"Terceira Metade": Fotografia do pertencimento - Fotografia africana na coleção Gilberto Chateaubriand

As obras de Seydou Keïta, Jean Depara, J.D. ‘Okhai Ojeikere, Malick Sidibé e Ambroise Ngaimoko, presentes na coleção Gilberto Chateaubriand, constituem um recorte intrigante da ‘era de ouro’ da fotografia africana. As obras expressam projetos estéticos de qualidade que consolidam um olhar sobre a mentalidade e cultura africanas. Entretanto, é preciso compreender que a coesão das obras resulta, sobretudo, de condições semelhantes de produção. Nesse sentido, o título indica a necessidade de posicionar-se emotiva e criticamente, pondo em questão o mito da unidade do continente africano a partir da ambiguidade que caracteriza a fotografia: arte e ciência.

Terceira Metade - Exposição 'Celebrações/Negociações: fotografia africana na coleção Gilberto Chateaubriand', Curadoria: Marta Mestre e Cezar Bartholomeu, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 2011.Terceira Metade - Exposição 'Celebrações/Negociações: fotografia africana na coleção Gilberto Chateaubriand', Curadoria: Marta Mestre e Cezar Bartholomeu, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 2011.

A sincronia dos processos de independência dos países africanos1, por exemplo, é unidade que não ocorre organicamente. É dirigida por interesses dos países colonizadores e visa manter um estado de subserviência econômica, senão politica. Tal desejo de controle explica o impulso do desenvolvimento da fotografia no continente: é exigido das populações locais, a partir da independência, fotografias destinadas a documentos de identificação. Essa enorme demanda leva ao acúmulo de riqueza por parte dos poucos estúdios fotográficos em atividade então. Entre a década de 60 e meados da década de 802, assim, há proliferação desses estúdios que operam de modo autônomo por conta da relativa artesania do processo em preto e branco3. As obras dos artistas em questão resultam, assim, de condições materiais assemelhadas em diferentes países, como o Mali, a Nigéria e Angola, e derivam do período de riqueza momentânea que sustenta os estúdios fotográficos africanos. Os artistas presentes na exposição são indiscutivelmente grandes retratistas, e alguns dos melhores fotógrafos africanos do século 20, revelados nas Bienais de Fotografia realizadas em Bamako, no Mali. Posteriormente, suas obras ressoam na França, cujas tradições colonial e acadêmica motivam a produção de estudos e mostras, seja no campo da arte, seja observando tal fotografia a partir do interesse antropológico e/ou etnográfico.

Terceira Metade - Exposição 'Celebrações/Negociações: fotografia africana na coleção Gilberto Chateaubriand', Curadoria: Marta Mestre e Cezar Bartholomeu, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 2011. Ambroise Ngaimoko, Sem título, 1978/1998. Fotografia. 59,5 X 49,7 cm.Terceira Metade - Exposição 'Celebrações/Negociações: fotografia africana na coleção Gilberto Chateaubriand', Curadoria: Marta Mestre e Cezar Bartholomeu, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 2011. Ambroise Ngaimoko, Sem título, 1978/1998. Fotografia. 59,5 X 49,7 cm.

Se unidade imposta pela estrutura de produção define uma questão material (a produção do retrato documental, a fotografia em branco e preto), esse período posterior à independência dos países africanos coincide com experimentação estética crescente com o meio, o que é favorecido pelo interesse da população pela representação fotográfica. Nesse período, a fotografia se desloca progressivamente de uma concepção documental do retrato, ainda que este pareça permanecer o centro da problemática da fotografia na África. A questão estética se desenvolve, ao longo desse período, partindo de uma retratística formal crescentemente criativa até a crônica de costumes e o foto-jornalismo. A variedade temática resultante já permite descontruir muitos dos clichês que mesmo hoje persistem sobre a vida no continente.  

A fotografia na África no século 19 e inicio do século 20 foi feita por estrangeiros para quem o continente era apenas objeto de incursão e colonização visual. As imagens resultantes se caracterizariam pelo exotismo, e, posteriormente, por uma África pobre cuja única riqueza consiste na natureza. Em suma, constrói-se a imagem da África como estereótipo, sua imagem a de continente homogêneo. A partir dos anos 60, a fotografia fabrica imagem muito diversa, que desmonta o clichê da África primitiva a partir de uma sensibilidade estética desenvolvida autoralmente. O que caracteriza esse período de produção fotográfica pós-colonial é, em primeiro lugar, o fato de que é realizada por africanos e para africanos.

