Talvez um dia as árvores dêem livros
UMA PEDRA. «A saudade é uma pedra dura aqui no meu peito», diz em crioulo a Eduarda, mulher da sanzala, serviçal da roça de Água Izé. Lembra de tudo a Eduarda. Não esquece porque as feridas abertas nunca dão tréguas à memória. A Eduarda lembra até do sítio da padaria. Lembra das ruas e lembra das esquinas das casas. Não esquece porque dentro da cabeça nunca deixou de percorrer os caminhos que fazia quando era menina.
A Eduarda conta a história dela. E nos olhos e nas palavras há mistura de raiva e de alegria. Sorri quando lembra da terra, lá na ilha de São Vicente, em Cabo Verde. Sorri quando as lembranças são daquelas que fazem cócegas boas no coração. Mas também enrijece o verbo porque não esquece que a vida lhe foi madrasta. A Eduarda fala. E a gente em volta, nas mesas da cozinha social, cala para ouvir. E as palavras da Eduarda pesam no corpo da gente como a ela lhe pesa aquela pedra dura que traz no peito.
Ela e Celina Pereira, cantora cabo-verdiana, conversam no crioulo da terra das duas. Quando Celina começa a cantar os olhos de Eduarda ameaçam perder a força.
– «Não chora! Não chora!», diz a mulher sentada ao seu lado.
Mas ela chora. Choram as duas. «Estive a fazer-me de forte, mas não aguentei e embrulhei-me nas lágrimas», desabafa Celina. E traduz do crioulo para o português a história que acabou de ouvir. A Eduarda ficou sem pais ainda em Cabo Verde. E muito menina, em 1953, foi trazida por uma senhora amiga, a Kukuna. Veio tão pequena que, a bordo, os outros tapavam-na para não ser vista. Já em São Tomé, conta, foi crescendo e animando-se. Mas a raiz dela não é daqui. Diz que gostava de ser enterrada em São Vicente, onde está a família. Se morrer antes de lá chegar tem a certeza de que o seu espírito há-de ser levado para Cabo Verde, nem que seja aos ombros dos homens.
Sim, sente raiva a Eduarda. Raiva pela falta de pertença que lhe atormenta a alma e pela ausência de responsáveis. Diz que Portugal não cuidou e que Cabo Verde e São Tomé agora também não cuidam. Sente o abandono. A saudade que lhe pesa no peito. Mas também ri. E ri um riso largo. Tão largo como o mar que separa as duas ilhas da sua vida.
A visita à roça de Água Izé faz parte do programa do Roça Língua, um projecto que desafiou vários escritores lusófonos a reunirem-se durante uma semana, entre 1 e 8 de Novembro, para partilhar conhecimentos e vivenciar a realidade do país. Cada um aproveitará a sua experiência na ilha e o contacto com as gentes locais para escrever um conto. Essas narrativas serão depois reunidas num livro a publicar no próximo ano. Talvez a Eduarda e a pedra que lhe pesa no peito venham a fazer parte de algumas dessas páginas.
«Com esta reunião de escritores de língua portuguesa temos dois objectivos», explica José Eduardo Agualusa, escritor e co-comissário do Roça Língua (com Marta Lança). «Além da criação de um livro de contos, queremos também estimular os jovens santomenses que se interessem por literatura e dessa forma tentar formar leitores e escritores». Também ele irá escrever uma pequena ficção inspirada em São Tomé. «A riqueza destas ilhas, do ponto de vista da mitologia popular, fascina-me desde sempre. É um lugar especial para escritores, mas, infelizmente, não tem tido gente capaz de narrar as suas histórias em livro».
João Carlos Silva – mentor e coordenador da Bienal, conhecido pelo programa Na Roça Com os Tachos – já lançou ao escritor angolano um outro desafio. Convidou-o a estabelecer-se em São Tomé durante alguns meses para escrever um romance. «Seria muito estimulante fazer o projecto passar para essa fase e convidar escritores internacionais para trabalhar aqui, de forma a ir construindo uma biblioteca de São Tomé. Pode ser algo muito importante para o país. Basta pensar, por exemplo, que Salvador da Bahia é uma invenção de Jorge Amado. Foi-se modificando para se tornar parecida com a imagem literária que ele deu da cidade. Às vezes, uma obra pode transformar um local», elucida Agualusa.
