A economia moral da feitiçaria: um ensaio em história comparativa - II

2.  O debate da economia moral: microeconomia e cultura
A figura retórica central das várias tentativas de definição de economia moral tem sido a oposição entre, por um lado, o indivíduo maximizador e o mercado da economia política clássica em constante expansão e, por outro, uma comunidade regida por normas de sobrevivência coletiva e acreditando num universo de soma zero: i.e. um mundo onde todo o lucro é ganho à custa do prejuízo de alguém. A soma comunal-zero desta equação é, de modo geral, consistente com crenças africanas que identificam capitalismo e feitiçaria como a perigosa apropriação de limitados recursos reprodutivos por indivíduos egoístas. O grande perigo de tal conjunto de dicotomias é que estas podem ficar irredutivelmente aprisionadas na sua origem, o discurso do próprio capitalismo. Economias exóticas são assim construídas em torno ora de uma oposição mercado / não-mercado ora de uma variante da racionalidade de mercado baseada na subsistência. Ao analisar a história de sociedades no confronto com o capitalismo, mesmo que do exterior ou do seu interior, não se pode rejeitar por completo todas as referências a termos capitalistas. Mas uma interpretação cultural que proceda inteiramente nesta linha representa uma concessão à hegemonia que a economia moral é suposto contestar.

Na realidade, o termo “economia moral” entrou no uso escolático mais corrente com o estudo do início da Europa capitalista, especificamente com os escritos de E.P. Thompson sobre a Grã-Bretanha do século XVIII (Thompson 1968: 225-26, 1971); a sua aplicação no Terceiro Mundo teve que aguardar o livro um pouco tardio de James Scott (1976). Scott, de acordo com as notas bibliográficas, foi realmente inspirado por Thompson; contudo, Thompson teve antecessores que estavam mais preocupados do que ele com economias não-ocidentais e que continuam a ser mais diretamente relevantes para a génese da teoria da economia moral e o seu papel no estudo da África. 
Foi a economia substantivista de Karl Polanyi e seus associados (1957) que iniciou uma discussão sofisticada entre antropólogos e historiadores sobre a relevância de modelos de mercado para o estudo das economias fora do mundo Ocidental moderno (LeClair eSchneider, 1968; Hopkins 1973; Dalton 1976). Os substantivistas, que questionavam esses modelos, acabaram por perder em última análise grande parte dos argumentos. A um nível abstrato, os seus termos “não-mercado” (derivados de uma leitura um tanto ingénua da antropologia estrutural-funcionalista) foram facilmente convertidos em “utilidades coletivas”; mais concretamente, o que substantivistas haviam definido como um comportamento de mercado exclusivamente ocidental poderia ser documentado em grande medida na África “primitiva” e “arcaica”. A crítica explicitamente aristotélica de Polanyi à busca de lucro é um exemplo perfeito do que Bloch e Parry (1989:. 2f) identificam como um etnocentrismo fatal ao interpretar “a moralidade da troca” nas sociedades fora da Europa. No entanto, o conceito de como os mercados podem ser “imbuídos” noutros sistemas de hierarquia, distribuição e valor permanece - entendido em termos menos rígidos daqueles empregues por Polanyi - uma ferramenta útil para analisar as relações entre aquisitividade individual e feitiçaria (ver abaixo). 
A noção mais robusta de um universo de soma-zero como base do comportamento económico “tradicional”  deriva do trabalho etnográfico de George Foster (1965). Foster defendeu que por todo o lado camponeses experienciam um mundo “do bem limitado”, embora considerando tais atitudes como obstáculos ao progresso e à verdadeira coesão comunal, na esteira de um mais cáustico Edward Banfield (1958). Foster e Banfield raramente são citados na literatura da economia moral na medida em que as suas perspectivas desenvolvimentistas não encaixam bem na postura ideológica da maioria destes textos; no entanto, a sua visão de utilitarismo negativo descreve claramente as premissas que lhe estão subjacentes.    Assim, na sua formulação inicial de economia moral, Scott atribui aos camponeses do Terceiro Mundo (e mesmo Europeus) uma lógica formal económica mais próxima da abordagem do não-nomeado Foster do que dos reconhecidos Thompson e Polanyi. Tendo decidido que esses cultivadores mantêm uma “ética de subsistência”, Scott assume o que considera ser uma análise compreensiva das suas ações ao substituir o motivo de maximização do lucro pelo da aversão ao risco (Scott, 1976, 4, ss.). Tornou-se assim possível para Popkin (1979) produzir um trabalho ostensivamente crítico de Scott por este negligenciar a evidência de empreendedorismo com vista à obtenção de lucro em comunidades campesinas, ao mesmo tempo em que na verdade fornecia um quadro em muito semelhante aos dos cálculos fundamentais das respostas rurais ao capitalismo colonial no Sudeste Asiático (Hunt, 1988).  