Terceira Metade - Exposição 'Celebrações/Negociações: fotografia africana na coleção Gilberto Chateaubriand', Curadoria: Marta Mestre e Cezar Bartholomeu, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 2011. Seydou Keïta, sem título, 1952-1955/1998. Gelatina e prata. 59,3 X 49,5 cm.Terceira Metade - Exposição 'Celebrações/Negociações: fotografia africana na coleção Gilberto Chateaubriand', Curadoria: Marta Mestre e Cezar Bartholomeu, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 2011. Seydou Keïta, sem título, 1952-1955/1998. Gelatina e prata. 59,3 X 49,5 cm.

Trata-se de uma fotografia na qual a relação entre fotógrafo e tema é de grande familiaridade. Isso é percebido nas fotografias como proximidade compreensiva entre fotógrafo e modelo; o olhar é cúmplice. Temáticas e modo de construí-las visualmente fazem, nesse momento, parte de uma mesma moldura cultural, o que não significa necessariamente que essa imagem da África seja menos idealizada do que aquela produzida por estrangeiros – ela também é, como toda fotografia, em parte projeção daquilo que se desejaria ser.

É perceptível, desse modo, o contraste entre os retratos formais nos quais poses, cenografia e indumentária remetem à tradição, e as outras imagens, que nos revelam um continente em busca de representar-se integrado ao mundo, tematizando uma vida moderna, informada e rica, muitas vezes de modo ingênuo. A temática dessas fotos é caracterizada por grande liberdade e otimismo, o que se explica tanto pelo reconhecimento desses indivíduos como cidadãos quanto pelo fato de que essa cidadania somente tem sentido a partir da relação com o resto do mundo. As imagens descrevem celebração, mas também negociação – de uma estética, de uma identidade, de uma cultura, de um futuro mesmo.

A qualidade das obras, no entanto, não pode ser compreendida somente a partir de sua temática. É preciso analisar o problema distinto que agregam ao gênero do retrato. Isso não pode ser realizado a partir do ponto de vista de uma história da fotografia centralizada, sob a chancela modernista de um ‘olhar de fotógrafo’ artístico que busca construir formalmente a imagem, pelo menos não a partir de valores definidos pela tradição.

Terceira Metade - Exposição 'Celebrações/Negociações: fotografia africana na coleção Gilberto Chateaubriand', Curadoria: Marta Mestre e Cezar Bartholomeu, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 2011. Seydou Keïta, sem título, 1952-55/1998. Gelatina e prata. 50,3 X 60,4 cm.Terceira Metade - Exposição 'Celebrações/Negociações: fotografia africana na coleção Gilberto Chateaubriand', Curadoria: Marta Mestre e Cezar Bartholomeu, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 2011. Seydou Keïta, sem título, 1952-55/1998. Gelatina e prata. 50,3 X 60,4 cm.

Se relacionamos as imagens à modernidade da fotografia e à construção feita pelo olhar do fotógrafo, fica evidente que o que problematizam não é o ponto de vista, a composição, luz, textura e corte; talvez tais questões estejam em construção. É preciso considerar, de fato, que o retrato se presta menos à busca de uma autonomia da forma, o que pode ser percebido, por exemplo, nos retratos de Seydou Keïta. Há pouca possibilidade de interferência de uma semântica da forma da fotografia: as figuras são retratadas centralizadas, seu corpo inteiro respeitado. Não há preocupação específica em criar problemas com a luz. Esse é o caso do retrato de homem realizado em 1999, cuja pose tradicional revela a posição social. Na tradição yorubá, tal pose define o retrato de um chefe ou babalaô.

Por outro lado, não é adequado submeter essas fotos à relação com a retratística da fotografia do século 19. Ainda que haja algumas comparações passíveis de ser feitas com fotógrafos como Nadar ou Carjat, na medida em que fundam o gênero na fotografia, forçosamente veríamos a fotografia africana como verossimilhante e inocente, reatualizando o clichê de uma caracterização da África homogênea e primitiva, agora, a partir do fotógrafo africano. No entanto, de fato o que lhes interessa não é captar o interior dos retratados, fazer com que se exponham na pose, por exemplo. O que está em questão nessas imagens é o modelo em sua situação.

Ainda que se represente um individuo em particular, e se busque esteticamente particularizar o sujeito, parece sempre ser preciso para o fotógrafo ir além do individual. No entanto, esse ‘além’ se define a partir do modelo, e não do dispositivo e seu problema semântico, como ocorre tradicionalmente na fotografia. Nos retratos de Keïta, por exemplo, deseja-se particularizar o sujeito no tecido social, o que depende de dotá-lo de uma pose tradicional ou um marcado dandismo. Sidibé situa os corpos pondo-os em relação com o espaço marcando a representação cúbica da fotografia. Nas tipologias de cabelos de Ojeikere, transforma-se as cabeças em pedestais para os cabelos que se tornam formas escultóricas; interessa menos quem é o retratado, e mais o problema de forma que qualifica a cabeça. Por fim, é preciso envolver os modelos nos padrões dos tecidos africanos, que surgem não apenas como vestimenta ou fácil fundo infinito, mas como colisão entre padrões abstratos, relacionando o corpo fotografado a um grafismo elegante e planar.

