África e as trapalhadas financeiras internacionais

A primeira década do milénio está prestes a acabar e a maioria dos Estados africanos vai cumprir meio século de existência: duas boas razões para fazer a revisão do «Estado das Nações» e do (in)cumprimento dos objectivos enunciados pelos «pais fundadores» e reiterados pelas Nações Unidas na viragem do século. Mas a crise económica mundial que começou nos Estados Unidos em 2007, quando o Gana comemorava com grande pompa os 50 anos da sua independência, está a atingir em cheio o continente africano e a enturvar o horizonte.

Antes da crise, as economias africanas cresciam em média mais de seis por cento ao ano, no que era considerado como o mais longo ciclo de crescimento desde os primórdios das independências. As previsões das instituições financeiras internacionais (IFI) para 2009 apontam para uma redução de metade deste crescimento que, segundo o Banco Africano de Desenvolvimento (BAD), não deverá ultrapassar os 3,5%, apenas superior ao crescimento populacional.

Em África como no resto do mundo, a crise não afecta todos por igual, agravando as assimetrias regionais e as desigualdades sociais. Mas as consequências para os mais pobres podem ser mais dramáticas que noutras latitudes. «Falar de crise em África é falar de mortes, de crianças que deixam de ir à escola, de doentes sem tratamentos médicos, e isso acontecerá independentemente das políticas dos Governos, como consequência da crise mundial», disse o ruandês Donald Kaberuka, presidente do BAD.

Segundo o presidente do Fundo Monetário Internacional, o francês Dominique Strauss-Kahn, cerca de 50 milhões de africanos irão engrossar a massa dos 320 milhões de habitantes do continente que vivem na pobreza extrema. A maioria destes novos pobres será jovem, porque a população africana é a mais jovem do mundo: 20% tem entre 15 e 24 anos e 42% menos de 15 anos. Desempregados ou sobrevivendo no sector informal (60% segundo a OIT) estes jovens africanos vivem nas grandes cidades ou na sua periferia.

Com efeito, desde a viragem do milénio, o continente africano tem sido o teatro das mais espectaculares mutações ligadas à globalização, contrariando a ideia, ainda muito enraizada no Ocidente, de um continente excluído da modernidade e avesso à mudança.

Acontece que estas transformações brutais – corrida às matérias-primas, urbanização acelerada e descontrolada, êxodo rural, pandemias, alterações climáticas e degradação dos ecossistemas – tomam por vezes formas dramáticas (guerras, golpes de Estado, motins provocados pela fome, conflitos étnicos e religiosos) que dão de longe a impressão de um interminável e violento caos, e de uma interminável miséria política, social e moral. Caos e miséria de que os africanos, os seus Governos e as suas elites são tidos como principais responsáveis.

Será por esta razão que a África foi, uma vez mais, excluída da reflexão sobre «as saídas da crise»? Só representada no G20 pela África do Sul, incluída no grupo das economias emergentes, as suas instituições representativas (União Africana, BAD) foram convidadas à cimeira de Londres pelas IFI mas apenas porque estas receiam que os efeitos políticos e sociais da crise em África possam contribuir para agravar algumas das ameaças que apoquentam o hemisfério Norte (insegurança, emigração clandestina, tráfico de droga, corte no aprovisionamento de matérias-primas estratégicas). Em consequência, as IFI calculam que África precisaria de uma injecção suplementar de 25 mil milhões de dólares em cinco anos sob a forma de ajudas, créditos e investimentos estrangeiros. Ou seja, a receita para África seria a continuação das políticas seguidas até agora e que fracassaram redondamente.

E no entanto, a África mudou e muda – de Argel à Cidade do Cabo e de Lagos a Djibuti – a uma velocidade estonteante. A sua população mais que duplicou e abeira-se dos mil milhões. Conta hoje 58 cidades de mais de um milhão de habitantes, cinco com mais de cinco milhões e duas (Cairo e Lagos) de mais de dez, e um terço destes africanos urbanos vivem em subúrbios sem condições nem empregos estáveis, lado-a-lado com as novas classes médias e os novos milionários.

