Amílcar Cabral foi assassinado há 40 anos - conversas sobre Amílcar

Amílcar Cabral foi assassinado no dia 20 de janeiro de 1973. A Fundação Mário Soares disponibiliza o Arquivo Amílcar Cabral na plataforma digital Casa Comum e organiza um Seminário por ocasião dos quarenta anos do seu assassinato. 


Para a gente que, no início dos anos 60, frequentava a Casa de Estudantes do Império – e, depois do seu fim, se refugiou nos cafés mais próximos, como a Mimo ou o Rialva, o nome de Amílcar Cabral surgia como quase mitológico. Talvez por isso, pelas conversas e histórias em seu redor, a sua morte causou-me, não só a natural indignação perante o assassínio de um grande dirigente, mas também a mágoa de quem perde um amigo que não chegou a conhecer. Por tudo isso, Amílcar Cabral e os factos do 20 de Janeiro surgiam, naturalmente, sempre que falava com gente que com ele se tinha cruzado, no PAIGC. Dessas conversas se tece este relato:

“Quando o conheci, numa casa da Rua Actor Vale, em Lisboa, não o associei a esse Amílcar Cabral de cujo trabalho na Guiné já tínhamos ouvido os ecos. O engenheiro que me apresentaram não parecia capaz de fazer nada disso…”

Ana Maria Cabral riu-se, quando me contou esta história, em Cabo Verde, há já alguns anos. Ri-me também: porque já ouvira comentários semelhantes, mas também porque talvez fosse essa qualidade, fazer sem tornar evidente que fazia, que lhe tivesse permitido estar entre a escassa dezena e meia de guineenses a ascender a um curso superior, em Portugal. Talvez fosse ainda essa qualidade que lhe permitiu, durante dois anos, correr a Guiné de lés a lés, na sua qualidade de agrónomo: fazendo um trabalho científico (que seria depois publicado pela Imprensa Nacional), mas também adquirindo um conhecimento que esteve na base da luta vitoriosa do PAIGC, semeando ideias, cultivando cumplicidades. Até que finalmente o disfarce caiu e foi proibido de permanecer na terra natal, onde só era autorizado a entrar uma vez por ano, para uma curta visita a sua mãe.

Nessa altura tinha já uma ideia muito clara sobre os problemas que levantaria, à luta de libertação, a existência de múltiplas etnias, sem laços entre si. Mas dizia: “É com esta gente, como ela é, que temos de fazer a luta. Será a própria luta que os fará avançar.” Conseguiu assim que os Balantas, depois de combaterem no seu próprio terreno, admitissem ir dar uma mão aos Fulas, no chão destes. Tal como deixou que fosse a prática a combater as superstições: “Se um chefe está tão carregado de amuletos que precisa de carregadores para o ajudar a transportá-los e, por isso, não se precipita para o abrigo em caso de bombardeamento e morre, e outro sem amuletos, que está no abrigo, escapa, as pessoas começam a perceber que é o abrigo o melhor dos amuletos…”

Pacientemente: como convenceu os pais, mesmo os de religião muçulmana, que as filhas, como os filhos, deveriam estudar. Como conseguiu impor, nos Comités das áreas libertadas, a presença de mulheres. Mesmo se teve de aceitar que as combatentes se limitassem à defesa das tabancas, na milícia.

Foi dele, do engenheiro agrónomo conhecedor dos diferentes povos da Guiné, que veio a palavra de ordem que se seguiu ao massacre de Pidjiquiti: deslocar a luta para o campo, proceder à mobilização dos camponeses. Uma palavra de ordem que, aquando do seu assassinato, a 20 de Janeiro de 1973, estava à beira de dar os seus frutos, com a proclamação da independência.

“O nosso Exército não é composto por militares, mas por militantes armados”, dizia ele, mais palavra menos palavra, numa velha entrevista que recuperei para uma série para a RTP, “Geração de 60”. “E quando conseguirmos o nosso objectivo, a independência, esses militantes voltarão para as suas terras, a lavrar os campos.”

