Alerta de crise alimentar em gestação
Apesar da atual subida dos preços não ter ainda alcançado os níveis de 2008, hoje os riscos são mais elevados para as populações fragilizadas sem condições de melhorar o seu poder de compra
A Agência das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) aciona o sinal de alarme: os preços dos bens alimentares de base, cereais, óleos e açúcar, voltaram a subir em fevereiro nos mercados mundiais, pelo oitavo mês consecutivo, e a tendência é para se manter ao longo do ano.
Embora estejam ainda abaixo do pico alcançado em 2008, que provocou «motins da fome» em vários países africanos, estes novos aumentos podem ter efeitos dramáticos nas economias dos países dependentes das importações para alimentar as suas populações e para o nível de vida das famílias mais pobres, que dedicam a quase totalidade dos seus rendimentos à alimentação.
Segundo Nicolas Bricas, investigador do CIRAD (Cooperação Internacional para a Investigação Agronómica para o Desenvolvimento) a situação é agravada pelo facto de a margem de manobra dos governos para atenuar os efeitos do encarecimento das importações sobre os mercados internos ser mais reduzida do que era em 2008, e porque o poder de compra das populações vulneráveis baixou em consequência da crise financeira mundial. O terceiro fator agravante está no aumento dos custos dos transportes devido à nova escalada dos preços dos combustíveis.
Finalmente, dado o peso dos cereais na alimentação animal, os produtores de carne já anunciaram aumentos de preços, em particular dos frangos e ovos.
Para Abdolreza Abbassian, economista da FAO e especialista em cereais, o aumento de 3,4% registado em janeiro em relação ao mês anterior «é o mais importante, em termos reais e nominais desde que a FAO criou o seu índice dos preços alimentares em 1990».
As causas gerais desta subida são conhecidas: aumento do consumo, nomeadamente dos países emergentes devidos à demografia e à melhoria do nível de vida em particular nas zonas urbanas, e tensões do lado da oferta, provocadas pelo aumento dos custos de produção e acidentes climáticos nos grandes países exportadores.
Entre os cereais, os mais afetados são o trigo e o milho, cujos preços mundiais estão ao nível mais alto desde julho de 2008. Mas os aumentos mais espetaculares registam-se nos setores dos óleos e gorduras vegetais (5,6%), dos lacticínios (6,2%) e do açúcar (5,4%).
Para se ter uma ideia mais clara da dimensão do problema, é preciso medir a evolução a longo prazo, o que permite eliminar as flutuações conjunturais. Tomando como base o índice 100 da FAO de 1990, verifica-se que, em 20 anos, os preços dos bens alimentares mais que duplicaram (231 pontos em janeiro de 2011), os dos óleos quase triplicaram (278 pontos) e o do açúcar foi multiplicado por quatro (420 pontos).
Quando os preços dispararam em 2008, os países importadores tomaram uma série de medidas para minorar os efeitos dos aumentos sobre os mercados internos e o bolso dos consumidores: redução ou eliminação dos direitos alfandegários, libertação de reservas, importação de produtos de menor qualidade, substituição de cereais importados por outros de produção local, em particular para a panificação.
Mas a crise financeira que veio a seguir e afetou em maior ou menor grau os países africanos deixou os países mais pobres sem margem de manobra para proteger os seus consumidores. As taxas sobre as importações não foram restabelecidas, as reservas não foram reconstituídas e os preços ao consumidor continuaram muito mais altos do que eram antes de 2008.
Cortes drásticos
As ajudas alimentares oferecidas, seja no âmbito de programas permanentes, seja sob a forma de ajuda humanitária de emergência em caso de catástrofe, também sofreram cortes drásticos, e o Programa Alimentar Mundial (PAM) das Nações Unidas teve de suspender ou reduzir várias operações em curso.
O único «consolo» é que as principais exportações agrícolas viram também os seus preços aumentar nos últimos meses, como os do algodão, café, soja e óleo de palma, o que é uma «boa notícia» para os países africanos que dispõem de excedentes exportáveis, mesmo se a maior parte dos lucros ficam nas mãos dos intermediários (transportadores e exportadores) e dos (poucos) grandes empresários africanos do setor.
Por outras palavras, segundo a FAO, mesmo se a atual subida dos preços dos alimentos não alcançou (ainda?) a amplitude da de 2008, os riscos para os consumidores são mais elevados porque afetam populações fragilizadas, que estavam já no limite das suas capacidades de sobrevivência e não veem perspetivas de melhoria do seu poder de compra a curto prazo.
Nos dois últimos anos, não houve criação massiva de empregos, antes pelo contrário: a maioria dos governos não pode recorrer a medidas administrativas ou subvenções para travar os aumentos dos preços nos mercados internos; as remessas dos emigrantes que trabalhavam nos países (mais ricos) estão em declínio, e muitos destes migrantes estão agora a ser expulsos depois de perderem os empregos, na África do Sul ou na Costa do Marfim.
Como em 2008, a crise alimentar que se anuncia não é devida a uma escassez de alimentos, mas à falta de poder de compra de milhões de agregados familiares para lhes garantir o acesso a uma alimentação suficiente.
No continente africano, particularmente vulnerável, não faltam capacidades para desenvolver a produção de alimentos que constituem a base da dieta tradicional das populações: mandioca, batata-doce, milho-miúdo, feijão, banana, óleo fendê, peixe.
As campanhas agrícolas de 2008 e 2009 foram boas, e mesmo excecionais nalguns países. O que falta, já se sabe, é a capacidade de organizar os mercados, locais, nacionais e regionais, para que estes produtos cheguem em condições e a preços justos aos mais necessitados.
Já se viu, na Tunísia e no Egito, como a carestia dos bens alimentares e a falta de poder de compra podem contribuir para desestabilizar politicamente países com situações económicas globalmente positivas e em crescimento acelerado. A FAO acionou o sinal de alarme.
artigo publicado origianlmente na África 21, março 2011