Casa nas ruínas
Água Izé é uma das várias dezenas de roças espalhadas pela ilha. Entre o século XIX e meados do século XX foram importantes centros produtores de cacau e de café, mas hoje agonizam como bairros de lata à espera de soluções e de projectos de renovação que tardam em chegar. Com o abandono e com o passar dos anos, muitas pessoas, em busca de tecto, foram invadindo as casas principais, os espaços livres nas sanzalas, os antigos hospitais. Segundo um trabalho dos arquitectos portugueses Duarte Pape e Rodrigo Rebelo de Andrade – que resultou na exposição (In)ventariar as Roças de São Tomé, integrada na Bienal –, em Água Izé vivem hoje 2.700 pessoas. Na roça Agostinho Neto os habitantes são 4.600.
Terminada a conversa com a Eduarda é tempo de subir a ladeira que leva ao antigo hospital. Sobem também as crianças, contentes pelos visitantes que chegaram para quebrar a rotina do quotidiano. Entrelaçam os dedos nas mãos das pessoas que vêem pela primeira vez. Dizem o seu nome. A idade. Pedem canetas. Água. Ou simplesmente uma garrafa vazia.
Ao final da subida, as ruínas do antigo edifício hospitalar surgem como um fantasma do passado colonial. Um espectro imponente e belo, mas desfigurado por anos de incúria. Há muito que deixou de funcionar como hospital. Há muito que os tectos caíram. Há muito que os médicos aqui já não curam. Aos poucos, como em muitas outras roças, foi sendo invadido e ocupado por famílias que fizeram casa das ruínas.
Nas roças que os participantes do Roça Língua visitaram as histórias repetem-se. As vidas das gentes são escritas com enredos quase decalcados uns dos outros. Muitos dos habitantes, como a Eduarda, vieram para São Tomé ainda crianças. Outros já nasceram na ilha. Descendem de angolanos, moçambicanos e cabo-verdianos e hoje sentem-se abandonados.
Conta que os avós chegaram de Angola, «ainda no tempo dos escravos», mas ele, Lucindo, já nasceu em São Tomé, em 1956. Começou por trabalhar como «empregado em casa de brancos» e só se mudou para a Agostinho Neto – antiga roça Rio do Ouro – anos mais tarde, quando foi «tomar mulher». Ele e ela estão juntos há 38 anos. «A situação no tempo colonial era melhor do que agora. É verdade que havia o regime, mas a Agostinho Neto era uma empresa muito bonita e muito rica e a produção de cacau não acabava nunca. A gente agora está a sentir saudades. Depois do 25 de Abril ficou tudo abandonado e foi sempre a piorar».
Na última década, o Governo santomense decidiu acelerar a divisão das terras das roças, dando a cada família uma parcela de terreno, mas o efeito não foi o desejado. «Ficou ainda pior porque a gente não tem meios nem apoios para trabalhar», lamenta Lucindo. «A gente não consegue comprar material e a gente arrependeu. Não valia a pena ter tomado terras porque tem sido sempre a piorar. Quem fala a verdade não merece castigo».
Histórias de abandono
Isaura Carvalho, santomense e mulher de João Carlos Silva, está a trabalhar na sua tese de doutoramento em História, que versa sobre as roças – ‘São Tomé e Príncipe do Século XVIII ao século XX – O Fenómeno da Mão-de-Obra’.
«Com o 25 de Abril e a independência, as roças, que já estavam em decadência, foram abandonadas e nacionalizadas, mas não se pensou num destino para as mesmas», explica. «O que se tentou fazer foi dar parcelas de terras às pessoas para que se pudessem desenvencilhar, mas faltou dotar os indivíduos de ferramentas, desde logo ao nível da formação. Assim, à medida que se agrava o empobrecimento, acontece um fenómeno perverso, que é a valorização do período colonial. Estamos a assistir à valorização de algo que foi mau pelo pior que se está hoje».
José Aníbal também quer partilhar a sua história. É agricultor e vice-presidente da comunidade angolana da roça Agostinho Neto. Esclarece que são cerca de 130 os descendentes de angolanos que aqui vivem. «Sentimo-nos abandonados», confessa. E conta que em 2006 pediram um empréstimo de 10 milhões de dobras (cerca de 14.500 meticais) à embaixada angolana em São Tomé. O dinheiro serviria para investir em produtos agrícolas e criar uma pequena loja cujos lucros seriam destinados ao amparo dos mais velhos. A embaixada não acedeu ao pedido. «Dizem que não somos angolanos, que somos apenas descendentes de angolanos. O problema é que o Governo de São Tomé também acha que não somos santomenses porque descendemos de angolanos e também não cuida de nós».