NOLLYWOOD É O TERCEIRO PRODUTOR MUNDIAL DE FILMES

O cinema foi mais célere que muitos «experts» e ONG em registar estas transformações, e um abismo separa a visão arcaica de Out of Africa (África minha) de Sidney Pollack (1983) de sucessos de bilheteira mais recentes, como o Constant Gardener (O fiel jardineiro) de Fernando Meireles (2004) e ou Blood Diamond (Diamantes de sangue) de Edward Zwyck (2006). O próprio cinema africano afasta-se dos temas «politicamente correctos» dos seus primórdios, e os responsáveis da cultura oficial não gostaram muito de Tsotsi (Infância roubada) do sul-africano Gavin Hood, «oscarizado» em 2006 e menos ainda do filme nigeriano Area Boy, retrato implacável da selva de Lagos, que não encontrou distribuidor na Europa mas pode ser descarregado gratuitamente na internet desde Dezembro. Com efeito, o movimento é imparável, e se o angolano Zezé Gamboa tardou dez anos em reunir os meios necessários para realizar O Herói, as novas tecnologias estão a revolucionar o audiovisual africano e a actualizar a imagem do continente.

A indústria nigeriana do «home video» gera anualmente 150 milhões de dólares de lucros, emprega 350 mil pessoas e faz de Nollywood o terceiro produtor mundial de filmes, atrás da Índia e China. Estas produções baratas e de qualidade muito irregular, invadem o continente sob a forma de cassetes e através da televisão (cerca de 400 novos canais desde o inicio do século, dos quais 80% privados) e partem à conquista dos mercados do Norte.

Afrotainment, canal televisivo criado em 2008 nos Estados Unidos, dedica um terço do seu orçamento à compra de séries e filmes africanos, que preenchem totalmente a sua grelha. Calestous Juma, professor de Desenvolvimento Internacional aplicado da Universidade de Harvard, avisa os que acham que se trata de uma moda passageira. Na sua opinião, com «o hip hop, linguagem universal da juventude africana, tão poderosa numericamente e tão sub-representada politicamente», os artistas africanos estão a conquistar a juventude do mundo porque falam dos problemas do planeta.

Os políticos surfam na crista desta onda – não há campanha eleitoral que dispense o apoio das bandas e rappeurs mais populares – sem conseguir dominá-la, porque não há crise que os artistas africanos não tenham anunciado. Didier Awadi cujo tema «Sunnugaal» (canoa em wolof, idioma da África ocidental) dá a palavra aos «boat people» que assaltam as praias do sul da Europa fala também por milhões de jovens desempregados europeus ou americanos.

Nascido em Dakar, filho de uma cabo-verdiana e de um beninense, Awadi, pan-africanista e altermundialista militante, fechou o círculo em 2007, com um álbum-manifesto chamado «Presidentes de África» que junta as vozes dos mais famosos rappeurs africanos com excertos dos discursos de Thomas Sankara, Nelson Mandela, Cheikh Antah Diop, Modibo Keita, Patrice Lumumba, Julius Nyerere, Jomo Kenyatta, mas também Aimé Césaire, Malcolm X e Martin Luther King.

África pela positiva    

O número de conflitos armados continua a diminuir. A violência armada está agora concentrada em quatro regiões: Corno de África, Grandes Lagos, Delta do Níger e Darfur. 

Quando a crise financeira explodiu no último trimestre de 2008 e várias bolsas africanas entraram em pânico, Governos, economistas e banqueiros africanos tranquilizaram os respectivos clientes. «Não estamos implicados e não possuímos o tipo de produtos tóxicos que provocaram a queda de grandes bancos ocidentais como o Lehman Brothers», disse o governador do banco central de Marrocos, Abdellatif Jouari.