Terceira Metade - Exposição 'Celebrações/Negociações: fotografia africana na coleção Gilberto Chateaubriand', Curadoria: Marta Mestre e Cezar Bartholomeu, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 2011. Jean Depara, Le Taxi Congolais, 1958/1998. Gelatina e prata. 30,7 X 39,8 cm. Terceira Metade - Exposição 'Celebrações/Negociações: fotografia africana na coleção Gilberto Chateaubriand', Curadoria: Marta Mestre e Cezar Bartholomeu, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 2011. Jean Depara, Le Taxi Congolais, 1958/1998. Gelatina e prata. 30,7 X 39,8 cm.

Há muito a ser dito sobre a presença recorrente de tais estampas, e sobre esse choque entre padrões. Seu apelo é imenso e faz com que o tais imagens continuem esteticamente relevantes; são inspiradoras tanto para a visualidade dos anos 60 e 70 quanto agora. No entanto, talvez o uso de tais tecidos vá além de seu uso fortuito: o historiador da arte Ernst Gombrich, em O sentido da Ordem, estudou profundamente ornamentos, motivos e padronagens, analisando sua forma e buscando compreender sua psicologia. A partir de sua leitura, poderíamos propor como hipótese que um padrão é um cosmos. Sua feitura é motivada pela ordenação racional do universo. Cada padronagem revela, ao mesmo tempo, o objeto que lhe origina, o modo pelo qual este objeto foi abstraído e uma lógica compositiva que estrutura o padrão. O problema que subjaz cada retrato, assim, seria o de reposicionar o sujeito a partir de um dado empírico acrescentado a imagem. Entretanto, o alcance dessa qualificação tende a ultrapassar a dimensão social: a fotografia é suplementada esteticamente de modo a situar o pertencimento do sujeito a uma ordem que ultrapassa o real enquanto esfera material. O choque entre padrões indica a necessidade profunda de rever a ordem do mundo a partir da admissão da fratura de sua ordem, enquanto essa fratura é esteticamente marcada. Busca-se situar o ser em uma esfera simbólica.

Na tradição ocidental do retrato, a relação entre olhar e o simbólico parece ser frequentemente trivializada a partir da conjugação do corpo com elementos convencionados, de modo a tornar o indivíduo legível como tipo, agregando o retrato ao problema da iconologia. O cão, ao lado de uma pessoa, passa a significar sua fidelidade. Um livro, que se trata de intelectual. Entretanto, esses retratos africanos parecem buscar o oposto: a necessidade de situar o sujeito não equivale a adequá-lo a uma convenção, mas conjugá-lo com elementos abstratos. Há clara ciência de que, se a fotografia está sempre atrelada ao real, é preciso dar conta de uma esfera mítica.

Nesse sentido, essa fotografia africana parecer querer colocar-se contra as palavras da crítica de arte Rosalind Krauss: “Quaisquer que sejam seus outros poderes, a fotografia poderia ser chamada de sub ou pré-simbólica, pois cede a linguagem da arte de volta à imposição das coisas.”4 Isto é, a fotografia sempre estaria ligada à denotação, ao empírico e ao particular por conta da capacidade técnica de representar o real que estaria na sua essência. Ao contrário, o simbólico exigiria a presença de uma convencionalidade legível, que a presença imperiosa da descrição do real da fotografia sempre poria em dúvida. Será que isso impede a fotografia de lidar com aquilo que é metáforico, eterno e essencial? O problema de fundo de tal afirmação deriva de uma oposição entre conotação e denotação na fotografia como oposição entre essência e aparência (na qual a arte se poria do lado da essência), ou, para colocar a questão historicamente, da afirmação da autonomia da arte como exclusão da natureza, ponto de vista que relaciona parte do modernismo (e a crítica histórica que faz à representação na arte) ao pensamento platônico. Se o pensamento moderno lida fortemente com a exclusão para chegar à essência das coisas, essa fotografia que vemos, ao contrário, trata da inclusão.

