"Transições" de Joca Faria, a fotografia como recurso estético e documental
O fotógrafo não regista uma imagem. Ele cria imagem. O seu ponto de partida e seus instrumentos são trabalhados para criar a ilusão do real.
in A personagem, Brait Beth
Pode uma cidade caber num porto movediço? A resposta mais óbvia será negativa, se pensarmos conforme o plano lógico das coisas e das circunstâncias que as movem. Um porto é lugar de partidas e de chegadas, onde se cruzam movimentos, trajectórias, sonhos, desejos ou perspectivas de vida. Literalmente, não pode, num lugar com tais características, caber a globalidade citadina nas suas mais variadas facetas. No entanto, porque é de fotografia que escrevo, pode um ‘milagre’ surgir para subverter a previsibilidade do espaço urbano. Eis o que sucede no livro fotográfico Transições – um porto que nunca dorme, de Joca Faria. Através da sua mira, o artista moçambicano cria vários discursos sobre a cidade revelados nas imagens que se cruzam com a realidade.
Constituído por aproximadamente 60 fotografias captadas no porto de Maputo, um dos mais importantes da África Austral, Transições é um exercício sobre o lugar e sobre a subtileza gerada pela singularidade do instante. Concorre, para o efeito, não propriamente o que o fotógrafo vê, mas o ângulo ousado de abordagem. Isto é, ao invés de intervir na manipulação dos objectos de modo a alcançar a tão almejada ideia de “perfeição”, Joca Faria opta em seguir a espontaneidade do contexto. A sua fotografia é documental no sentido em que tece uma espécie de diário de um território sobre o qual a maioria dos cidadãos (quase) nada sabe além do próprio nome. Deste ponto de vista, Transições é um veículo que conduz ao “desconhecido”, ao conhecimento, ora resumindo a descrição real do que é o porto de Maputo, ora desanuviando a neblina sobre esse lugar imprescindível à economia moçambicana. É um trabalho aturado. Inclusive recria a superfície e os movimentos habitualmente invisíveis aos trabalhadores e aos transeuntes. Faria quis, pois, ser demiúrgico na (re)criação da imagem, por vezes apresentada em modo suspenso, como se levitar fosse um verbo obrigatório para quem segura numa câmara fotográfica.
Exemplo disso é a imagem de um estivador no interior de um porão que tenta resolver um problema no engate da banheira de carga. É uma imagem forte, para a qual o artista venceu os limites da condição física humana, colocando-se numa dimensão superior e infinita, de facto, em jeito de levitação.
O porto de Maputo, em Transições, aparece retratado de múltiplos modos, de vários cantos e em diferentes momentos do dia. Por exemplo, a fotografia que documenta uma mulher a registar no papel alguma informação relevante. A atividade acontece às 04h58 minutos da manhã e o modo da mulher estar vestida denuncia temperaturas baixas. Ela é o centro do click que, entretanto, não exclui o meio circundante. Aparentemente, a funcionária nem faz ideia de que está a ser fotografada e isso é um factor distintivo nessa imagem que diz tanto: o sol ainda nem nasceu e a mulher já se encontra ali entregue ao seu ofício, entre vagões, guindastes, muros de betão armado e luzes artificiais.
Um porto nunca dorme, porque a essência dessa infra-estrutura marítima e terrestre são as pessoas. Joca Faria move-se ao encontro dos objetos definidores do espaço e, principalmente, das gentes. Essa opção é deveras importante, não fosse contribuir para o retrato do tipo de trabalhadores eventuais e contratados das diferentes empresas a operarem no porto. Em alguns momentos, o fotógrafo parece atravessar a alma das pessoas. Noutros, aparenta exprimir os sentimentos desses trabalhadores, conforme sugerem estas imagens.
Na fotografia captada às 05h59, o sol vence as nuvens cinzentas para iluminar a capital moçambicana. Embora fraca, a luz natural é suficiente para, em harmonia com a artificial de Joca Faria, demonstrar que a cidade de Maputo é construída da baía para o interior, tendo o porto como mote e ponto de partida para a cidade. Aliás, a capital de Moçambique, desde o período colonial, teve no seu porto um factor de miscigenação cultural e de grande atração turística. Os marinheiros provenientes de outras regiões do mundo, em trânsito ou não, participaram e participam na pluralidade de um universo que se pretende cosmopolita.
