Memórias como sedimentos íntimos
Ana – o nome convoca um princípio, “a”, letra iniciática, primeira idade. Nome, portanto, circular, porque no “a” final está o salto para a utopia encerrada numa personagem desassossegada, que não pertence (que não quer pertencer?), pássaro inquieto que não se deixa agarrar.
Talvez Ana não seja por acaso, nome da personagem principal do primeiro romance de Margarida Paredes, O Tibete de África. Nenhum nome subsumiria melhor a errância da própria autora – Portugal, Bélgica, Moçambique, Angola, partidas e regressos, muitos forçados, pelos sonhos ou pelos pesadelos que a história nos impôs. Porque Ana e Margarida são, afinal, em tantas coisas tão parecidas. Ana é Margarida-que-escreve, fruto da necessidade ficcional de se transformar nessa mulher sôfrega de sonhos, construída de memórias em finas camadas, que são sedimentos íntimos de um tempo colectivo vivido pela História. Margarida-que-escreve descasca, uma a uma, essas camadas, por vezes frágeis e quase invisíveis, que a história foi deixando secar sobre a pele da juventude e o ardor das experiências.
No romance, Ana, Justino e Amândio são pequenos nómadas perdidos da história e do tempo, e, até certo ponto, presas destes e dos seus movimentos tectónicos que, como O Tibete de África tão bem demonstra, arrancam uma a uma essas camadas de memória com crosta, e sai pele, e sai sangue. E dói.
Aqui, todas as inocências se perdem – África como espaço virgem, o colonialismo como tempo único, as utopias revolucionárias das independências, Portugal como metrópole, Europa como lugar de futuro (e de justiça), a Esquerda sumida na encruzilhada ideológica das suas próprias traições. E ainda que Ana, ao contrário de Margarida, não pegue literalmente em armas, tem, na ponta da língua (e, no romance, a linguagem respira essa urgência, frases curtas, aflitas, dizer, por vezes, o que já não se pode retirar) o poder da revolução – feminista convicta, sexualmente desinibida, inquieta, sem poiso, irreverente, rebelde, inconformada, permanentemente jovem, Ana é uma personagem “híbrida”, porque simplesmente não consegue (ou não quer) pertencer a lado nenhum. Nem a ninguém.
Nesse sentido, O Tibete de África, inicialmente publicado em 2006, abre a porta, na literatura portuguesa, a personagens que tão bem retratam essa “doença de África” de que Ana padece (e que Justino lhe diagnostica). É que ver-se arrancada à força do seu paraíso construído pela lente artificial do colonialismo português, ver-se levada de casa para um país que diziam ser seu, ser-se retornada é saber que simplesmente não se pertence aqui e que o lá a que se pertencia não existe. Viver (n)esse limbo é assumir o drama da descolonização portuguesa. A pele deixa de ser a do branco (o mundo era preto e branco quando se vivia em África), e passa a ser qualquer coisa de intermédio, fruto desse Atlântico pardo, de cor cinza e pouco definida, como a memória que se dissipa e esconde a identidade primeira. Assim é Ana, personagem próxima de outras de António Lobo Antunes, de Lídia Jorge, antes da “explosão” dessa “doença de África” na sociedade e na literatura portuguesa.
Com essas camadas já em crosta, sedimento sobre sedimento, como uma grande e fria montanha – uma espécie de Tibete – Portugal demorou muito tempo a “descascar a cebola” (roubando a expressão a Günter Grass). Talvez como muitos portugueses-híbridos, esses pardos, doentes que, até certo ponto, deixaram de pertencer, Margarida Paredes tenha demorado também a contar a sua história – e O Tibete de África é e não é simultaneamente a sua história (auto-biografia), a história da mulher que sonhou uma (e com uma) geração. Mas a partir do momento em que as primeiras camadas começam a descascar-se, a pele a escorchar o cheiro amargo dessa velha cebola – talvez seja este o odor a Lisboa em putrefacção que Ana sente mas não consegue identificar? –, as memórias vêm à superfície, incomodam, acossam, e só na escrita se poderá encontrar alguma paz. E O Tibete em África vai descascando-as, uma a uma, essas camadas, com maior ou menor mágoa, mas também com alguma esperança.
Retrato íntimo do processo de descolonização, da integração europeia, dos regimes cleptocratas africanos no pós-independência, O Tibete em África é um gume frio, cortante, a penetrar de forma inconformada nas visões – que surpreendentemente permanecem vivas na sociedade portuguesa – romantizadas do colonialismo português, da nostalgia por uma África virgem e perdida, e dos processos revolucionários do século XX.