Chamada de Trabalhos: Neoliberalismo urbano no século XXI: Da exclusão e lutas pelo direito à cidade

Para Henri Lefebvre, autor do conceito de direito à cidade, as margens urbanas são um lugar de observação privilegiado, pois é nesse ponto que a narrativa da cidade se revela. O seu pensamento desenvolve-se a partir do limiar que divide e estilhaça o espaço urbano, separando os grupos mais abastados dos grupos mais vulneráveis.

Manter-se-á esta perspectiva de Lefebvre, chave de leitura dos processos de acumulação e expropriação em sociedades moldadas pelo capitalismo mais maduro, pertinente à luz dos problemas socio-espaciais levantados pelo neoliberalismo urbano ? É esta a questão que queremos abordar no número temático que propomos, a partir de uma atenção específica às margens urbanas das metrópoles contemporâneas tanto no contexto euro-norte-americano tratado por Lefebvre como no contexto pós-colonial do sul global.

Em ambos os contextos, torna-se pertinente a observação de Lefebvre em relação aos traços de um “novo colonialismo interno” (1972, p. 43) ao atender ao modo como o desenvolvimento urbano do pós-guerra separa as áreas hiperdesenvolvidas das áreas abandonadas à miséria e ao subdesenvolvimento. Esta visão aproxima-se assim de Fanon e da sua atenção ao modo como a ideia de raça e os processos de racialização operam em conjunto com a classe e o espaço, produzindo “cidades compartimentadas” (1968, pp. 23-75). Reencontramos esta perspectiva na teorização de uma cartografia moderna dual (Santos, 2007), a que corresponde um sistema de distinções que, tendo a sua génese na expansão e colonialismos europeus, atravessa hoje o cerne das antigas metrópoles. Distinguindo e separando saberes e práticas hegemónicos, que se afirmam como universais, das áreas de não ser (Fanon, 1968), tal compartimentação nega a co-presença de formas diversas de conhecimento, representação e acção sobre o mundo.

Por outro lado, a questão urbana é também uma forma espacial de luta contra a desigualdade, potenciando novas resistências e o ensaio de alternativas. Ela é parte de uma dialética espaço-temporal mais ampla, com o duplo propósito de libertação global e emancipação quotidiana (Fanon, 1968, pp. 105-106). Um conjunto de pesquisadores, ligados a correntes científicas que promovem o engajamento académico nos processos de transformação urbana, vêm abraçando estratégias alternativas que olham a urbanização como um modo, em vez de um modelo : como algo orgânico e coletivamente dinâmico, oposto à visão modernista/colonial/capitalista pré-estabelecida e pré-definida, que toma simultaneamente as cidades como territórios em resistência, em potência e de emancipação, enquadradas na linha de descolonização do território defendida por autores como Zibechi (2015) ou Ela (2013), fomentando uma maior distribuição de recursos públicos e estimulando a especificidade do modo de vida do lugar.

Pretendemos neste volume questionar e documentar a transformação urbana vivida hoje, a partir de pesquisa focada - conceptual e empiricamente - nas margens urbanas das metrópoles contemporâneas e atendendo ao modo como se cruzam, em concreto, três planos que - tal como os elementos de uma experiência química - reagem juntos no espaço urbano : a questão da classe e a questão étnico-racial, já focadas, a que se junta, crucialmente, a questão do género. De que modo complicam e problematizam esses três planos as contradições do novo modelo urbano neoliberal contemporâneo ? Convidamos à apresentação de artigos de abordagem interdisciplinar, cruzando todas as disciplinas com enfoque sobre os estudos urbanos críticos.

Propomos alguns pontos a desenvolver :

Como evoluiu, para o presente contexto, a compartimentação da cidade apontada especificamente por Fanon ?

Num tempo em que os subúrbios das maiores metrópoles do norte e do sul globais são cada vez mais atravessados por populismos que ameaçam a democracia, que resistências emancipatórias podemos identificar ?

O protagonismo das mulheres nas lutas urbanas é cada vez mais importante e muita literatura feminista destaca um papel político do conceito de “cuidado” em novas formas de “produção de espaço”. Que agencialidade é essa e como se como se relaciona, hoje, com a questão urbana ?

Serão aceites propostas originais escritas em português, inglês, francês e espanhol.Todas as propostas originais de artigos, de revisão e empíricas, devem ser enviadas em sua versão completa por e-mail, em formato .docx, para a Forum Sociológico (forum@fcsh.unl.pt) com o título do número especial no campo assunto do e-mail e até 30 de setembro de 2023Antes de submeterem uma proposta à revista no âmbito deste número especial, todos os autores deverão i) ter conhecimento das políticas, procedimentos editoriais e normas para a elaboração e submissão de textos, difundidos em especial nas páginas Normas para Apresentação de Originais e Declaração de Ética e Boas Práticas ; ii) ter participado substancialmente do trabalho ; iii) ter identificado todas as fontes de financiamento da investigação desenvolvida ; iv) obter todas as autorizações e licenças necessárias para a reprodução, publicação e divulgação em acesso aberto (direitos de utilização das imagens ou de outro material de terceiros, etc.), assumindo a responsabilidade da indicação dos respetivos créditos nos trabalhos e dos eventuais encargos associados à sua obtenção e isentando a revista e o CICS.NOVA – Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa de qualquer responsabilidade nesta matéria ; v) ter a responsabilidade final do conteúdo e das afirmações proferidas no texto. Mais informações, aqui.

29.03.2023 | par mariadias | chamada para artigos, cidade, direitos, henri lefebvre, neoliberalismo