Com ou sem exageros, Maputo está para o porto (quase) na mesma proporção que o porto está para a cidade. A relação é de interdependência, recíproca, e estará esse instigante equilíbrio, quiçá, na origem do sorriso de Edith (mulher fotografada às 06:28) captado por Faria.
Se o cais é sinónimo de oportunidades e da tal pluralidade, em Transições, igualmente, traduz o espaço de uma narrativa além do preconceito enraizado no género sexual.
As imagens acima comprovam a desmasculinização de um trabalho braçal durante décadas inacessível às mulheres. Faria documenta essa abertura de mentalidade, subvertendo qualquer pensamento redutor sobre apenas os homens reunirem a destreza e o talento para usar capacetes, botas, carrinhos de mão, pás ou do escopro e martelo. As Transições são para todos sem, todavia, resumirem-se a planos individualizados. Em cada semblante fotografado, adivinha-se uma história colectiva, sobre quem, durante horas a fio, abdica do mundo exterior ao porto para no seu interior construir um outro, feito de futuros e, possivelmente, bem mais auspicioso.
Em 87 páginas, e com alguns textos explicativos assinados por Soraia Abdula, fundamentais para a compreensão de outra parte da história que cada fotografia encerra, Transições documenta a realidade da estiva e/ou do plano concreto, tendo em consideração um horário cronológico. O tempo é transversal e, por isso mesmo, está quase em todos os registos fotográficos. Outrossim, Faria deixa perceber outros procedimentos apurados na selecção, distribuição e legendagem das fotografias. Ou seja, para o livro, a sua câmara moveu-se por um espaço segundo uma disposição temporal que durou aproximadamente 14 horas, entre as 04h58 e as 18h59 do mesmo dia. Sintonizado com Paul Ricoeur, quando afirma que “a narrativa é significativa na medida em que desenha as características da experiência temporal”. A digressão, claro está, é feita de forma humanizada, entre a segurança que um trabalho no porto exige e a criatividade condicionada, por vezes, a espaços exíguos.
Além da componente documental, por outro lado, Transições é um recurso estético, um objecto artístico. Cada fotografia é tão independente quanto irmanada com as outras. Bem dito, antes de serem documentos visuais, as fotografias de Joca Faria são obras de arte por se enquadrarem no complexo conceito de beleza. A legenda que acompanha a imagem é importante, mas isso não retira autonomia à fotografia. Pelo contrário, os ciclos verosímeis retratados no livro, ao mesmo tempo que tecem pequenos fragmentos do Porto de Maputo, elogiam as proporções estéticas através de reflexos que, do outro modo, não teriam expressão no plano real. Faria brinca de ser deus da insignificância ao torná-la digna de apreço. E nessa brincriação séria, como diz Mia Couto, o fotógrafo combina a alma e o objecto, o corpo e o movimento pausado das coisas.
Transições será ainda uma percepção original da ponte marítima que liga o resto mundo a um país, por excelência importador. Não admira, ato contínuo, o destaque dado aos grandes navios de carga, em detrimento dos cruzeiros, por exemplo, afinal nos seus porões predomina a mercadoria adquirida para a subsistência dos cidadãos ou para o desenvolvimento económico de um país inteiro. O porto é uma imensa economia contida, no entanto, na objetiva de Joca Faria, sobra espaço para a simplicidade do que a beleza sedimenta. Estamos perante um fotógrafo sensível e atento, que sabe procurar e, mais importante, encontrar a já referida ideia de perfeição. As fotografias que se seguem são esclarecedoras, pois demonstram a precisão no tratamento da composição, da luz e na exploração das matérias proporcionadas pelo espaço.
Tem-se dito que a beleza está nos olhos de quem vê. Usando essa premissa, Joca Faria cria e amplia beleza no que vê. De outro modo, o porto de Maputo seria tão-somente um lugar de desembarques, um lugar que está sempre por limpar e ancorado às máquinas. Mas não. É um lugar artístico em potência como também outro fotógrafo moçambicano tratara, Mauro Pinto, na série Portos de Convergência - Maputo | Luanda.
Finalmente, Transições é ainda um projecto que incita a pensar a condição do estivador e de um porto que se desenvolve ao ritmo da cidade e de uma nação inteira.
Artigo produzido como trabalho final do curso Comunicação Cultural para os PALOP, promovido pela Fundação Calouste Gulbenkian, coordenado por Marta Lança (BUALA).