Algumas ideias sobre a Economia da Cultura e a Pandemia

(excertos de um texto reflexivo sobre a Cultura)

Na sequência de vários pedidos de entrevistas para a imprensa escrita, áudio/visual, e para social mídias sobre a cultura e o momento actual, achei por bem escrever estas pequenas notas, sugestões-base para uma reflexão colectiva sobre algumas soluções possíveis para o sector: 

O que era da cultura deve permanecer da cultura

Os orçamentos, os valores adjudicados, arrecadados, cabimentados ou previstos para a cultura, em todos os sectores da sociedade, deviam ser executados. Tudo o que estava previsto como programa cultural para o ano 2020 devia ser realizado, mudando da plataforma física para a digital, ou, quando o momento o permitir, com público reduzido. Esta seria uma medida digna, que o país agradecerá por longos anos. Os eventos com promoção ou participação do poder público, como o AME, O Kriol Jazz Festival, as festas Juninas, os festivais de Cinema, os festivais de Teatro, as feiras do livro e do artesanato, os debates, as conferências, as actividades religiosas, as festas e os festivais municipais, deviam ser incentivados a que se com concretizem (sem público presente, ou ad hoc) e com transmissão pela internet. Os festivais, sem a comparticipação de recursos públicos, devem receber incentivos e parcerias públicos para se afirmarem como boa alternativa nesses tempos. Novos festivais, que já nasceram virados para o live, podem ser chamados a compartilhar experiências e fazer parcerias com o poder público para levar a cultura à população. As romarias e as procissões, os cultos e os ritos serão grandes bálsamos de realizados com simbolismo, porque são símbolos, isto é, em espaços próprios, com os rituais possíveis, e levados aos fiéis e consumidores via internet. Se não é sensato enfeitar as ruas, enfeitemos as janelas, as varandas, os balcões, mas é fundamental dar alegria visual à comunidade, expressar amor, exercer a fé, partilhar a crença, e sairmos mais fortes e melhores.

Toda a cadeia da cultura em movimento

Essas actividades são sugeridas para envolver toda a cadeia da Economia da Cultura e todo o sector da cultura, não só as pontas, isto é, o artista, a transmissão, mas também os intermediários e os fornecedores de serviços. O live amador é apenas uma indicação do que podemos fazer. Mas o live, tal como o fazemos, tem as suas contra-indicações, a sua dose recomendada. Ele é um bastidor. O espectáculo e as manifestações artísticas precisam da ilusão. A ilusão é uma faculdade que Deus deu ao aos semelhantes para não morrermos de concretude. A luz, o fumo, o cenário, a caracterização, fazem parte da criação dessas ilusões. Portanto, o poder público deve chamar a si o espoletar do  movimento Realizemos todas as actividades culturais. Seria bom que houvesse uma sensibilização política nacional, pilotada pelo Governo ao mais alto nível, para que todas as instituições públicas se envolvam. É ideal que haja uma recomendação expressa para que todos se engajem na execução dos seus programas culturais. Essa nova postura não precisa de incentivos fiscais ou ajuda financeira pública extra. Basta que aconteça com os meios que já estavam e estão previstos, e que estejam disponíveis, mas com a concepção de que, em vez do público ir aos eventos, agora os eventos vão ao público (Sabedoria antiga expressa na máxima de Maomé).

Para a execução, o promotor (governo, municípios, instituições públicas), pode relançar os programas, chamar, directamente ou por editais, os curadores (para propor os artistas), contratar produtores e agentes (para fornecer os artistas propostos), os fornecedores de serviços de som, palco  e luz, os gestores e prestadores de serviços digitais (web designers, criadores de conteúdos, de streaming, de transmissão ao vivo, os artistas do video, os câmeras, editores, canais web, TV a cabo e de sinal aberto) e executar o seu plano de actividades culturais para 2020.  As empresas de som, luz e palco dispõem de grandes espaços físicos, que podem ser transformados em estúdios ou palcos in door sem presença de público, ou com público reduzido respeitando as recomendações sanitárias, para um novo tipo de espectáculos, com um novo formato. Isto sugere uma grande diversidade para uma diversidade de público. Então, o físico será uma modalidade e um complemento ou um suplemento do digital nesta época. O aconselhável  é mantê-lo como  complemento depois. Os Centros Culturais e espaços afins podem também promover eventos nas suas plataformas, usando seus equipamentos e disponibilizando seus meios financeiros.