Laurinda, a mãe de Aníbal, chegou de Angola. João, o pai, de Cabo Verde. Ela já morreu. Ele vive em Portugal, com outra mulher com quem veio a casar. Pai e filho perderam o contacto. «Eu escrevia-lhe, mas ele não me respondia e eu perdi a paciência. Fiz o meu lar aqui, com a minha mulher. Temos sete filhos». Nascido em 1967, Aníbal começou por trabalhar, na roça Agostinho Neto, como servente de pedreiro ao lado do avô, que lhe ensinou o ofício. Agora, depois da distribuição de terras, trabalha na agricultura. Planta mandioca, milho, abóbora e outros frutos da terra. Sente-se revoltado por não encontrar quem ajude a sua comunidade. «Há uns tempos, talvez em 2008 ou 2009, veio aqui uma delegação de deputados do » MPLA. Pediram-nos para fazer uma lista com todos os descendentes de angolanos e prometeram que iam dar apoio e materiais para trabalhar a terra, mas depois não aconteceu mais nada. Os mais velhos estão aí sozinhos e entregues à sua sorte».
Daniel Galera, escritor brasileiro de 32 anos, passeou pela roça e falou com habitantes, «principalmente com descendentes de cabo-verdianos». As histórias que encontrou são semelhantes. «Falam de abandono. Sentem-se desamparados quer pelo Governo de Cabo Verde, quer pelo Governo de São Tomé. Talvez sintam mais rancor em relação a Cabo Verde, porque é a terra que sentem como deles. Era para lá que a maioria gostava de voltar, mesmo aqueles que já nasceram em São Tomé».
Daniel ainda não traçou o conto que irá escrever, mas tem a certeza de que irá aproveitar algo das histórias que ouviu. «Não sei se a personagem principal será um habitante das roças ou alguém que, como eu, vem de fora e se depara com esta realidade, mas é muito provável que vá usar elementos das conversas que tive com as pessoas».
Um país sem livrarias
São Tomé cola-se à pele. O calor húmido faz ensopar as roupas. E a vegetação não dá descanso aos olhos. São Tomé é ‘Verde para Crer’, como escreveram José Eduardo Agualusa e o músico João Afonso na canção que compuseram durante os dias que passaram na ilha e que será gravada em disco e anexada ao livro de contos. Por todo o lado crescem árvores que só desistem de ganhar terreno quando chegam ao mar. Mangas, jacas, bananas, cocos, fruta-pão, cacau. Os frutos estão por toda a parte. «Só queria que em Cabo Verde tivéssemos 10 por cento de todo este verde», desabafa Celina Pereira durante uma viagem de carro. Mas a fartura que os olhos vêem os números desmentem. São Tomé e Príncipe está longe de ser um país rico. Apesar da abundância de recursos e de a população não ultrapassar as 180 mil pessoas (dados do World Fact Book, da CIA), o PIB per capita ronda os 1.300 euros, o que coloca São Tomé em 193.º lugar numa lista mundial com 227 países.
Entre os participantes do Roça Língua e os convidados da Bienal comenta-se que a cilindrada dos carros topo de gama que transportam a comitiva e os seguranças do Presidente Manuel Pinto da Costa até à CACAU – Casa das Artes Criação Ambientes Utopias –, para a inauguração da Bienal, contrasta com os pés descalços das crianças e com a falta de tudo que se nota pela ilha. Cerca de 48 por cento da população de São Tomé tem menos de 14 anos , o saneamento básico é precário, um terço dos escassos 320 quilómetros de estradas continua por pavimentar, o check in no aeroporto é feito em folhas de papel e não existe uma única livraria no país.
«Vivemos num paraíso e não temos noção. Os espinhos desse paraíso somos
nós. Isso entristece-me. De facto temos uma grande riqueza nas nossas mãos, mas não a sabemos aproveitar. A grande diferença entre nós e outros ilhéus é que nós não precisamos de fazer muito para sobreviver. Isso, por vezes, leva ao laxismo», lamenta Isaura Carvalho. Uma pequena história, contada pelos locais, ilustra o que acaba de afirmar: diz-se que a diferença entre um santomense e um cabo-verdiano é que o santomense nasce a olhar para o céu, para ver quando vai cair a jaca ou o coco, e que o cabo-verdiano nasce a olhar para a terra, para ver onde vai plantar as sementes.
«A relação das pessoas com a terra é de sobrevivência e não de produção. Os santomenses sempre foram recolectores e não produtores», continua Isaura. «Há aqui uma questão mental. Temos o potencial – uma terra extremamente fértil, o mar e um clima maravilhoso – mas o nosso discurso não é virado para a produção. Isso também se passa ao nível da classe política. Também aí somos recolectores. A estratégia é sempre ir lá fora à procura de capital, ver que ajudas podemos recolher».
