Como está-tua ex-celência?
A História é tanto a erecção das estátuas e dos monumentos como as suas demolições. Presumindo e contundindo, pedir a substituição, a recolocação ou o afundamento duma estátua faz parte do processo histórico.
Tarrafal caiu do mapa tão cedo nasceu e, até hoje, nunca teve uma única estátua de pé. De modo que, quando apareceu na vila a moda de brincar de estátua, uma coisa tão simples, aquilo virou uma fonte de acidentes domésticos, porque nós só conhecíamos tais figuras nos livros, e vinham sempre em pedestais, rodeadas de dragões e leões admoestados. E como quem não tem gatos caça com ratos, lá fomos nós para cima das cumeeiras, com os nossos cães sarnentos, fazermo-nos de Marquês de Pombal. Muitos foram parar à farmácia, que hospital não havia.
Um dia, perguntei à minha avó o que eram efectivamente as estátuas, e ela respondeu: são alguém de ferro. E quis que eu entendesse tais molduras como seres surdos, mudos e cegos. Seus sinais particulares não eram defeitos, pelo contrário, constituíam virtudes de qualquer estátua. Modestátua à parte, elas podiam gabar-se de não serem vaidosas, arrogantes, ou preconceituosas. Tudo o que tinham era nosso, dos humanos, e tudo o que eram éramos nós, desumanos.
Em verdade, sempre que colocamos uma estátua elevamos o nosso ego, os nossos interesses e as nossas posições e projecções. Sempre que elas são ameaçadas, são esses valores nossos que se estremecem. O paradoxo é que elas são colocadas para que não esqueçamos da História, exactamente da História que alguns queremos esquecer, porque o esquecimento é fundamental para o luto, sem o luto não há perdão, sem perdão não há gratidão, sem gratidão não há alguém, sem alguém não existe Humanidade.
A minha percepção é que Lisboa tem uma história da História africana, historiada segundo sua visão, seus historiadores, seus livros, suas imagens, seus protótipos, seu protagonismo. Talvez história africana aqui queira dizer a dos países com língua oficial portuguesa, basicamente. E mesmo assim, é difícil achar traços dessa presença na imagética lisboeta.
Essa apologia lisboeta de cidade africana, que é linda na apropriação, infelizmente não se traduz em reconhecimento. Para quem é Lisboa a cidade mais africana da Europa é uma boa pergunta. Se os lisboetas sentem isso eu fico muito feliz. Completo ficaria se os africanos o dissessem também. Esta questão não é apenas uma contraposição. Uma definição clara e acessível dessa categoria, ou salvo-conduto, pode ajudar a atingir esse título, e talvez a festa da participação histórica venha reparar muitos lutos por fazer, e ajudar muitas lutas por haver.
A história colonial faz parte da identidade portuguesa
É natural, e não é um achaque. Isso até me conforta, porque as identidades são entidades vivas. Nascem, se transformam, envelhecem e morrem. Sendo assim, a identidade portuguesa de hoje não é a mesma de há 50 anos, e muito menos de há 500. Toda a identidade leva dentro os seus dilemas. Os antigos colonizados, seus descendentes, outrora indígenas por lei, são hoje pessoas nascidas, crescidas, naturalizadas, cidadanizadas, nacionalizadas, simples mentes portuguesas. E seus dilemas são outros. Um dilema antigo que os portugueses de antes não viveram: carregar na mesma pele o algoz e o açoitado.