Em Janeiro de 73, a vida parecia sorrir a esse engenheiro agrónomo que, segundo um antigo guerrilheiro, seguia muitas vezes, de binóculo, sobre um morro próximo, os combates em torno de Madina do Boé. No terreno, a luta prosseguia com crescente dificuldade para os portugueses. No exterior, era reconhecido como um grande dirigente africano. (Não fora ele, com outros dirigentes dos movimentos de libertação das colónias portuguesas, recebido pelo Papa, num genial golpe de propaganda que deixou profundamente nervosas as autoridades da “nação fidelíssima”?) As suas idéias sobre a independência continuavam claras e precisas. Sabia que outras tinham corrido mal, mas isso não o intimidava. Numa outra entrevista, utilizada na mesma série, afirma: “Muitos países se tornaram independentes e ouvimos muitas vezes esta frase:’A independência para quê?’ Sim, a independência para quê? Para nós, em primeiro lugar, para sermos nós próprios. Para sermos homens africanos, com tudo o que nos caracteriza, mas caminhando para uma vida melhor, e que nos identifique, cada vez mais, com os outros homens no Mundo.”

Descreveram-mo firme, inteligente, respeitado pelo seu povo (junto do qual, embora membro da ínfima minoria que acedera à educação, se movia como peixe na água), enfim, o tipo de inimigo que nenhum império deseja enfrentar. Por isso, concluíram, como Roma gizou a morte de Viriato, Lisboa iria gizar a morte de Amílcar Cabral.

“Devíamos ter previsto o que aconteceu, tanto mais que em 70 houvera a agressão a Conacry, organizada pelas tropas colonialistas, que atacaram Conacry, desembarcaram em Conacry, atacaram a casa em que nós vivíamos… E havia informações, vindas de países amigos, de algumas confissões de elementos infiltrados, que referiam esse plano, embora, creio, para mais tarde… Devíamos ter sido muito mais cuidadosos… Mas a personalidade do Amílcar também não ajudou, era um indivíduo que detestava andar com guarda-costas, não facilitou o trabalho da segurança. Nesse dia mesmo, estávamos os dois sózinhos…”

Ana Maria disse-o, julgo lembrar-me, com um pequeno sorriso. Como quem se desculpa de um erro – mas também como quem sente um certo orgulho por esse traço do companheiro, ainda que possa ter ajudado a conduzir à sua morte. Para a viúva de Amílcar, não há dúvida que a personalidade dele, o seu arreigado humanismo, facilitaram a tarefa dos seus inimigos:

“Recordo-me de alguns dos principais agentes infiltrados, que fizeram o trabalho da desmobilização, e depois foram desmascarados e presos… Ele queria-os libertar… Era contra que se guardasse um indivíduo preso mais que umas semanas…”

O seu repúdio pela violência (não se opusera ele sempre ao terrorismo e a qualquer ataque contra civis?), a sua tendência para o diálogo (não declarou sempre pronto a negociar com Lisboa?) poderão ter precipitado também a sua morte, já que, frente aos que pretendiam amarrá-lo, resistiu, declarando preferir ser morto a ser amarrado: “É por isso mesmo que eu luto, para que deixemos de amarrar as pessoas… O ser humano não pode ser amarrado. Se há problemas, vamos sentar, vamos discutir, vamos conversar.” Nesse dia 20 de Janeiro, Ana Maria e a secretária de Cabral foram presas pelos atacantes da casa que tinha, até aí, servido de prisão aos infiltrados. Mas, diferentemente do que se passou com os restantes dirigentes “cabralistas”, não foram ameaçadas de fuzilamento no dia seguinte. Os atacantes queriam primeiro que lhes dessem toda a documentação pertencente a Amílcar Cabral.

Aristides Pereira, esse, foi amarrado e levado para um barco, e depois libertado pelos homens da Marinha da Guiné Conacry que, a bordo de um barco soviético, conseguiram apanhar o barco dos raptores antes que deixasse as águas territoriais guineenses. Para além delas, segundo Ana Maria, haveria um outro barco à espera: “Nesse barco estariam os colonialistas, e esse barco é que o levaria a Bissau.”

