio conhecido como As mães de Bragança, em 2003 se uniram para expulsar da cidade as supostas prostitutas brasileiras porque, por causa delas, seus maridos saíram da poltrona para lhes causarem maus tratos e agressões físicas ou mesmo abandonarem o lar. A culpa era das mulheres brasileiras e eram as mulheres portuguesas que precisavam de lutar pela reputação dos seus homens. Onde estavam os homens, não se sabe. Um desvio de atenção do problema digno de todas as estratégias da extrema-direita, só que internalizado, porque nosso corpo é parte de um organismo maior: foi esculpido e educado para que dele se possa extrair algo. Todas nós, acusadoras, manipuladas ou feridas pela ex, somos vítimas ativas deste sistema, somos terminais de uma gigantesca máquina social que extrai de nós a nossa energia, quando não extrai a própria vida. A diferença é que, neste biopoder, hoje o teclado é nosso parafuso.
Mães de Bragança
O corpo da mulher é sempre um corpo emprestado. Logo a rede se dividiu, como algoritmo, entre aquelas que defendiam a Vanessa e aquelas que defendiam a mulher do editor, e não escrevo aqui o nome dela por respeito e também porque, para mim, foi assim que ela se expôs, como mulher do acusado, e não como… mulher. Quem curtia uma, enfim, afastava quem curtia a outra. Isso me fez lembrar da filósofa também francesa Hélène Cixous, aquela que diz que a mulher tem que se colocar na História e no mundo pelo seu próprio movimento e que, quando a carne da mulher fala, ela fala a verdade.
Faltou carne em alguns lados desta novela porque um texto feminino, lembra a Cixous, não pode ser menos do que subversivo. Sua escrita não tem limites, não tem contornos. Não vamos voltar atrás. Nós mulheres engolimos tantas vezes a língua, afinal, que nos familiarizamos com ela, lembra a filósofa. Há um poder enorme em soltarmos essa língua, mas o problema é que precisamos fazer isso juntas. Porque não há nem mesmo o lado das mulheres e o lado dos homens, essa falsa dicotomia: há o mundo hegemônico que sempre foi dos homens e as mulheres tentando subir pelas margens e deixando cair no meio do caminho saúde, sonhos e crenças.
Depois de se ver exposta em conversas misóginas num grupo de e-mails de amigos do seu próprio marido, a pessoa a quem ela confiou seu corpo e sua vida, Vanessa se transformou, como ela mesma diz, numa pessoa cínica. De certa forma, ela se tornou mais um dos rapazes, internalizando o sistema de opressão. Nunca mais confiar em ninguém.
Hélène Cixous
O maior crime dos homens cometido contra as mulheres, escreve Cixous, foi ter insidiosamente feito com que elas odiassem umas às outras, sendo suas próprias inimigas, mobilizando uma força enorme contra si mesmas. Enquanto isso, com seus corpos e grupos de whatsapp machistas preservados, eles continuam a vida normalmente, com todos os seus privilégios garantidos.
A solução para isso? Segundo ela, escrever. Botar a língua para fora. O relato e a escrita, culturalmente, também foram sempre dominados por uma economia masculina. A cultura também é um lugar onde a repressão das mulheres é continuamente perpetuada, onde raramente há a vez delas falarem. E isso, marca Cixous, é especialmente imperdoável porque a literatura e a escrita, com seus depoimentos, é precisamente o lugar da possibilidade de mudança, a brecha de movimento para que o pensamento subversivo seja capaz de transformar as estruturas sociais: “Quando eu escrevo, tudo o que não sabemos que podemos ser é escrito junto comigo”.
Mas para isso é preciso não denegrir as mulheres, nenhuma delas, não fazer com elas o que os homens fazem. Talvez eu tenha buscado duas filósofas francesas porque lembro ainda muito impactada do caso Gisèle Pelicot, a mulher francesa violada por mais de 80 homens com a conivência do marido, que a dopava. Já é sabido que a violência psicológica, que objetifica a mulher, é a base para outras violências como a camaradagem macabra do estupro coletivo. Giséle, essa gigante, essa força do Universo, teve a coragem de mostrar a cara e, como bem escreveram na imprensa, virar a vergonha de lado.
E se a vergonha é deles, eles que falem sobre ela.