As modalidades

Cada manifestação artística tem uma especificidade, mas todas são imateriais, portanto susceptíveis de serem disponibilizadas via internet. Um Sistema de Distribuição física eficaz deve ser segurado por uma parceria público-privada para entrega a domicílio de expressões artísticas em suportes para aqueles que o privilegiam, tais como livros, quadro, discos, peças de artesanato, etc., com segurança sanitária, financeira e cívica. E o ideal é que cada organismo público especializado abrace seu homólogo no sector privado e juntos desenvolvam os programas de incentivos à aquisição e distribuição de bens culturais físicos. Neste momento, o poder público deve atrelar às bibliotecas nacionais a compra de livros para oferta as bibliotecas públicas e escolares, incumbir às instituições de gestão das artes uma campanha para aquisição de quadros e peças para a decoração dos espaços e instituições públicos, etc.

É bom guardarmos o sentido da estética nos momentos de crise. Há uma longa tradição de se investir em obras de arte para decoração de cemitérios, de fazer funerais com música e dança, de criar mausoléus (veja o Taj Mahal) etcétera, e isto é porque a estética ajuda a despenalizar a vida. Passa-se do mórbido para o simbólico.

Providência

Por fim, sugiro algumas acções urgentes: 

a) a criação de um fundo emergencial de apoio aos artistas, com doações de todos os benfeitores, com  o adiantamento dos direitos de autor, e inclusão dos artistas nos programas de luta contra a pobreza, e de auxílios);

 b) a possibilidade da SISP patrocinar a linkagem das plataformas digitais dos artistas (Instagram, Youtube, Facebook, outros) ao sistema de pagamento on line, para que durante o live o público possa contribuir com o montante que desejar, mediante um processo simples de transferência bancária. 

c) o gesto do INPS realizar um donativo em inscrições a todos os artistas não inscritos no sistema, (isso aumentaria o número de inscritos e a longo prazo significaria menos custos para o Estado), com abono de família a assistência na doença, e com contribuições postergadas para 2021. 

d) a iniciativa conjunta do INPS e do Tesouro para criar um bónus próprio não contributivo para artistas com mais de 65 anos e que necessitem de uma pensão, em reconhecimento ao tanto que deram á Nação; 

d) seguro de Intermitência 

Pode ser um bom produto as companhias de seguros oferecerem um Seguro de Intermitência de Actividade Artística, igual à invalidez temporária, mas cujo objecto seria a cessação temporária de actividades por um curto período (até seis meses). 

Programação até dezembro

A cultura não está em crise, porque não existem impedimentos para o seu exercício. Isto difere-a de muitas outras áreas da nossa existência. Na cultura, a distribuição física existe, mas pela sua natureza, pela sua imaterialidade, ela está totalmente disponível pela Internet. Toda a cadeia da cultura pode ser disponibilizada via digital.

foto de Jules Podlowskifoto de Jules Podlowski

As festividades nacionais e municipais, mais do que nunca, devem  ser realizadas, porque o público está ocioso em casa e precisa de cultura. Os cidadãos e os munícipes, no país e na diáspora, estão carentes de cultura, e é obrigação dos  seus eleitos assegurar-lhes uma qualidade tranquila de recolhimento e de restrição. Imaginemos a felicidade dos emigrantes de Santo Antão em Luxemburgo, ou da Brava nos Estados, a assistirem as suas festas de São João pela Internet, ver seus artistas locais e nacionais, assistirem à missa, ouvirem as mensagens de seus edis, numa acção programa e sufragada. 

Devemos preparar-nos para o mundo pós, e devemos chegar lá melhor do que entramos, sob pena de um grande e perigoso retrocesso. É momento de disponibilizar mais meios para o sector da cultura. E é urgente levantar a suspensão de realização de actividades culturais (com as condicionantes de restrição do público presencial).