Seis meses mais tarde, as bolsas africanas continuam deprimidas, sobretudo devido à retirada dos fundos ocidentais que tinham injectado muito dinheiro nestes «mercados emergentes», mas a maioria dos bancos africanos continua com elevados níveis de liquidez. É o caso em particular dos países produtores de hidrocarbonetos e outras matérias-primas estratégicas que, conscientes do carácter especulativo das subidas de preços em 2008, tiveram a sabedoria de constituir «fundos de reserva» e de amealhar uma parte substancial dos ganhos em previsão de uma provável inversão de tendência. Tiveram duplamente razão, porque depois de «bater no fundo» a menos de 30 dólares por barril, o preço do crude volta a evoluir em terreno positivo, aproximando-se dos 55 dólares em Março. Os planos de relançamento das economias das maiores potências económicas mundiais, que incluem grandes investimentos em obras públicas e infra-estruturas e incentivos ao consumo privado devem contribuir para fortalecer a procura, nomeadamente por parte da China, principal parceiro comercial de África.

A produção de energia, «calcanhar de Aquiles» da União Europeia, oferece também boas oportunidades de negócios para alguns países africanos. O gás natural da Argélia e da Nigéria é já a principal alternativa ao que chega do Leste, sobre o qual o russo Gasprom exerce um controlo considerado «perigoso» para a segurança europeia.

A ideia de aproveitar o Sara para instalar grandes centrais de energia solar destinadas a abastecer o Velho Continente em electricidade «limpa» está a ganhar adeptos entre os investigadores das grandes empresas do sector energético encarregues de buscar soluções para depois do petróleo. Não é por acaso que durante a recente visita do Presidente José Eduardo dos Santos a Lisboa o ministro português da Economia, Manuel Pinho, lançou a proposta de uma «parceria estratégica» entre Portugal e Angola para a energia, «nomeadamente renovável». E que o Presidente francês Nicolas Sarkozy foi ao Níger abençoar um contrato de 30 anos entre o grupo francês Areva e o país que produz um terço do urânio utilizado nas centrais nucleares francesas. Alcançado após um braço-de-ferro que durou mais de dois anos, o acordo satisfaz todas as exigências do Níger que, além de um investimento de 1200 milhões de euros (1593 milhões de dólares), obteve um aumento de 50% sobre o preço do minério, o controlo de um terço do capital da sociedade mista e garantias de transferências de tecnologia.

Os camponeses africanos têm também razões para esperar beneficiar da crise. Os constrangimentos orçamentais estão a reforçar as «boas resoluções» adoptadas em 2008 sob a pressão dos «motins da fome» provocados pela explosão dos preços dos alimentos. Em nome da «segurança alimentar» todos os países com capacidades agrícolas estão dar a prioridade à produção de cereais, açúcar, carne e peixe para o consumo interno em detrimento das culturas industriais para a exportação e/ou a produção de etanol. O Banco Mundial, as agências da ONU e o Banco Africano de Desenvolvimento apoiam estas políticas, com linhas de crédito e microcrédito, destinados aos camponeses e a investimentos nas zonas rurais, para a produção e distribuição de água, a electrificação e os transportes.

É ainda cedo para anunciar a morte de um modelo de desenvolvimento herdado da era colonial, que condenou África a «produzir o que não consome e consumir o que não produz». O comércio internacional, em queda livre em todo o planeta, perdeu a sua aura de panaceia universal para acabar com a pobreza e a fome.

O novo paradigma de desenvolvimento centrado nos mercados internos e nos recursos próprios está a criar novas formas de solidariedade e a obrigar a tirar da gaveta projectos de cooperação regionais que o NEPAD não tinha conseguido fazer vingar, nomeadamente para o aproveitamento conjunto das bacias hidrográficas e a abertura de «corredores» energéticos, rodoviários e ferroviários. Um dos exemplos é o consórcio WESTCOR (sigla inglesa para Corredor Oeste da Energia) constituído pelas empresas nacionais de electricidade de Angola, África do Sul, Botswana, Namíbia e RD do Congo para reabilitar e ampliar o complexo hidroeléctrico de Inga, sobre o estuário do rio Congo na RDC, capaz de satisfazer todas as necessidades da África Austral.