Respiração como combustível
No Instituto Diocesano de Formação – instituição privilegiada de ensino em São Tomé e mais conhecida como ‘a escola portuguesa’ por seguir o currículo português – o dia normal de aulas de uma turma do 10.º ano é interrompido pela presença dos escritores brasileiros Daniel Galera e Tatiana Salem Levy, que vêm participar com os alunos numa oficina de escrita criativa, integrada no programa do Roça Língua. Começam por falar de livros, do que define um texto de ficção, «da história aparente e do subtexto», dos vários tipos de narradores. Depois da pequena aula, Daniel e Tatiana pedem aos alunos que soltem a imaginação e que, em 20 minutos, escrevam um pequeno conto passado em São Tomé no ano de 2016. Enquanto os estudantes se debatem com a angústia da página em branco, os escritores conversam com a professora Raquel, portuguesa, chegada a São Tomé apenas em Setembro passado. «Quase não existe o culto da leitura. Noto que não são capazes de entender um texto que seja sarcástico ou irónico e julgo que isso tem que ver com o facto de também não conseguirem ver a maldade. O estado de espírito das pessoas, aqui em São Tomé, acompanha muito o estado da ilha. Está tudo ainda muito em bruto. É tudo muito puro e isso nota-se nestes miúdos», teoriza a educadora.
Esgotou-se o tempo de escrita. «Quem quer ler?», pergunta Tatiana. As primeiras respostas são apenas risos envergonhados, até que, depois de algumas palavras de incentivo, surge um voluntário. O pequeno conto fala de um rapaz que, no caminho para a escola, viu outro rapaz negar ajuda a «uma idosa dos seus 87 anos, que tinha pelo rosto muita fome e sede, massacrada pelo sol do meio-dia». Perturbado pela falta de solidariedade do jovem, o personagem principal entrou em acção:
– «Por que é que tu não ajudaste a senhora quando ela te fez um pedido, visto que ela tem o rosto de cansada e que não pode arranjar algo para comer?».
– «Porque a minha mãe diz que os velhos são todos feiticeiros e que eu não posso ajudar quem eu não conheço».
– «Não te esqueças que a velhice é uma meta a que todos nós vamos chegar, tarde ou cedo».
Seguiram-se outros textos. Um sobre uma rapariga que resolveu fazer inseminação artificial e ficou grávida de uma «menininha negra e provavelmente de cabelos loiros, pois o homem era branco de cabelos loiros». E um outro, escrito pela Adelina, que fala da Rita, uma «menina alegre, viva e engraçada, mas azarada». A personagem conta a sua história: «Nasci no seio de uma família rica em São Tomé e Príncipe. O meu berço era de ouro, os meus brincos também e a minha roupa era de seda, mas os meus irmãos eram insuportáveis. Segundo minha mãe sempre fui azarada. A primeira roupa que compraram para mim o meu cão rasgou. No meu primeiro dia no infantário caí do escorrega. Na primária a minha professora era a pior da escola. Ralhava sempre e qualquer erro era motivo de palmatoadas. Do liceu nem quero falar, foi a pior etapa da minha vida». No fim da escola a Rita partiu para os EUA, «um país movimentado e com todo o tipo de poluição, ao contrário de São Tomé, que é calmo e onde as pessoas são solidárias». O que se passou depois ficou por escrever. Adelina não teve tempo para terminar a história.
Ângela também não acabou o texto, mas criou uma narradora cujo maior sonho era viajar: «Estava farta da rotina do meu país, das greves, da miséria. E assim foi. Numa bela manhã de quinta-feira embarquei para a minha aventura. Talvez ninguém me conseguisse perceber, mas o que estava em jogo era a minha felicidade. E o meu avião era tão especial que nem era necessário combustível. Era alimentado pela respiração e pela vontade de ser livre».
Denise, outra aluna da turma, tem 16 anos, quer ser escritora e revela que aos 11 anos escreveu um livro. «Está lá guardado no computador e chama-se Vinte Dias Para Compor Uma Canção». Talvez um dia venha a ser publicado como a primeira obra de uma autora famosa. Ou talvez fique para sempre esquecido no disco rígido. Mas «basta que tenha ficado uma sementinha numa das crianças para ter valido a pena», diz Tatiana. E, se a inspiração for fértil como as terras de São Tomé, pode ser que um dia as árvores dêem livros.
Artigo originalmente publicado no TABU, semanário SOL, Novembro 2011
fotografias de ML