Scott (1985) já reconheceu que as suas formulações iniciais eram excessivamente abstractas e muito focadas em explicar a ocorrência relativamente rara de revolta campesinas; o seu novo trabalho contribui assim para uma versão do argumento da economia moral revista em termos de método e visão (cf. Roeder1984, Berry 1985, Magagna no prelo). A base destes estudos mais recentes é uma combinação de trabalho de campo intensivo em aldeias (até mesmo por Scott, um cientista político) e minuciosa pesquisa histórica.  

A necessidade “essencial” do pequeno agregado-rural pré-moderno já não é vista como sendo de subsistência; é agora segurança, almejada por contestar a ordem dominante através de complexos processos de patronagem-clientela, rebelião em pequena escala (muitas vezes dissimulada) ou resistência, e a reivindicação de direitos justapostos em propriedade vital. A formulação primeira de Thompson (1971) de economia moral encaixa bem neste modelo; as multidões britânicas que ele descreve apelam tanto aos princípios abstractos de necessidades comunitárias como às normas e práticas estabelecidas de paternalismo contra preços de mercado não-regulamentados. 

Nas versões mais ricas em nuance, a perspectiva da economia moral é menos susceptível à crítica empírica dos defensores da escolha racional e pode fornecer detalhados relatos dos dispositivos pelos quais as comunidades reproduzem complexas relações de dependência (Berry 1985). Mas a capacidade de trazer análise cultural para estes trabalhos continua a ser limitada; As Armas dos Fracos de Scott retrata camponeses cuja pobreza é alargada na sua incapacidade de oferecer qualquer descrição convincente do mundo mais vasto em que estão englobados, enquanto que Berry vê os compromissos de empresários Iorubá em investimentos de aldeia principalmente em termos das sua próprias normas de produtividade. Talvez o tratamento mais conseguido de cultura seja encontrado na discussão de Magagna da Inglaterra proto-industrial, onde os valores expressos no charivari de aldeia e “discussões de taberna” são incorporados com êxito nas negociações rurais de tais incursões capitalistas como invólucro. Em falta neste argumento, contudo, está qualquer atenção séria à feitiçaria-bruxaria, a própria característica da paisagem cultural do início da Europa capitalista mais propícia à comparação com África.  

O conceito de economia moral tem, portanto, sérias lacunas; até mesmo na Europa, onde se tem revelado mais profícuo, deixa em aberto a dimensão cultural do capitalismo e dos seus oponentes. No entanto, a escola de economia moral tem muito a ensinar àqueles mais seriamente interessados em cultura. Em sentido mais óbvio, exige que se dê atenção às condições de acesso a recursos materiais que determinam, com algum grau de autonomia, a percepção do capitalismo possível em qualquer comunidade. Para além disso, nas suas versões revistas, fornece informações detalhadas e socialmente sensíveis das estratégias políticas e económicas que iluminam qualquer discussão de ideologia.  

 

(…)

leia a primeira parte do ensaio 

Translation:  Filipe Calvão

por Ralph A. Austen
A ler | 21 Junho 2011 | capitalismo, cultura, economia moral, microeconomia