CONFLITOS QUE PERSISTEM

A consciência, ainda incipiente mas crescente, da necessidade dos africanos terem de juntar esforços para resolver os seus problemas tem reflexos nos planos políticos e de segurança. O número de conflitos armados continua a diminuir. A violência armada está agora concentrada em quatro regiões: Corno de África, Grandes Lagos, Delta do Níger, Darfur e países limítrofes.

Apesar do elevado número de danos e vítimas, entre mortos, deslocados e refugiados que provocam, são conflitos de relativa baixa intensidade quando comparados com as guerras da década anterior. E as «soluções africanas» para estes conflitos ganharam maior eficácia. Na Costa de Marfim, o acordo de paz negociado em 2004 tem resistido aos sucessivos adiamentos das eleições e nenhuma das partes ameaça retomar as armas. No Quénia e no Zimbabwe foi possível evitar guerras civis que pareciam iminentes. O Leste da RDC foi o palco, já em 2009, das primeiras experiências de intervenção militar conjunta dos exércitos governamentais de quatro Estados – RDC, Ruanda, Sudão e Uganda – contra os grupos armados e milícias que operavam na região na mais total impunidade.

Reconstruir economias e infra-estruturas destruídas pelas guerras, reinstalar e reinserir ex-combatentes e vítimas civis é hoje a tarefa principal, facilitada nos anos anteriores por uma conjuntura favorável e que a actual crise económica pode complicar.

No plano político também a «normalização democrática» prossegue. A realização das eleições legislativas em Angola em Setembro passado, após um interregno de 12 anos, e a alternância democrática no Gana são os mais recentes exemplos de que as eleições pluralistas e regulares como única forma legítima de conquistar ou conservar o poder estão a vingar em África, apesar de algumas excepções e «acidentes de percurso», na Mauritana, Guiné Conacri e Madagáscar.

Mas mesmo nestes casos de alteração da ordem institucional democrática pela força, condenados e sancionados pela UA, os princípios fundamentais da democracia e o apoio popular são invocados para justificar o recurso à força para forçar a mudança de regime e/ou de sistema, e a realização de eleições no prazo mais curto possível faz parte do programa de transição dos golpistas.

Esta evolução globalmente positiva mas ainda frágil e incompleta corre o risco de ser brutalmente interrompida por uma crise económica mundial que a África não provocou e que pode atirá-la de novo para as trevas de que se esforça por sair. Ameaças já presentes, cujo poder letal vá aumentar com o avolumar dos problemas sociais podem comprometer os progressos alcançados, e o tempo e os meios financeiros podem ser demasiado escassos para as conter na maioria dos países africanos, incluídos os mais ricos, como Angola, os mais desenvolvidos como África do Sul, ou os «bem governados» como o Botswana e Cabo Verde.

África pela negativa

Os dirigentes africanos consideram que são vítimas dos erros de outros, que lhes impuseram determinadas políticas e que lhes viram as costas quando o fracasso é evidente e o colapso inevitável

Na conferência organizada em Dar-es-Salam para recolher as opiniões dos africanos antes da cimeira do G20 de 2 de Abril, o director-geral do FMI, Dominique Strauss-Kahn, afirmou: «O nosso encontro realiza-se num momento crítico da história de África, onde o crescimento económico é uma questão de vida ou morte. Não se trata apenas de evitar que milhões de africanos mergulhem de novo na pobreza, Há que conter a ameaça de violências civis, talvez de guerra».

Os líderes políticos do «primeiro mundo» parecem ignorar que as guerras que podem explodir em África em consequência da crise serão radicalmente diferentes das do passado e sairão do caldeirão das grandes cidades, que cresceram de forma estrondosa na última década. É nos gigantescos bairros de lata que cercam as capitais africanas, e onde moram em condições precárias dois terços da população urbana, que Anna Tibaijuka, directora geral de ONU-Habitat, situa «o rastilho dos conflitos do futuro».

