No mês passado, escreveu-me uma amiga brasileira, a dizer que tinha estado na FLIP (Feira Literária de Paraty) e que tinha ouvido um escritor angolano, cuja apresentação tinha sido a grande sensação do evento. Grande surpresa para mim foi quando ela me disse que o angolano era Valter Hugo Mãe. Lembro-me que comecei a ouvir falar em Valter Hugo Mãe em finais dos anos 90, quando fiz um estágio no Jornal de Letras, em Lisboa, mas que em nenhum momento me tinha percebido que era meu conterrâneo. Esta descoberta fez-me pensar no que é ser angolano, ou que é identidade angolana. Reflectir sobre esta questão, parece-me, coloca-nos em posição privilegiada para questionar o legado cultural do colonialismo.
Minha preocupação não é dizer quem é ou quem não é angolano. Em Angola, como em qualquer outra sociedade moderna, o ser angolano é definido pela lei da nacionalidade. Não fui ver a lei para escrever esse texto, mas a ideia que tenho é que a nossa lei é muito mais generosa que a lei portuguesa que permite (ou pelo menos permitia) que pessoas que tenham nascido em Angola no contexto colonial possam requerer a nacionalidade. Portugal começou por nacionalizar todos os naturais das colónias durante a guerra colonial (de que outro modo se podia justificar que Angola era província ultramarina?). Desnacionalizá-los foi um dos primeiros actos políticos do governo saído da revolução de Abril. Ninguém escreveu com mais eloquência sobre a desnacionalização dos africanos que António de Almeida Santos (Quase Memórias, Vol. 1, pp. 275-284). Os fundamentos para a definição de quem é português roçam o mais puro racismo (“Era um negro bom. Bons, são em regra os negros”, Vol. 1, p. 13). Almeida Santos não se coíbe mesmo de citar Salazar: “o próprio Salazar admitiu, às tantas, que os africanos não faziam parte da Nação portuguesa. Como, assim, podiam ter direito à nacionalidade de uma Nação de que não faziam parte?” (p. 278).
Assim ficou desfeito o mito. Portugal pluricontinental nunca existiu. Foi puro oportunismo para a manutenção do sistema colonial. Porque os portugueses não distinguem “nação” portuguesa de nacionalidade portuguesa. O que é interessante, no entanto, notar, é que em muitos meios portugueses, os mesmos que tornam as teses de Almeida Santos possíveis, Angola não é “nação”, tampouco nacionalidade, mas simplesmente “território”, ou origem. E a referência a esta origem opera de dois modos: por um lado expulsa da “nação” portuguesa aqueles que não são culturalmente portugueses (os negros, por exemplo), mas por outro permite que aqueles que são culturalmente portugueses possam fazer referência à sua origem em território outro que Portugal (Almeida Santos é angolano).