Terceira Metade - Exposição 'Celebrações/Negociações: fotografia africana na coleção Gilberto Chateaubriand', Curadoria: Marta Mestre e Cezar Bartholomeu, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 2011.Terceira Metade - Exposição 'Celebrações/Negociações: fotografia africana na coleção Gilberto Chateaubriand', Curadoria: Marta Mestre e Cezar Bartholomeu, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 2011.

Do mesmo modo, essa fotografia se coloca contra o olhar purista da fotografia modernista, caracterizado por um fotógrafo como Edward Weston, para quem era preciso “fotografar uma pedra, fazê-la parecer uma pedra, mas ser mais do que uma pedra”5, de modo a buscar conciliação entre representação e abstração a partir da manipulação da linguagem fotográfica. Na fotografia africana parece não ser necessário revelar a essência das coisas, já que não parte de conceito no qual a fotografia descreve exclusivamente as aparências. Não há necessidade de conciliar aquilo que nunca esteve separado. As coisas já são mais do que suas aparências, mesmo em uma fotografia. Nesse sentido, o uso da fotografia na África não cabe na expressão ‘imagem técnica’. A fotografia não é uma transcrição mecânica das aparências, mas totem da coisa; imagem da coisa animada.

Na fotografia, de fato, a imagem principia na concordância entre olhar e perspectivação técnica mediada pela câmera; arte e técnica, natureza e cultura, não se excluem, pelo menos não por antecipação. O olhar vai do observador ao ponto de fuga dentro da representação, o que a tradição ocidental identifica como ilusão, e a fotografia, desse modo, é vista como simulacro do real desprovido de essência. Esse eixo visual constitui parte do sistema da perspectiva, isto é, da estruturação da representação bidimensional de um mundo tridimensional. Ele corresponde à instituição intelectual da distância que separa sujeito e objeto e os define enquanto posições materialmente constituídas – sujeito e objeto da representação são elementos estruturantes de um jogo das aparências. Essa distância é também relação que situa sujeito e objeto como equiparados, mas também como alienados, indicando o controle ou desejo, como bem demonstra Panofsky em “Perspectiva como forma simbólica”.

É intrigante que o mesmo ponto de vista horizontal, à meia altura e no eixo, que simula uma perfeita neutralidade e equipara sujeito e objeto seja recorrente em todas as fotografias em exposição. Tal visada é nomeada na culturas yorubás pela palavra jijora, isto é, mimese à meia altura. O olhar do fotógrafo encontra com seu modelo, mas a relação entre sujeito e objeto é tão importante quanto aquela do seu objeto com o mundo, e talvez aí esteja a diferença entre o retratos na fotografia ocidental e essa imagens provenientes do continente africano. Não há alienação de um pelo outro a partir do olhar, e assim, o corte da fotografia não secciona o modelo do mundo. Essa fotografia é descoberta e expressão de pertencimentos. Aquilo que qualifica o ser, a sua essência, é definida por esse pertencimento que se faz ver, em oposição a um conceito de autonomia do ser definido por qualidades interiores que se pretenda fazer ler. O olhar que produz a mímese, assim, media não apenas sujeito e modelo, espectador e fotografia, mas sujeitos e mundo, o que pode ser de grande valia ao nos pensarmos em relação com essas imagens: celebrações e negociações.

BIBLIOGRAFIA

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  • 1. Por exemplo, grande parte dos países africanos se torna independente no ano de 1960: Chade, Benin, Nigéria, Costa do Marfim, Madagascar, República centro africana, Mali, Níger, Senegal, Burkina Faso, Mauritânia, Togo, Zaire, Somália, Congo, Gabão, Camarões.
  • 2. Por volta de 1985 a predominância da fotografia colorida começa a destituir a autonomia dos estúdios, pois submete a economia da fotografia à figura do laboratorista/proprietário dos laboratórios instantâneos.
  • 3. Autonomia relativa na produção e processamento fotográficos, já que os estúdios dependem da precária importação ou contrabando de papéis, química e equipamento porque não há indústria de material fotográfico no continente.
  • 4. Em seu famoso texto ‘Notas sobre o Índice’, escrito em 1977, p.203.
  • 5. Em NEWHALL, Nacy (ed.). The daybooks from Edward Weston. New York: Millerton Aperture vol 2, 1973, p.154 apud GRUNDBERG, Andy e GAUSS, Kathleen McCarthy. Photography and art – interactons since 1948. New York: Abeville press, 1987, p. 23.

por Cezar Bartholomeu
Vou lá visitar | 4 Maio 2011 | Ambroise Ngaimoko, Coleção Gilberto Chateaubriand, Fotografia, J.D. 'Okhai Ojeikere, Jean Depara, Malick Sidibé, Seydou Keïta, Terceira Metade