«Da precariedade à delinquência e à formação de gangs armados, a escalada é rápida nas favelas do Rio de Janeiro aos subúrbios de Bombaim ou Carachi. A situação pode culminar na formação de verdadeiros exércitos, numerosos e melhor equipados e disciplinados do que as forças governamentais encarregues de os destruir, sobretudo quando o Estado é fraco e minado pela corrupção. Este nível já foi atingindo nalguns países africanos».

Os casos mais conhecidos são o temido OPC (Odudua People´s Congress) que domina os bairros mais populosos de Lagos, e a tenebrosa sociedade secreta Mun Mungiki que participou activamente nos sangrentos tumultos pós-eleitorais de 2008 no Quénia. As duas organizações têm matrizes semelhantes, envolvendo num manto étnico-religioso reivindicações sociais e actividades mafiosas. Os seus métodos (e o terror que inspiram) não diferem substancialmente dos mais brutais «senhores da guerra» que já fazem parte da história.

«Aqui, toda a gente acorda todos os dias zangada», explica uma habitante de um dos mais problemáticos bairros de Lagos, que viu centenas de vizinhos serem queimados vivos nas suas casas pelos sicários do OPC numa das suas acções punitivas e de «limpeza étnica», mas que admite sentir-se mais segura desde que a organização tomou conta da zona.

A habitação é o problema social mais agudo em África, incluindo na África do Sul, o único país africano onde o direito a um alojamento condigno é consagrado na Constituição. Mais de 1,7 milhões de casas foram construídas em todo o país desde 1994, mas há 300 mil pessoas em lista de espera em Joanesburgo. No centro, desertado pela população branca, centenas de edifícios degradados, sem luz nem electricidade, abrigam os mais pobres dos pobres, emigrantes clandestinos das mais variadas nacionalidades. Estes shinkoles («buracos de ratos» que a Câmara Municipal quer reabilitar para acolher condignamente os visitantes para o Mundial de Futebol de 2010), estão no centro de uma batalha jurídica com várias associações que exigem o realojamento dos actuais «ocupantes ilegais».

MILHÕES DE NOVOS-RICOS

A destruição de bairros inteiros para dar lugar a escritórios, centros comerciais, condomínios de luxo e bairros residenciais para a nova classe média agudiza as tensões. Na Nigéria, 1,2 milhões de pessoas foram brutalmente desalojadas e expulsas para a periferia em Lagos e 800 mil de Abuja, a nova capital federal desde 2003. Os mesmos dramas repetem-se, em menor escala e com menos alarido, em Luanda, Acra ou Cotonou. A especulação imobiliária é o mais fiel espelho do agravamento das desigualdades sociais em África nos últimos anos, com o aparecimento de milhões de novos-ricos.

Esta nova classe é radicalmente diferente da anterior, que era essencialmente constituída por funcionários e defensora, pelo menos em palavras, dos princípios do bem comum e solidariedade social que inspiraram as lutas pela independência. Os novos-ricos são individualistas, pragmáticos e amorais e assumem sem complexos que a sua única meta é o dinheiro e todos os prazeres que permite comprar, e que este fim justifica todos os meios, lícitos ou não.

A crise económica mundial vai piorar as já péssimas condições de vida das cidades africanas. Por um lado, os rendimentos das massas populares vão reduzir-se drasticamente na sequência da destruição de milhares de empregos. Por outro, as restrições orçamentais obrigarão os Governos a cortar nas despesas e a suspender ou reduzir os programas destinados a atenuar as carências mais agudas em matéria de habitação, transportes, saúde, saneamento, fornecimento de água e electricidade.

