Uma peça inédita de grandes dimensões, considerada pela família de Almada Negreiros “a pedra no sapato” do espólio do artista, foi restaurada e vai poder ser vista pelo público, a partir desta quinta-feira, no Museu Nacional de Arte Antiga.
Estudo em fio dos painéis de São Vicente (título atribuído)© Direitos reservados
Depois de 80 anos guardada no antigo atelier de Almada Negreiros (1893-1970) esta obra, datada de 1950, esteve nas mãos dos especialistas do Laboratório José de Figueiredo, em Lisboa, para ser restaurada, e tem como título atribuído Estudo em fio dos painéis de S. Vicente.
Guardada durante décadas a sofrer a degradação do tempo, tem quase dois metros de altura e largura, e apresenta desenhos e reproduções fotográficas dos icónicos painéis do século XV, fios de algodão e arame, características únicas agora enaltecidas por um restauro e estudo aprofundado.
“Do espólio que nós temos na família, esta é capaz de ser a ‘pedra no sapato’ mais complexa, porque tem uma dimensão bastante grande, necessitava de um restauro multidisciplinar, e de um estudo paralelo. Reunia muitas condições que nunca tínhamos conseguido até hoje”, disse à agência Lusa Rita Almada Negreiros, neta do artista, em setembro, durante uma visita ao Instituto José de Figueiredo.
Os quinze painéis na Capela do Fundador (título atribuído)© Direitos reservados
A partir desta quinta-feira, esta peça, inspirada nos Painéis de São Vicente, obra maior da pintura europeia do século XV, da autoria do pintor português Nuno Gonçalves, é exibida pela primeira vez no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), em Lisboa, no âmbito de uma exposição que resulta de uma investigação desenvolvida por Simão Palmeirim e Pedro Freitas.
“Esta peça esteve desde os anos 1950 no mesmo sítio, pousada onde Almada a deixou, e foi-se degradando, sofrendo com o passar do tempo, o envelhecimento dos materiais, num atelier prefabricado em madeira, em Bicesse, que ainda existe, e, onde havia oscilações de temperatura, e de humidade”, relatou a neta do artista, sobre as condições do espólio.”
Para grande contentamento das netas de Almada - Rita e Catarina - que guardam o espólio do artista multifacetado, falecido em 1970, esta peça foi finalmente restaurada, e pode ser exibida ao público, num museu. Esperam ainda que possa ficar em depósito no MNAA, para sua própria proteção, e ser estudada pelos interessados.
Rita Almada Negreiros mostrou uma grande satisfação pela concretização do restauro, uma oportunidade conseguida, “graças ao Laboratório José de Figueiredo, à equipa multidisciplinar, e à exposição que se vai realizar no Museu Nacional de Arte Antiga”.
Também sublinhou a importância da realização de exaustivos estudos prévios, pelos investigadores Simão Palmeirim e Pedro Freitas, especialistas nas áreas de pintura, geometria e matemática: “Há vários anos trabalham sobre o espólio [de Almada Negreiros], e já conseguiram deslindar estes traçados geométricos, para fazer o restauro ponto a ponto para esta peça”. “Foram muitos anos de espera, e já quase tinha perdido a esperança”, disse à Lusa, emocionada.
José de Almada Negreiros - figura ímpar do modernismo português do século XX - aplicou-se, ao longo da vida, a uma grande diversidade de meios de expressão artística, desde o desenho e a pintura, mas também o ensaio, romance, poesia, dramaturgia, e até o bailado.
Esta peça, que é agora exibida pela primeira vez, tem a particularidade de ter sido inspirada pelos Painéis de São Vicente, o políptico que fascinou Almada desde a primeira vez que a viu, de tal forma que fez um pacto com Amadeo de Souza-Cardoso e Santa-Rita para a estudarem até ao fim da vida.
Os outros dois artistas viriam a falecer em 1918, mas Almada continuou o seu propósito, e dedicou várias décadas à promessa, criando uma teoria para explicar os enigmas do conjunto de pintura antiga. Imaginou a disposição de mais de uma dezena de pinturas num só grande retábulo, que afirmava ter sido projetado para o Mosteiro da Batalha, resultando desses seus estudos uma vasta produção artística.
Estudo geométrico a propósito da obra Ecce Homo (título atribuído)© Direitos reservados
Rita Almada recordou que, infelizmente, devido ao seu estado, as peças não puderam ser exibidas na exposição antológica “José de Almada Negreiros - Uma Maneira de ser Moderno”, que a Fundação Calouste Gulbenkian lhe dedicou, em 2017, com mais de 150 obras.
“Agora, vai ter um destaque especial na Sala do Teto Pintado do Museu de Arte Antiga”, disse, sobre a exposição que abre esta quinta-feira ao público, com o título “Almada Negreiros e os Painéis - um retábulo imaginado para o Mosteiro da Batalha”, com peças em que o artista apresenta a sua interpretação geométrica de várias pinturas do museu, entre as quais os próprios painéis de São Vicente.
Pela primeira vez, serão apresentadas duas obras de grande dimensão - uma de 1950 e outra de 1960 - completas, que aliam fotografia, desenho e materiais têxteis, e marcam momentos importantes da pesquisa de Almada, bem como alguns estudos preparatórios do artista.
Esta exposição é complementada por uma outra, dedicada ao mesmo tema, no próprio Mosteiro da Batalha, a inaugurar, sob o título “Almada Negreiros e o Mosteiro da Batalha - quinze pinturas primitivas num retábulo imaginado”, e tem também como comissário Simão Palmeirim.
Artigo publicado originalmente no jornal Diário de Notícias a 15/10/2020