Morreu alguém para quem o riso tudo vingava. Posso imaginá-lo a contar uma última piada, à beira da morte, procurando desarmar o fim de tudo. Tive o privilégio de ter falado com ele algumas vezes. Em 2001, entrevistei-o em Porto Alegre, para a revista Ler. É costume dizer isso quando uma pessoa que admiramos morre, mas é mesmo verdade: o mundo ficou mais pobre.
Quem perde toda a vida pode sempre rir no fim. São assim os romances de Moacyr Scliar. Em A Majestade de Xingu, o médico Noel Nuts está a morrer de um cancro. O Brasil estava, também, moribundo pela acção das suas “vacas fardadas”, vulgarmente apelidadas de generais. O leito de morte está cercado de fardas e divisas. Num último estertor, Noel Nuts abre os olhos e um general solícito pergunta: “Como é que se sente?”. O médico olha e diz as suas últimas palavras: “Estou como o Brasil, na merda e cercado de generais”.
O humor de Moacyr Scliar é uma vingança sobre a história do século XX. A vida do escritor é um espelho dos tempos. Nascido em 1937, filho de imigrantes judeus fugidos da Rússia czarista, Scliar milita no partido comunista na sua juventude.
Sai do “partidão” desiludido, mas não zangado. Para isso contribuiram a sua entrega à medicina e a descoberta da literatura. O próprio sublinha que a psicanálise também lhe fez bem.
O divã do médico tinha de estar no seu destino: judeu, ex-comunista, e que foi como o seu pai foi, um dos 18 “torcedores” do Esporte Clube Cruzeiro. Famoso clube com estádio despejado por um cemitério e que chegou a pagar os ordenados dos jogadores com jazigos perpétuos.
Moacyr Scliar é um dos grandes escritores brasileiros.
Nuno Ramos de Almeida, no Cinco Dias