Na África do Sul, a mais forte economia do continente, o crescimento económico não deverá ultrapassar um por cento em 2009. O director do banco First Rand resume a situação nestes termos: «Estamos perante a pior situação macroeconómica de sempre. As cotações do cobre, níquel e sobretudo platina caíram mais de 70%. Com estes preços, as minas deixam de ser rentáveis e vão fechar, atirando dezenas de milhares de mineiros para o desemprego. O pior é que, em média, em África dez pessoas dependem de um só ordenado».

É difícil imaginar conjuntura mais desfavorável para a coligação governamental liderada pelo ANC e que integra a poderosa confederação sindical COSATU em plena campanha para as eleições legislativas de 22 de Abril, num país onde a taxa oficial de desemprego é já de 23%. Mas a queda pode ser ainda mais brutal em países que dependem das exportações de um único produto, ou que, carecendo de recursos naturais, apostaram nos serviços e sectores não essenciais como o turismo.

Os analistas calculam que estão em risco meio milhão de postos de trabalho na África Subsariana devido à baixa do preço e do volume das exportações. As empresas públicas podem adiar ou evitar os despedimentos com recurso ao dinheiro público, mas as empresas privadas não podem ser obrigadas a funcionar como instituições de solidariedade social sem contrapartidas. O Governo angolano, por exemplo, comprometeu-se a comprar toda a produção de diamantes para impedir o fecho das minas.

No Botswana, frequentemente citado como exemplo de boa governação, a filial da De Beers, Diamond Trading Company, suspendeu por completo as actividades em Janeiro «pelo menos até Abril», o que significa um golpe terrível para toda a economia de um país onde as exportações de diamantes geram 75% do PIB. As perspectivas são ainda mais sombrias para a Zâmbia, onde o sector mineiro representa 85% do PIB e 10% dos empregos. Várias minas de cobre e cobalto já fecharam, lançando cerca de 50 mil trabalhadores para o desemprego.

Quebras das exportações de cacau, café, algodão, paragem quase total da fileira da madeira, quebras de 40 a 60% no turismo e suspensão ou anulação de múltiplos grandes projectos de construção. Um verdadeiro cataclismo abala as economias africanas sem que os respectivos governos consigam esboçar o menor plano de relançamento.

E AGORA?

«É inaceitável que a África não participe no debate decisivo para a refundação do sistema de Bretton Woods», protestou em Outubro o Presidente congolês Denis Sassou Nguesso, depois da cimeira extraordinária do G9 organizada pela presidência francesa da União Europeia.

Os dirigentes africanos estão zangados. Consideram que são vítimas dos erros de outros, que lhes impuseram determinadas políticas e que lhes viram as costas quando o fracasso é evidente e o colapso inevitável.

Enjeitam as suas próprias responsabilidades e incompetências e «esquecem» o entusiasmo com o qual muitos deles aderiram ao dogma do neoliberalismo triunfante, exagerando até à caricatura os piores aspectos do «capitalismo de casino». A cólera popular pode obrigá-los a auto-criticas severas. As greves e manifestações que tiveram lugar em 2008 em todo o continente não foram apenas explosões de desespero. Revelam também uma vontade de intervenção e uma capacidade de mobilização dos sindicatos, associações cívicas e ONG, relativamente novas e que a crise só pode reforçar.

As novas tecnologias que favorecem a proliferação dos meios de comunicação privados (jornais, rádios e televisões) e permitem a comunicação directa e em tempo real entre indivíduos e grupos outrora isolados contribuem para acelerar o movimento.

Os dirigentes africanos vêem-se obrigados a ter em conta opiniões públicas menos dóceis e passivas que no passado recente, mas também facilmente manipuláveis por outras forças, eventualmente perigosas (fundamentalismos religiosos, etnicismo, racismos). Alguns agarram-se aos velhos métodos da censura e da repressão para calar as vozes incómodas, mas outros já descobriram a utilidade de poder invocar a «vontade popular» para dizer não a certas imposições externas. (A mobilização de sindicatos, associações de produtores e ONG contra os Acordos de Parceria Económica com a União Europeia, foi disso um exemplo).