Os raptores eram gente do próprio PAIGC, virada contra a direcção do Partido por elementos infiltrados, manobrados pelos portugueses, muitas vezes para tal libertados das prisões, por vezes do próprio Tarrafal – que apareciam em Conacry,ou nas zonas libertadas, dizendo ter desertado, ou fugido das prisões, e que os combatentes recebiam de braços abertos.

“Era impossível dizer a um africano que se apresentava: ‘Vai-te embora, nós não confiamos em ti, és um agente da PIDE.’ Era impossível.”, explicou-me Manecas dos Santos. “Tínhamos de tomar as precauções necessárias, investigar aquilo que fosse possível, mas não podiamos recusar a vinda de nacionalistas que se queriam juntar a nós. Não era um procedimento aceitável.” Houve portanto infiltrações e, segundo Manecas, “tudo leva a crer que, na base dessas infiltrações, esteve o assassinato de Amílcar Cabral.”

“Esses agentes infiltrados trabalharam contratando os descontentes, os que tinham tido algum problema. Claro, não os mobilizaram dizendo que iam matar o Cabral, mobilizaram dizendo: ‘A luta vai acabar, Portugal está de acordo em entrar em negociações connosco, nós temos é que entregar os dirigentes, vamos entregar o Cabral aos colonialistas, vamos levá-lo para Bissau. A partir daí já será fácil entrar em negociações com Portugal.’”

A luta armada durava há já dez anos, a independência tardava a chegar, alguns deixaram-se seduzir pelas promessas de autonomia: “Eles receberam a promessa de que, se conseguissem raptar e entregar os principais dirigentes do PAIGC, o governo colonialista estaria de acordo em entrar em negociações com eles – mas sem PAIGC, sem Cabo Verde. Só a Guiné, com uma certa autonomia, sob a bandeira portuguesa. E eles seriam os dirigentes da Guiné.”

O Tarrafal foi um dos centros de recrutamento desses dirigentes guineenses. Foi aí que foi recrutado Momo Touré, um dos cabecilhas do golpe. Foi também na prisão que foi “virado” Rafael Barbosa, que fôra presidente do Partido e que, depois de libertado, surgiria na rádio de Bissau a apelar ao fim da luta e a bradar vivas a Portugal. Se a sua participação no golpe nunca se provou, não se lhe retira, pelo menos, a responsabilidade de ter auxiliado a criar o clima que o preparou:

“Se a memória não me falha”, disse-me Ana Maria, anos depois, em Cabo Verde, “essa missão de raptar o Cabral e o Aristides Pereira tinha como nome de código Rafael Barbosa.”

Menos de um mês antes, em Lisboa, fora aprovado o novo Estatuto da Guiné. E de há muito que, em Bissau, a “psico” vinha fazendo propaganda visando separar guineenses e cabo-verdianos do PAIGC. Os que, em Conacry, escutavam a rádio de Bissau, ouviam programas em português, em crioulo, nas principais línguas da Guiné-Bissau, falando contra os cabo-verdianos: “Diziam que quem explorava o povo não eram os portugueses, eram os cabo-verdianos, quem ocupava os melhores postos da administração eram os cabo-verdianos… Todo esse trabalho era feito para pôr o guineense contra o cabo-verdiano…”

Antes disso, não houvera grandes problemas: segundo os relatos que ouvi, os cabo-verdianos que lutavam na Guiné tinham sido sempre bem recebidos, e as relações eram boas nas áreas libertadas. Mas era um facto que os cabo-verdianos, mercê da sua maior preparação, ocupavam, também na guerrilha, os principais postos, e a propaganda portuguesa esforçava-se por atiçar rivalidades:

“Eles faziam uma grande propaganda, diziam que nós queríamos entregar Cabo Verde para base da União Soviética e do bloco socialista… E todo esse trabalho para preparar o assassinato tinha como base: ‘Nós estamos de acordo em ouvi-los, em dar-lhes uma certa autonomia – mas sem Cabo Verde.’”

