É um ritual que vacila entre o orgulho e o remorso. Entre o conflito e a confidência fundem-se os papéis de rainha e mulher. Deixa-se de se distinguir quem é quem na glória e na vaidade, pois o atrevimento também é próprio da conquista.
Njinga Mbandi invoca os seus mortos numa conversa consigo mesma, fala do que foi e do que poderá nunca ter sido, não esgota o seu transe em estórias reféns do seu tempo. Resistindo sempre, dissimuladamente. Atormentando e perseguindo à vez ora homens ora vontades, as suas e as dos a si entregues, guerreiros, escravos e traidores. Filha, irmã e amante, Njinga terá tempo de contar a sua versão, escusando-se ao logro de um passado forjado, divinizado e imaculado no seu desígnio.
Teatro Griot I texto dramático inédito: Ricardo P. Silva
encenação: Paula Diogo I actores: Daniel Martinho, Gio Lourenço, Matamba Joaquim, Zia Soares I movimento: Vânia Gala I materiais cénicos: Francisco Vidal I espaço cénico e figurinos: Mariana Monteiro I luz: Pedro Correia I música original: DJ Marfox e DJ N.K. design de som: Chullage assistência de encenação: Carlos Alves tradução para kimbundo: Galiano Neto
fotografia: Sofia Berberan vídeo teaser: David Cardoso
produção executiva: Urshi Cardoso
co-produção: Teatro GRIOT, Teatro Municipal do Porto
Duração aprox. 1h30 M/14
Em cena no Teatro do Bairro (Rua Luz Soriano, 63 (Bairro Alto),1200-246 Lisboa)13 a 23 de Setembroqua a sáb, 21:30; dom, 17h
RESERVAS: 21 347 33 58 | 91 321 12 63 (15h - 19h)
Bilhetes:10€, normal7,50€, c/desconto5€, grupos +10 pax
Ricardo P. Silva, autor
“ Que Ainda Alguém Nos Invente é um texto inspirado na vida da Rainha Njinga Mbandi, soberana do Reino do Ndongo e da Matamba e o resultado de um intenso processo de filtragem de informação, baseada em narrativas deixadas ao longo de mais de três séculos por intervenientes reféns da sua própria agenda política, fins religiosos ou meros compromissos comerciais. A peça determina por isso que prevaleçam apenas os indícios, os prenúncios e os sintomas do que poderá ter sido. Sabe-se hoje e saber-se-ia então que a distorção premeditada de narrativas, de maneira a influenciar a perceção de modos de vida diversos, faz com que não seja possível distinguir com segurança facto, mito ou manipulação. A discussão académica sustentada em grande parte pela documentação produzida pelo padre capuchinho Cavazzi de Montecúccolo e pelo historiador e militar português António de Oliveira de Cadornega, ambos coevos de Njinga Mbandi, ou pelos estudos mais recentes de historiadores como John Thornton ou Joseph C. Miller, assim como tantos outros artigos de investigação de inúmeros autores contemporâneos, deixa bem claro que não existe consenso em relação a muitas das famosas ocorrências relatadas e que ao longo destes 350 anos se têm vindo a sedimentar no imaginário coletivo. Mas para além da fantasia subsiste, porém, sempre algo que resiste, para além da apologia e da censura, independente. Permanece, no caso, o carácter extraordinariamente forte, hábil e intempestivo de Njinga Mbandi. E é por via desta certeza que a peça se desenvolve, através de um constante jogo de insinuações e especulação, conflitos e confidências entre quatro personagens, todos vivos e todos mortos, Njinga e o seu pai Ngola Kiluanji, Ngola Mbandi, irmão, ambos de origem Mbundu e ainda Kaza, o seu marido-aliado, de origem Imbangala.
Guerreira e adivinha, déspota e heroína, protectora dos seus, comerciante de escravos, letrada e vaidosa, cruel, orgulhosa e imprevisível, Njinga aterrorizava – perseguindo – e enquanto perseguida, resistindo, jamais se rendeu.”
Paula Diogo, encenadora
O convite dos Griot para esta “conversa” com a Rainha Njinga do Ricardo, já vem de longe, acho que passaram pelo menos três anos desde que falámos pela primeira vez do projecto.
Rebecca Solnit no livro “The Faraway Nearby” diz que contar uma história pressupõe empatia, colocar-me no lugar do outro, fazer um movimento deste lugar para aquele. Nesta reflexão sobre a figura de Njinga Mbandi, o primeiro movimento foi o de tentar conhecer uma personagem sobre a qual sabia pouco e essa primeira aproximação abriu caminho a outras aproximações a territórios igualmente desconhecidos: à história de um país que começa a escrever a sua História em nome próprio, à história de um povo que quer participar da escrita da sua própria História, à história de uma língua materna que não cabe na boca porque nunca nos foi ensinada, à história de uma geração que nasceu entre dois países e que não tem a nacionalidade necessariamente escrita no passaporte.
Ao olhar agora para o espectáculo que criámos juntos continuo a descobrir linhas de pensamento sobrepostas que seguramente continuarão a desmultiplicar-se no momento da chegada do público.
O espaço cénico do espectáculo foi construído seguindo uma lógica de pilhagem, que reproduz o espaço do atelier do artista visual Francisco Vidal invadido pelas palavras de Ricardo P. Silva e pelos corpos dos actores em luta com o movimento da coreógrafa Vânia Gala. Esta ideia de pilhagem permitiu-nos pensar sobre a figura de Njinga fora da lógica do herói das histórias que nos são contadas em criança, mas como personagem de facto, movida por vontades, convicções, culpas e desejos.
“Que ainda alguém nos invente” é também uma guerra. Os corpos são obrigados a manter-se em movimento, avançando e recuando, varrendo o espaço ou sendo varridos, reinventando territórios e fronteiras e convocando periferias invisíveis. A música de DJ Marfox marca o compasso dessa latência e apela constantemente à resistência e ao delírio.
“Desobediência. Por todo o tempo que haja que dure.”