A fantasia imperial numa história em imagens
Um Império de Papel, ensaio de cultura visual, é uma (quase) história ilustrada do colonialismo português em África. Mostra como estas imagens ajudaram a difundir uma “ideia de império”.
As representações do Império português em África sobreviveram em imagens dispersas em bibliotecas, arquivos, espólios de coleccionadores ou de cidadãos comuns que tiveram uma relação mais ou menos próxima com as colónias. Apesar da sua abundância, até agora, a leitura desta cultura material do império carecia de “recenseamento sistemático”. Muitas estão agora reunidas em Um Império de Papel – Imagens do Colonialismo Português na Imprensa Periódica Ilustrada (1875-1940), da investigadora Leonor Pires Martins (Edições 70).
É uma (quase) história ilustrada do colonialismo português em África, baseada em imagens da imprensa periódica portuguesa. Quase: porque ainda há muitos arquivos por abrir. Um investigador faz sempre escolhas e segue critérios. Leonor Pires Martins disse no lançamento do livro que “aofim desses três anos [de investigação], me deparei com perto de 900 imagens”, uma recolha, explica, “o mais inclusiva” possível.
O livro cobre o período de 1875 a 1940. Há todo um levantamento de 1940 a 1974 que ficará para um projecto futuro. Aqui sobrevive um ensaio de cultura visual que mostra como “as imagens ajudaram a divulgar as paisagens e as populações ‘ultramarinas’ do império, estranhas à maioria dos portugueses”, explicando “de que forma essa iconografia contribuiu para a difusão de uma ideia de império”.
O objectivo foi “atribuir sentidos a essa iconografia, lê-la e interpretá-la à luz das circunstâncias políticas e sociais, do imaginário ideológico, das motivações pessoais, dos factores de ordem material e tecnológica que enquadraram e possibilitaram a sua produção e disseminação”. O império, cada vez mais distante, “reveste-se, assim, de uma materialidade que perpetua a sua memória e, quase sem darmos conta, continua a alimentar narrativas, fantasias e tensões”.
Estas narrativas e tensões têm sido estudados no Centro de Estudos Comparatistas (CEC) da Faculdade de Letras de Lisboa, sob coordenação de Manuela Ribeiro Sanches. O projecto Deslocalizar a Europa – Perspectivas pós-coloniais na antropologia, arte, literatura e história faz agora dez anos e resultou num conjunto de livros, colóquios, exposições em colaboração com o Africa.Cont, entre outros, culminando agora em Império de Papel.
Comunidade imaginada
Dividido em cinco capítulos que correspondem à história do país a partir do final do século XIX, o livro recorre a periódicos ilustrados (O Occidente, O Século)para mostrar como era feita a recepção de imagens do império pelos portugueses. “A iconografia da temática colonial teve, assim, um papel decisivo para a familiarização dos portugueses com as paisagens e as populações dos domínios ultramarinos”, contribuindo para a “disseminação da ideia de que aqueles eram partes integrantes do território nacional”. Esta “comunidade imaginada” era construída na metrópole, à distância.
A “corrida à África” de vários impérios europeus, a partir 1870, culminou na Conferência de Berlim de 1885 e na perda de uma série de territórios ultramarinos “conquistados” pelos portugueses. Este “novo fulgor africanista” levou à organização, pela Sociedade de Geografia de Lisboa, de expedições de exploração ao interior do continente africano, como as de Serpa Pinto, e de Capelo e Ivens. Estas viagens resultaram num manancial de imagens, fotografias, mapas, artefactos recolhidos nas colónias, trazidos pelos exploradores recebidos com glória no regresso a Lisboa.
