Toda a imagem é pele: cartografia do afecto ou os mundos outros na fotografia de Pieter Hugo
A primeira vez que me deparei com o trabalho de Pieter Hugo foi em 2014 na Fundação Calouste Gulbenkian. Organizada pelo Programa Próximo Futuro, a exposição This Must Be The Place (Este é o Lugar) celebrava os dez anos da obra artística do fotógrafo sul-africano. O laço que então criei com as suas imagens ficou até hoje. Quatro anos depois, o artista nomeado para o Deutsche Börse Photography regressou à capital portuguesa numa mostra mais completa com 15 séries fotográficas que foram captadas na África do Sul, no Ruanda, no Gana, na Nigéria, nos EUA e na China. Between the Devil and the Deep Blue Sea (Entre a Espada e a Palavra) adquire o carácter antológico e monográfico a que as suas mostras nos têm habituado. A exposição esteve patente no Museu Colecção Berardo entre 5 de Julho e 7 de Outubro de 2018.
É através dos canais ilusórios da fotografia que Pieter Hugo, nascido em Joanesburgo em 1976, denuncia a perversidade da vida. Tomando como palco principal uma determinada África, o que verdadeiramente lhe importa não é a geografia, que vai conhecendo nas suas contínuas e repetidas viagens, mas o diluir dos limites que conhecemos, desenhados no mapa e construídos em redor das relações humanas.
Influenciado pela gramática visual de Golblatt, o olhar perscrutador e imparcial de Pieter Hugo insiste em voltar-se para a periferia do acontecimento, trabalhar o “fosso entre o idealizado, [o ficcionado] e o real”1 e assim participar no modo lento e meticuloso de fazer jornalismo. As suas imagens mostram um conhecimento da História da Arte – essa “ciência” social (uma construção) quase só exclusiva do Ocidente –, e revelam-se simultaneamente clássicas e híbridas. Nelas lê-se ironia, por vezes muito subtil, e notam-se a importância do voyeurismo e o profundo respeito para com o objecto retratado, para Pieter instrumentos primordiais no fazer da sua fotografia.
Ainda que ausente, o sujeito é o tema de eleição. E é respeitado pela distância do passo que é escrupulosamente mantido atrás. Todo aquele que é oprimido, desconsiderado ou marginalizado, todo o que se encontra nas franjas da sociedade tem aqui um lugar de relevo: a criança; o cego; o negro albino; o artista de rua; o toxicodependente; o louco; o sem-abrigo. Entre estes – a favor de uma nivelação, e numa clara denúncia do preconceito e da hierarquização e segregação sociais que existem na África do Sul e no mundo – encontramos representados a sua família, os seus amigos e o próprio artista, nas séries There’s a Place in Hell for Me and My Friends (2011-2012) e Kin (2008-2011). No trabalho de Hugo, há uma inequívoca vontade de manifestar que somos todos iguais – vimos do mesmo e voltamos ao mesmo, (ou não estivesse a vanitas tão presente).
É a partir da História da Fotografia e da História da Pintura que reúne os instrumentos para o seu trabalho: através da pesquisa das categorias paradigmáticas do retrato, e das diferentes estéticas do belo, do grotesco e do sublime; e da aplicação das técnicas de construção da imagem. Prévias a quaisquer pretensões estéticas, interessa-lhe sobretudo agir com sinceridade e ser frontal – criar espelho. Por isso, aposta em tornar visível o que lhes reconhece: um “equilíbrio entre [a] dignidade, [a] autoridade e [a] vulnerabilidade”. Tomando a fotografia como monumento – um conceito que adopta a partir do famoso trabalho de August Sander e as suas poses-tipo –, estuda o retrato como representação do poder – Judges (2005); Barristers and Solicitors Supreme Court Ghana (2005) e The Hyena & Other Men (2005-7) – ou dispositivo subjectivo, criador da identidade pessoal – Nollywood (2008-9). Se a retira do seu pedestal, permite-se a testar as suas capacidades enquanto dispositivo afectivo, como acontece em Messina/ Musina (2006) e muito especificamente em Californian Wildflowers (2014), onde se deixa guiar pelo “desregramento, (…) [pela fragilidade e pelo triste] estado de ausência2” dos retratados.
