E se fossem os países africanos a ajudar o Ocidente? - artigo no Sol sobre No Fly Zone
No Fly Zone, a espantosa exposição da nova geração angolana no Museu Berardo, em Lisboa, mostra-os a observar como nós os vemos. Sem paternalismos, de forma acutilante e com humor. Amigos, mas não como dantes.
Estamos muito habituados ao discurso ocidental de ajuda aos países africanos. Mas e se fosse ao contrário? Kiluanji Kia Henda criou a O.R.G.A.S.M (Organization of African States for Mellowness), uma hipotética primeira ONG africana dedicada a projectos filantrópicos no Ocidente. É um vídeo, «que na verdade é um trailer para uma longa-metragem», diz Kiluanji, que apresenta o projecto desta ONG.
O primeiro objecto da caridade africana seria Paris, cidade mergulhada na crise. O vídeo feito em 2011 mostra violência nas ruas da capital francesa e um sem-abrigo refugiado junto à montra de uma agência de viagens, com uma voz em off a insistir na necessidade de salvar Paris. «Este filme foi inspirado no livro de Mambysa Moyo Dead Aid que desmonta a actuação das agências de caridade em África, mais prejudiciais que benéficas ao continente africano. E também nos filmes de pornomiséria, um género colombiano dos anos 70, em que a miséria extrema era explorada». Observados nós europeus como objecto de misericórdia é novo e… chocante! «Odeio paternalismos», diz Kiluanji «porque isso cria uma distância. É preciso criarmos novas formas de comunicação».
O vídeo de Kiluanji Kia Henda, inscrito na parede onde está pintado o símbolo desta nova união africana (com as estrelas amarelas sobre azul a cercarem o desenho do continente), abre a exposição No Fly Zone. Unlimited Mileage, que no Museu Berardo apresenta a novíssima geração de artistas angolanos, até 31 de Março. O mote da exposição com curadoria de Fernando Alvim, comissário da Trienal de Luanda, e de Suzana Sousa é o de olhar para a História. «É um espaço de reflexão e de experimentação antes da próxima Trienal cujo tema será a História», diz Fernando Alvim.
E é também uma interrogação cheia de sentido de humor e frescura de uma «geração descomplexada», como diz o curador, que viveu a sua vida adulta em paz «e muito sob o domínio soviético», como nota Suzana Sousa. Uma geração que olha para o modo como todos nós ocidentais olhamos para África e, apesar de tudo, sem rancor. Um estudo antropológico onde é o Ocidente o local onde cientistas sociais angolanos assentam arraiais.
O espantoso vídeo de Nástio Mosquito, My African Mind, de 2009, com colagens em caption motion de estereótipos sobre África vindos da cultura popular, desde o filme Rainha Africana de John Houston, às imagens de Tintin em África, é um exemplo disso. Um discurso poderoso sobre o mito do «healthy black monster».
Nástio esteve na Bienal de Veneza de 2007 e acredita que a liberdade de criação deste grupo de artistas – onde se inclui o já muito internacionalizado, e representado em Lisboa pela Galeria Cristina Guerra, Yonamine – tem a ver com «a ausência de um passado artístico. O nosso discurso não está ligado a uma estética. Está ligado a uma vida».
Binelde Hyrcan, o mais novo do grupo, criou um cortejo de galinhas embalsamadas, que representa, grosso modo, a coroação de Napoleão e Josefina, «e onde o séquito está vestido com fardas inspiradas nos uniformes russos». Nascido em 1983, a sua memória é do pós-colonialismo português e tem o projecto de levar uma galinha ao espaço, em parceria com a agência espacial francesa. Edson Chagas fotografou personagens com sacos de plástico enfiados na cabeça, cuja leitura remete, como se quiser, para a tortura ou para o consumismo. «Um dos sacos, com a Estátua da Liberdade, de lojas chinesas, é dos mais comuns em Luanda. Toda a gente tem um destes», observa Suzana Sousa. É a vida de um tempo que não conhecemos e de uma Angola de que não estávamos mesmo nada à espera.
por Telma Miguel telma.miguel@sol.pt jornal Sol