Os novos portugueses de hoje sabem o que é isso. É o que nos ensina o fenómeno da crioulização. Essa componente identitária tende a rejeitar toda a imagem que dela se quer preservar e difundir através de algumas estátuas, das narrativas, dos discursos e das visões. Essa nova identidade ganhou seu espaço de fala e de expressão. Portanto, os novos portadores de identidade portuguesa podem protestar na barriga da mãe contra aquilo que não acham bem no seu país. É legítimo não quererem ver-se representados de modo bárbaro sobre os antes chamados bárbaros. E não o fazem como vítimas de então, mas como protagonistas de agora. Tem de haver lugar para o novo. Não se pode apagar a história, é verdade, mas tampouco se pode pará-la. Sob o pretexto de preservar a História não pode haver atitudes anti-História. A História é tanto a erecção das estátuas e dos monumentos como as suas demolições. Presumindo e contundindo, pedir a substituição, a recolocação ou o afundamento duma estátua faz parte do processo histórico. Vandalizar estátuas é uma das formas de manifestação contra o silenciamento da voz pacífica. Como nas ditaduras, quando tudo é proibido, manifesta-se para proibir proibir. Assim vai se alimentando a História.
Sobre a destruição das marcas da história colonial
A História não permanece, ela se perpetua, e essa dinâmica implica permanência e impermanência eternas. Destituir os homens de seus pedestais faz parte dessa dinâmica, tanto como o fez colocá-los. Moral e imoral têm suas espirais no tempo. Quando os ventos e os tempos mudam, mudam-se as estátuas também. Por outro lado, as marcas da História podem ser complementadas com as marcas resilientes do sofredor. As marcas da História não podem historicamente ser as mesmas de chicotes, agora em bronze, por mais épicas, identitárias, ou históricas que sejam.
Continuar a ouvir os mesmos ecos das ordens de matar e de castigar, esses que abafam os uivos de dor, não é mais permissível, nem mesmo sob pena de silenciar a História. O silêncio não está na História, ele está nos silenciados, os mesmos desde há cinco séculos, ou desde a fundação do mundo. O pior é a ostentação. Uma estátua é uma ostentação. Não existe hoje um equilíbrio entre a visibilidade das estátuas e o silenciamento das vozes vivas. O holofote e a penumbra são muito desiguais nesta história. Portanto, às vezes, algumas lâmpadas têm que ser apagadas, para que outras possam alumiar. Senão, será a cegueira total.
(…) descolonizar a cidade
A árdua e necessária tarefa de hoje é a descolonização da mente. Ninguém se incomodaria com uma cidade colonial onde as pessoas não fossem projecção das estátuas. Na verdade, removemos as estátuas cujos exemplos não queremos nas nossas vidas.
O argumento de que os alemães não destroem os locais do Holocausto e, por isso, Portugal não tem que esconder a história colonial, tem uma inverdade subtil. Se não estivermos atentos, é muito fácil dizer “eu concordo”. Mas se repararmos bem, em Portugal ainda não existe um único monumento à escravatura, ou às vítimas da Guerra Colonial, nem material, nem imaterial. A Alemanha faz bem em não destruir o testemunho das vítimas, os locais do Holocausto. Mas, Deutsche nos acuda, não expõem as estátuas dos nazistas.
Alguns monumentos e estátuas são elegias ao poder, e não necessariamente histórias em si, ou as histórias que lhes servem de substrato. A História estuda, preserva e conta essa relação, e não é seu papel contribuir para o conhecimento de uma única fonte.
Não são contra a História aquelas pessoas que são a favor da remoção das estátuas ofensivas à memória das vítimas. Os monumentos portugueses com e sem estátuas são mantidos como parte da nossa História, do Benim a Goa, do Tarrafal a Gorée. E não é só coisa de pretos ou de activistas culturais. Há bem pouco tempo, o Forte de Peniche quase virou hotel. Não é assim tão diferente a opinião daqueles que protestaram, em relação àqueles que defendem a remoção das estátuas coloniais que fazem apologia da violência, da discriminação, da falta de respeito ao Outro.
Um dos consensos que já existem é o de que as estátuas são alternáveis, para que a História continue. É preciso fazer o luto, e isto exige equilíbrio de símbolos. Um modo de não silenciar a História é escutá-la. Nós, as velhas crianças do Tarrafal, sabemos hoje o que são as estátuas. Aqui enterradas.
Artigo originalmente publicado no jornal Público a 05/12/2021