Pieter Hugo domina a técnica do retrato, essa forma de arte que considera estar morta. Mas é pela intensidade do contraste da humanidade dos sujeitos retratados com a realidade social em que estes se inserem que a sua fotografia se torna notável. Objecto de desdobramento, as imagens surgem imersas em incríveis camadas de tensão – por exemplo em Permanent Error (2009-10) –, um desdobramento subjectivo, particular, distinto para cada espectador que se predisponha a ser interpelado pela obra. O mesmo imaginário (de confronto) pode ser despertado nas naturezas-mortas e nas paisagens – onde o sujeito, embora ausente, é um fantasma – e as imagens funcionam como metáforas ou referentes à contextualização “das cicatrizes das vivências biográficas e da experiência histórica nacional”3.
Nestes termos, Pieter Hugo considera-se um activista ou um political-with-a-small-‘p’ photographer”. De facto, entre os destroços de uma África pós-moderna, de uma China pós-revolucionária e de uns Estados Unidos em crise pós-identitária contam-se as consequências do colonialismo; da independência; do “sub-desenvolvimento”; do apartheid; do pós-apartheid; da crise; da recessão; da revolução; da pós-revolução; do consumismo; dos condicionalismos vários e das situações de marginalidade que daí – e da fragilidade da natureza humana – decorrem. O artista não se conforma com as narrativas de África feitas aos olhos do “Ocidente”: a casa dos miseráveis e oprimidos acerca dos quais nada se pode fazer, ou o paraíso ideal, imagem condensada pelo imaginário infantil e explorada pela indústria do turismo. Sem se restringir ao Global South, Pieter Hugo viaja até aos territórios onde o American Dream falhou – ou talvez terá sido verdadeiramente realizado? –, e à distante, mais famosa e alienada superpotência económica do mundo. Fotografa o que a ele também lhe é diferente, novo, exótico, enquanto se parece perguntar: o que é ser livre?, e o que é pertencer?, o que significa identidade?, e raça?, porque nos distinguimos do outro?, e até onde vão os limites do domínio?
Apesar de desconsiderado como tal pela maioria dos africanos de raça negra, Pieter Hugo é, sem dúvida, africano. Mais complicado ainda: é, na realidade, um afrikaner, e um nómada que é artista contemporâneo e viaja em países como a Nigéria ou o Gana, nos quais até 1994 os sul-africanos não podiam entrar. A sua fotografia é característica de uma incrível dureza e honestidade. É o resultado de um olhar profundamente crítico e sensível às dissonâncias sociais, que descarta quaisquer “cruzadas morais” ou tentativas de condescendência, e faz por revelar uma existência tantas vezes camuflada pelas narrativas estereotipadas.
Embora trate questões reais – que o próprio acto de fotografar pretende incessantemente compreender, mas nunca solucionar –, o seu trabalho funciona na base de realização de projectos, o que significa que há uma criação, uma dedicação e um tempo a eles associados. Esse tempo prolongado resulta, além disso, da preferência de Pieter Hugo por câmaras de grande formato, certamente mais lentas e difíceis de manejar, mas que em contrapartida conseguem atingir grande detalhe, concebendo uma fotografia de maior intensidade. O uso deste tipo de câmaras, e o tempo a elas associado, faz com que o próprio estatuto documental – com excepção da série The Journey (2014) – seja posto em causa. Com uma declarada intenção artística, as suas imagens surgem – entre o mapa (rizoma de territórios vários) e o documento (catálogo organizador de categorias; inventário) – como quadros para nos falar da humanidade – ou da falta dela –, e do modo como é possível criar algo novo a partir da ruína.
É disto que tratam This Must Be the Place (Este é o Lugar) e Between the Devil and The Deep Blue Sea (Entre a Espada e a Palavra). Com uma irredutível precisão, os títulos denunciam os retratos incriminatórios de sociedades perversas e os mundos outros que existem por esse mundo fora – “lugares” reais onde pessoas não menos reais vivem, e aos quais falta o equilíbrio. Ao observarmos estas fotografias, assistimos ao desmascarar desses lugares que nos foram prometidos, ou onde nos encontramos encurralados. Lugares que são becos e que nos parecem negar a possibilidade de uma boa hipótese de fuga.
- 1. Texto de Apresentação, Pieter Hugo. Between the Devil and The Deep Blue Sea. Entre a Espada e a Palavra. in https://pt.museuberardo.pt/sites/default/files/documents/folha_de_sala_p...
- 2. Pieter Hugo em 2016 acerca de Flores Silvestres da Califórnia. Vide Link Nota 1.
- 3. Texto de Apresentação, Pieter Hugo. Between the Devil and The Deep Blue Sea. Entre a Espada e a Palavra. Ibidem.