É ainda cedo para saber se o aparecimento de novos parceiros económicos – China, mas também Índia, Brasil, Japão, Turquia, Irão – o reforço da colaboração Sul-Sul e a correlativa atenuação do tropismo Norte-Sul levarão África a questionar os modelos políticos e de desenvolvimento europeu e norte-americano, como aconteceu na América Latina.

É o que propõem os autores africanos em vários livros recentes (não disponíveis em português) como Why Aid is not Working (Porque não funciona a ajuda) da economista zambiana Dambisa Moyo, ou The challenge for África (O desafio para África) da queniana Wangari Maathai, Prémio Nobel da Paz, ou ainda L´Afrique au secours des Africains (A ajuda de África aos africanos) do senegalês Sanou Mbaye, alto funcionário do BAD. A partir de pontos de vista distintos, ou mesmo antagónicos, os autores chegam à mesma conclusão: chegou a hora dos africanos tomarem em mãos o seu futuro.

Como diz Moyo, «África deveria poder aproveitar esta crise para inventar o seu desenvolvimento, em vez de esperar uma hipotética salvação das potências mundiais elas próprias à procura de salvação».

 

Suazilândia - O reino da sida

Encravada na África do Sul, a Swazilandia é a última monarquia absoluta de África. Os partidos políticos estão proibidos e o rei Mswati III dispõe de todos os poderes. Segundo o PNUD pertence, como Cabo Verde, ao grupo dos países de rendimento médio, embora 70% do milhão e 143 mil habitantes vivam na miséria absoluta. É também o país mais afectado pela sida, com 40% da população infectada. Em consequência, a esperança de vida baixou 18 anos na última década e é actualmente a mais baixa do mundo: 32 anos. No mesmo período, a produção agrícola foi dividida por cinco e a religião é o único recurso contra a doença, com a proliferação de igrejas e gurus que prometem saúde e prosperidade em nome de Deus. O consumo de preservativo é de 15 unidades per capita por ano, 50% dos doentes não recebe nenhum tipo de medicamento e metade das crianças é órfã. 

Somália - Soma e segue

«Buraco negro» do Corno de África desde 1991, a Somália continua a espalhar insegurança à sua volta e nas águas do Golfo de Aden, onde em Março dois navios mercantes europeus foram sequestrados nas barbas de dezenas de unidades das armadas da NATO e das grandes potências mundiais. As companhias privadas de segurança disputam entre si o «mercado», altamente lucrativo da prevenção da pirataria e da libertação dos reféns. A nível interno também não se registam mudanças positivas, apesar da eleição para Presidente, em Janeiro, de um «islamista moderado» Sharif Sheik Ahmed, ex-líder dos Tribunais Islâmicos, da retirada das tropas etíopes e do reforço do contingente da União Africana. Um dos ministros do novo Governo foi assassinado a em Mogadíscio em Março e os confrontos armados continuam com os islamistas radicais (shebab) que controlam o sul do país, junto à fronteira queniana. 

Argélia - O medo da democracia

A reeleição do Presidente Abdelaziz Bouteflika estava praticamente garantida desde a revisão constitucional de Novembro de 2008 que o autorizou a candidatar-se a um terceiro mandato. A única incógnita do escrutínio de 9 de Abril é o nível da abstenção, que foi de 65% em 2004. Todos os países do Norte de África – Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia, Egipto – padecem, em maior ou menor grau, do mesmo mal: medo da democracia, sistema bloqueado, ausência de alternativa. «As eleições presidenciais são uma farsa cínica, a oposição não desestabiliza o poder, ajuda à sua legitimação», diz o escritor argelino Mohamed Benchicou. Com os petrodólares e a corrupção endémica como justificação, a Alquaida no Magrebe Árabe pode continuar a recrutar terroristas entre a juventude, ou encobrir formas violentas de banditismo.

 

Publicado originalmente na revista África 21 n.º28 – Abril 2009

por Nicole Guardiola
A ler | 9 Agosto 2011 | África, crise financeira