A criação de páginas públicas, nacionais e municipais, para transmissão desses eventos vai criar um canal eficaz de assistência do poder público aos seus súbditos. Todos os eventos culturais previstos para o ano 2020 devem ser mantidos, e os que foram suspensos ou cancelados devem ser retomados e realizados antes do fim-do-ano, elegendo como seguro a transmissão via internet. O Estado deve incentivar e apelar a que isso aconteça, comparticipando em substituição dos ingressos, por exemplo. Isto ajuda na arrecadação de impostos, na criação de empregos e sua manutenção e, principalmente, na melhoria do ser humano, no debelar do sofrimento, na ocupação sã do tempo. E é também uma forma de colocar a única cadeia possível e passível de funcionar em pleno neste momento a funcionar na plenitude.

Nada mudou no sector da cultura. Os eventos existem, as efemérides, os artistas, o público, os fornecedores, os agentes e outros profissionais. Vêm ali as festas Juninas, elas podiam ser realizadas, como foram no ano passado, criando fontes de rendimento para toda uma cadeia de produção cultural. As festividades de 5 de Julho, os festivais da Baía das Gatas e de Santa Maria, a programação do Dia Nacional da Cultura, de Santa Catarina, e os tradicionais eventos de Natal e do Fim-do-ano podem ser programadas e realizadas, transformando-se em eventos concebidos para a transmissão via internet ou pelos meios convencionais, mudando de plataforma e indo ao encontro do público em casa, ou em espaços que permitam o isolamento e o distanciamento social, movimentando uma ampla contratação de artistas e agentes culturais. Ressalvo que os artistas actuam em estúdios montados para o efeito, sem assistência do público, virados para a transmissão on line. Os restaurantes e serviços que fazem entregas ao domicilio podem continuar com a actuação dos seus artistas a partir de casa, pagando-lhes para que nas suas plataformas façam lives e promovam os estabelecimentos e os produtos, variando a remuneração entre a percentagem sobre vendas e o valor básico estabelecido. É importante que a economia da cultura não pare, porque dos vários sectores da economia, este é o único que pode funcionar em pleno. A todos estes eventos culturais devem permear acções de solidariedade para fornecer alimentos e cuidados de saúde àqueles que mais necessitam. O Estado não precisa subsidiar mais do que já faz, e os patrocinadores não devem fazer menos do que faziam. O Estado podia inclusive adiantar o pagamento dos contratos para a realização dos eventos culturais. As perdas das empresas, do início da pandemia ao final do ano, devem ser consideradas investimentos, com claros efeitos fiscais e contributivos.

Os direitos

Outras formas complementares são as acções das sociedade de autores. Elas podem prestar um serviço emergencial importante aos autores, compositores, editores e intérpretes, pagando-lhes os direitos originais e os conexos, principalmente àqueles que vivem exclusivamente da sua actividade artística. A fonte de receitas está na Lei da Cópia Privada. As companhias de Telecomunicações podem ter um gesto magnânima neste momento, e efectivarem o pagamento dos direitos de 0,5% das receitas das telecomunicações devido por lei às sociedades de autores. Ainda, seria de bom gesto que adiantassem as cobranças dos próximos dois anos às sociedades de autor via Governo. As emissoras públicas devem ser justas também num momento destes, e remunerarem os criadores. As companhias de telecomunicações devem mesmo inaugurar uma parceria com os artistas para lives nas suas plataformas, a das companhias, mediante remuneração base standard praticado internacionalmente neste momento, de 1000 escudos por música e 10 mil por concerto de tempo superior a 20 minutos, acrescidos de um suplemento de cinco escudos por View. A mesma lista e tabela devem servir de base às sociedades para uma remuneração ajuizada aos seus associados.

Por fim, relembro que, entre os profissionais que actuaram com bravura durante a pandemia, estão os artistas. Merecem uma homenagem pública e um carinho do público, que, estando em casa, nunca sofreu por falta de conteúdos e entretenimento.

Há braços fraternais.

por Mário Lúcio Sousa
A ler | 25 Junho 2020 | Cabo Verde, cultura, pandemia