"Terceira Metade": Design pelos outros 90%

A energia e criatividade com que o design brasileiro vem surpreendendo o mundo nos últimos anos tem um precedente importante: Os artefatos produzidos por pessoas comuns para satisfazer suas próprias necessidades. Nas ruas de cidades pequenas e grandes, especialmente nas áreas pobres e periféricas, podemos encontrar carrinhos de comida, churrasqueiras, brinquedos, móveis, utensílios, e outras soluções simples e inteligentes em perfeita funcionalidade e feitas com o uso sustentável dos materiais.

Suas formas vão além da simples função, seguindo também o coração e a emoção. Não há medo de ornamentação ou de cores fortes. Estes objetos rotineiros foram feitos pelas mesmas pessoas que os utilizam. Podemos chamar isso de design popular ou design anônimo, espontâneo. Finalmente há um lugar onde estes trabalhos podem ser expostos e admirados. O governo da cidade de São Paulo decidiu este ano em transformar um edifício projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer nos anos 1950, que estava sendo usado como um escritório do governo, em um novo museu.

Cadeira 'Multidão', Irmãos Campana.Cadeira 'Multidão', Irmãos Campana.

O Pavilhão das Culturas Brasileiras será um espaço de exibição e um centro de pesquisa e referência para projetar e disseminar a diversidade cultural brasileira. A ênfase é na herança cultural material e não-material das minorias e grupos menos privilegiados aos quais não foi dada muita visibilidade institucional até agora. O objetivo é legitimar, fortalecer e atrair a atenção às práticas culturais tradicionais e contemporâneas do povo brasileiro, em toda sua força e pluralidade.

Para anunciar o novo museu, o governo de São Paulo organizou a exibição Puras Misturas, mostra que durou de abril a novembro de 2010. A expressão paradoxal e contraditória “puras misturas” foi alcunhada pelo escritor brasileiro João Guimarães Rosa e revela, de uma maneira poética, o que acreditamos ser um atributo sintético da cultura brasileira: Sua mistura, sua diversidade.

Na entrada da exposição, que ocupa aproximadamente 2500 metros quadrados, três carrinhos de comida revelam beleza e sonhos. Um é usado por um vendedor de café que circula pelas ruas de Salvador, a cidade mais negra do Brasil, no estado da Bahia. Paulo Cezar de Jesus mistura um caminhão de metal industrializado em miniatura com um baú de madeira, aonde ele pode exibir garrafas térmicas de café e também difundir o som da música brasileira através de um tocador de CD. O desejo de ornamentação é evidente. O desejo de ornamentar é evidente.

O gosto pelo exagero também está presente no carrinho encontrado em Penedo, uma pequena cidade de Alagoas na região pobre do Nordeste, e usado por um homem que vende doces de coco. Também no nordeste, na cidade de juazeiro do Norte no estado do Ceará, um vendedor de pipoca prefere uma opção mais discreta, e pinta seu carro com o verde e amarelo da bandeira brasileira.

Embora não percebam, estes vendedores de rua estão usando um dos atributos básicos do design: A habilidade de conferir identidade a um produto ou serviço distinguindo-o de outros similares. Cada vendedor projeta sua própria ferramenta de trabalho de maneira a tornar o seu produto perceptível aos seus clientes.

Vista de exposição. Retirado do site de Adélia Borges.Vista de exposição. Retirado do site de Adélia Borges.

A comparação entre diferentes objetos feitos com a mesma intenção pode mostrar o quão diversas podem ser as soluções das pessoas para suas necessidades diárias. O churrasco é uma maneira muito comum de preparar a comida no Brasil. Porém, os utensílios coletados na região nordeste em 2009 mostram maneiras completamente diferentes de improvisar uma churrasqueira. Uma em particular demonstra um jeito interessante de reutilizar uma peça de máquina de lavar descartada. Outras reciclam restos de metais, e algumas utilizam cor e decoração.

