Tomorrow is another day
Tomorrow is another day é uma expressão que aponta desde um lugar presente para o futuro com um olhar expectante sobre as memórias e as heranças do passado, trazendo para o discurso as falhas e as ausências da história e da política e apontando para um amanhã esperançoso alicerçado na reimaginação. O título da exposição refere-se ainda à vontade de fazer arquitetura que quebra cânones vigentes no momento pós-independência no continente africano em que a arquitetura adquiria a capacidade de despertar utopias e implicava também um compromisso com a democracia, com a liberdade social, produzindo lugares de valor inestimável. Trata-se, portanto, de uma tentativa de reflexão da reconciliação entre o que já existe e aquilo que nunca foi e que um dia talvez será algo diferente, entre o velho e o novo, entre a memória, história e a distopia e utopia ideológica.
A exposição é composta de séries de fotografias e de um vídeo desenvolvidos pela artista Mónica de Miranda. Numa primeira instalação fotográfica, Babel Tower (2018), o cenário de intervenção artística é a Tour de l’Échanger, uma torre em Kinshasa, República Democrata do Congo, que já foi uma das mais altas na África aquando de sua construção (1970-1974), projetada pelo arquiteto franco-tunisino Olivier-Clément Cacoub, a pedido do ditador Mobutu, para servir de homenagem a Patrice Emery Lumumba, a principal liderança na luta contra a dominação colonial belga. O seu formato é uma mistura de signos arquitetônicos que versa entre arranha-céu, pirâmide e cidadela, o que parece exprimir uma vontade de poder. Cacoub foi também o responsável por Gbadolite, considerada por muitos como a Versailles do Congo, além de muitos outros projetos na África de língua francesa antes, durante e depois das guerras por independências. A torre não chegou a ser terminada por várias décadas, sendo concluída recentemente com dinheiro chinês.
Monumentos são erigidos para fixar símbolos, exaltar a memória de acontecimentos e de personagens que fizeram a História, a partir da perspectiva do poder. São feitos de forma sólida para transmitir a imutabilidade da glória e fazerem perdurar essas narrativas por gerações. Edifícios também são monumentos erguidos para encarnar visões de mundo e organizar nossa maneira de estar e apreender o tempo e o espaço. Esta nova série de trabalhos de Mónica de Miranda sugere-nos uma outra categoria: o corpo-monumento. Desenvolvidas em Kinshasa e Maputo, as obras partem do patrimônio construído antes e depois das guerras de independência para assinalar a apropriação e a ressignificação de dogmas de poder e de cânones de beleza e da estética helenística por meio da presença e do protagonismo da mulher negra. Ausente dos livros de história e das narrativas oficiais, a sua presença constante nas obras aqui apresentadas transforma-se num corpo-monumento. As gêmeas acrescentam ainda a representação da dualidade e da alteridade, num jogo de semelhanças e de diferenças em ambientes naturais e arquitetônicos, em que ruína e resiliência nos projetam para um terreno de reinvenção social.
A dramaturgia e a representação foram usados em muitas teorias das ciências humanas e na arte como instrumento de análise e de transformação social, a exemplo do Teatro do Oprimido de Augusto Boal, justamente por explicitarem de forma potente os elementos que compõem as dinâmicas da sociedade. Tomo emprestada esta lente de observação baseada no teatro para ler o trabalho Beauty (2018), núcleo central da mostra, e que conta com a colaboração do artista Chullage na construção do som. Primeiro pela instalação trazer em sua composição elementos que nos remete à arte dramática: as cortinas, a estrutura, o backstage. Segundo, porque ao adentramos nesta instalação e olharmos para o espelho contido nela somos jogados para dentro do vídeo como agentes participantes. Poderíamos pensar numa espécie de teatro decolonial com sua dramaturgia própria, personagens, atores sociais, narrativas, em que se explicita as dinâmicas que animaram e ainda animam as relações que se perpetuam na contemporaneidade com referencias ao passado e construção do presente, da filosofia da estética em relação com a cidade, e que questiona quem somos nós nesta peça?
A série fotográfica Still life (2018) apresenta os espaços de aprendizagem de escultura na escola de Belas artes de Kinshasa uma das mais antigas de Africa. Modelos clássicos estão presentes tanto em réplicas de estátuas greco-romanas quanto em anotações e desenhos anatómicos minuciosos no quadro. Ao mesmo tempo, observamos a trasladação e a transgressão destes códigos e técnicas para esculturas com traços africanos.
O percurso expositivo encerra-se com a fotografia You can cut all the flowers but you cannot keep spring from coming título retirado da famosa frase de Pablo Neruda que tem inspirado por décadas movimentos de resistência contra ditaduras e o fascismo, recém-acordado nas Américas e na Europa. Palavras estas que foram entoadas na marcha das mulheres, em janeiro de 2017, nos Estados Unidos, e que viraram lema no Brasil desde o assassinato da deputada negra Marielle Franco, em março deste ano. As flores, que tão frequentemente são associadas à fragilidade e à beleza femininas, são cada vez mais lembradas como oferendas à luta, a um amanhã promissor e de fato transformador. Com a conscientização da importância da interseccionalidade e a união das mulheres, quem poderá deter esta nova primavera?
Exposição individual comissariada por Cristiana Tejo |
Inauguração Qua 26/09 17h-20h na Galeria Carlos Carvalho |