Este livro mostra-nos cenas curiosas: como a da caça ao crocodilo de Serpa Pinto, ilustração a partir de uma fotografia. No original Serpa Pinto está sentado numa pose tranquila. A ilustração da revista mostra o explorador “com uma postura bastante mais assertiva: de cócoras, ligeiramente adiantado em relação aos dois africanos”. É a imagem “do explorador firme e determinado, de todo ausente na fotografia”, explica a autora. Esta recriação ou manipulação da realidade era comum: visava “satisfazer ideias sobre uma África imaginada e ir ao encontro das expectativas dos leitores”. Uma natureza densa e indomável; “indígenas” trabalhadores e ordeiros; mulheres desnudadas veiculam ideias de uma África erotizada, fascinante e temível, que tinha de ser domada através do progresso civilizacional.
Uma série de cartoons de Rafael Bordalo Pinheiro invade a imprensa, na altura do Ultimato Britânico (1890), reproduzindo o icónico Zé Povinho (ou políticos como Andrade Corvo, Luciano Cordeiro) humilhados perante os interesses dos poderosos britânicos, franceses e alemães, que, após a questão do Mapa Cor-de-Rosa se apoderam de territórios portugueses em África.
No rescaldo da humilhação, Portugal entra num “novo fôlego imperialista” que resulta em ocupações militares violentas lideradas por Mouzinho de Albuquerque. Nesta altura dá-se a captura de Ngungunhane, “poderoso e temível soberano que se viu acossado pelo temerário militar português”, em Moçambique. A expedição de Mouzinho teve “um grande impacte na metrópole, certamente também por via de todo o voyeurismo e curiosidade popular que rodeou a chegada dos prisioneiros africanos a Lisboa, exibidos na rua como troféus”, escreve a autora.
Ocupação imagética
A “ocupação imagética” das colónias “mascarava as fragilidades de um controlo territorial ainda débil e desigual”. Assim, este “império de papel” é-o, de facto, no papel de jornal, mas também na sua vulnerabilidade.
A “África branca” surge no século XX, já no Estado Novo, com o incentivo de povoamento. Imagens de pastores, de rebanhos, típicos da ruralidade interior de Portugal mostravam as terras de África “como uma extensão do Portugal rural”. O papel do império junto da população muda. Surgem várias publicações sobre temas coloniais que veiculam a cultura imperial às populações. Estas não podem ser dissociadas “de uma motivação ideológica que visava a criação de laços entre a população metropolitana e os territórios ultramarinos”.
Nos anos 30 repetem-se as feiras e exposições coloniais, em Portugal e nas colónias, mostrando a variedade e a riqueza dos tipos etnográficos, culturais, de fauna e flora do império. Em Lisboa, as comemorações da Exposição do Mundo Português (1940) são “demonstrativas da pujança” do regime e serviram para “catapultar interna e externamente a dimensão imperial de Portugal”. Pires Martins sublinha como a exposição assinala também “o fim de um ciclo político”. Desfasada no tempo, quando a guerra alastrava na Europa, este foi “um projecto extemporâneo”. O fim da guerra “acabaria por conduzir ao desgaste dos princípios ideológicos que alicerçavam os regimes coloniais ocidentais”.
Este livro é um “abrir dos cofres” dentro de uma perspectiva histórica. “Disponibilizar num único volume uma grande quantidade de imagens sobre o império português pode produzir um efeito semelhante àquele que exerceram as exposições coloniais no país”, explica Leonor Pires Martins. Isto é, “dar da realidade uma ficção” ou “produzir novas ficções”. Mas Manuela Ribeiro Sanches acrescenta: “A maneira como narramos a nossa história ainda é uma narrativa muito imperial. Como é que se conta esta história? É fácil utilizar o arquivo e, sem querer, reproduzir a nostalgia. Mas também não podemos instrumentalizar demasiado as coisas. É preciso conseguir um espaço de negociação por parte daqueles que vão ver estas imagens, à luz de hoje.”
Trabalho sobre “Um Império de Papel”, da investigadora Leonor Pires Martins, do Centro de Estudos Comparatistas, da Universidade de Lisboa (edições 70)
Artigo originalmente publicado no jornal Público, 28 de Dezembro 2012 e pode ser lido no blog da autora