Um dos pontos altos da exibição é a instalação interativa de assentos que podem ser tocados e usados. Eles vêm de todo o Brasil. Bancos feitos por indígenas e entalhados de uma peça única de madeira mostram formas e desenhos cheios de significados tradicionais passados de geração em geração. Eles ainda são feitos em sociedades da região amazônica nos dias de hoje. Povos indígenas como os Juruna, Kadiweu, Kamayurá, Karajá, Mehinaku, Suyá, Tiriyó, Trumai, Tukano, Urubu- Kaapor, Wai wai, Wajãpi and Waurá são apresentados na mostra.

Os assentos populares, muitos feitos por desconhecidos, usam materiais disponíveis em seu próprio meio ambiente, ensinando lições valiosas de conforto e ergonomia, além do uso de materiais crus. Um elemento recorrente no design vernacular brasileiro é a sustentabilidade. Mesmo antes da palavra “ecologia” existir nos dicionários, o povo brasileiro já era ecológico. Criar de acordo com as condições locais, fazendo uso correto dos materiais existentes e criando a partir do lixo e de desperdícios, uma atitude comum na sociedade brasileira, incluindo a classe média.

As ferramentas utilizadas por designers que tiveram uma educação formal são, às vezes, diretamente inspiradas por essa sabedoria popular. Em outros casos, eles reinventam o ato de sentar nos termos do léxico contemporâneo. Expor todos esses trabalhos contemporâneos juntos contribui para celebrar a diversidade da cultura brasileira.

Karol PichlerKarol Pichler 

Depois de décadas ignorando suas raízes culturais, os designers brasileiros estão agora, cada vez mais, participando na criação de soluções populares. Estes designers mudaram a “desvantagem” da cultura brasileira – a sua falta de tradição quando comparada a outras civilizações mais estabelecidas, como a europeia – em sua própria “vantagem”. Partindo do princípio de que tudo é novo e está prestes a ser inventado, liberdade e leveza podem infundir-se ao trabalho. Os artistas mais conhecidos neste modo de ver são Fernando e Humberto Campana. Na Puras Misturas, sua cadeira Multidão, feita de uma montagem de bonecas destroçadas, é exposta ao lado de uma coleção de bonecas do Museu de Folclore Antigo (a coleção agora pertence ao Pavilhão das Culturas Brasileiras). Do outro lado, há uma boneca recentemente desenhada pelo fashion designer Ronaldo Fraga, outro brasileiro que vai fundo na cultura popular para buscar inspiração para seu trabalho.

Adélia BorgesAdélia Borges

A exibição Puras Misturas transcende as categorias de arte “high” ou “low”, reconhecendo e sublinhando o diálogo entre elas. Através de abordagens cruzadas, justapondo diferentes linguagens e formas de trabalho culturais criadas em períodos, lugares e ambientes sociais distantes – entre culturas letradas e iletradas, refinadas e populares – nós podemos mostrar como elas se alimentam umas das outras em um processo permanente e dinâmico de recriação e redefinição. Em último caso, revela a ambiguidade desta oposição que originalmente caracteriza essas duas esferas. Há quatro anos, o Museu Nacional de Design Cooper-Hewitt de Nova Iorque mostrou a importante exibição “Design para os outros 90%” (Design For the Other 90%). Já era hora de conhecermos diferentes iniciativas, especialmente no hemisfério Sul, de design feito pelos outros 90%. Eles podem ser uma fonte de energia criativa, e pode nos inspirar a respeitar e celebrar a diversidade cultural.

 

Adélia Borges participou em Terceira Metade, uma programação do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro com a curadoria de Marta Mestre e Luiz Camillo Osorio, e que se desenha no espaço geográfico e mental do Atlântico, em especial na triangulação Brasil, países africanos e Portugal.

por Adélia Borges
Vou lá visitar | 29 Abril 2011 | Brasil, design brasileiro, Terceira Metade