Ana Maria pensa que, a facilitar a operação, esteve o facto de Amílcar Cabral ser visto como um perigo, não só pelos portugueses, mas também por outros países europeus, teoricamente anti-colonialistas:

“É que alguns países africanos tornaram-se independentes, mas continuaram bastante ligados às potências colonizadoras, com as economias dependentes, de modo que quando surgiu um homem que dizia que a independência tem de ser também independência económica, que defendia uma independência real face às antigas ‘metrópoles’, pareceu-lhes um perigo, um perigo de perderem o que estavam a ganhar.”

Talvez por isso, quando conversei com ela, Ana Maria parecia acreditar na existência de cumplicidades na própria Guiné-Conacry. Mas não por parte do presidente Sékou Touré – antes de alguns ministros descontentes com a sua opção por uma via socialista.

Sékou Touré, Amílcar Cabral. Se o exemplo se espalhasse, que iria acontecer à Àfrica controlada e dependente – ou, simplesmente, pró-ocidental, de que o Senegal de Léopold Senghor era o grande exemplo?

Há por isso quem julgue que o golpe era dirigido, não só contra Amílcar Cabral, mas também contra Sékou Touré – o que implicaria outras cumplicidades ocidentais, outros aliados de Portugal, com cujos serviços secretos a PIDE/DGS sempre teve, aliás, boa colaboração. (O inspector da PIDE/DGS Pereira de Carvalho, em entrevista para a mesma série, disse-me claramente que os serviços franceses não tinham antipatia pela causa portuguesa, tal como o Pentágono e os serviços secretos da generalidade dos países europeus, e ajudavam no que podiam, através de troca de informações e trocas de serviços, acrescentando que, por exemplo, não podendo o Governo francês apoiar abertamente a política portuguesa, o fazia encapotadamente, através dos seus serviços secretos. E a tese defendida pela DGS era a de que Guiné e Cabo Verde eram um caso especial entre as colónias portuguesas, porque representavam a defesa do Atlântico Sul, não devendo por isso ser dissociadas da defesa do Atlântico Norte…) Mas há, também, os que dizem que Sékou Touré facilitou o ataque que custou a vida a Cabral. Quando com eles falei, Aristides Pereira e Ana Maria Cabral coincidiam nesse ponto:

“Talvez tenha havido algum descuido por parte das autoridades guineenses, mas em minha opinião, isso vinha de uma confiança demasiada na nossa organização, porque a guiné permitia algo que era exagerado, porque o PAIGC, na Guiné-Conacry, era um Estado dentro do Estado”, disse Aristides Pereira. “Estávamos ali instalados, fazíamos a nossa guarda só com os nossos homens… enfim, tínhamos uma liberdade de movimentos quanto a mim exagerada.”

“Éramos um Estado dentro do Estado”, corroborou Ana Maria. “Os carros do PAIGC que circulavam em Conacry, e de Conacry para a fronteira, tinham até uma matrícula especial, para evitar qualquer contrôlo, e tinham sempre prioridade absoluta.”

Para Pedro Pires, tudo, a manobra de divisão, o caso Rafael Barbosa, a tentativa de rapto, “fazem parte do ABC da contra-subversão”- ele, que leu Bayo, que leu Guevara, diz: “contra-insurgência” – “mas chegaram atrasados. O Rafael Barbosa foi um mito do PAIGC, mas quando o puseram a a falar na rádio já foi tarde de mais – nós já estávamos na luta há uns dez anos…”

Fosse ou não fosse o ABC da contra-subversão, o certo é que as autoridades portuguesas averbaram uma vitória, com a morte de Amílcar Cabral.

Uma vitória de Pirro? Foi o que pensei depois de ouvir Ana Maria:

“Em parte o plano falhou, porque as coisas continuaram, o PAIGC continuou, e os nossos amigos intensificaram o apoio, os nossos combatentes receberam armas mais sofisticadas, e a luta intensificou-se de forma aflitiva. Acho mesmo que houve uma mudança de atitude por parte dos combatentes, porque até aí ele lutavam pela liberdade do país, e a partir daí passaram a lutar com ódio. E se pegarmos nos comunicados de guerra de antes e depois do 20 de Janeiro, e compararmos a quantidade de militares colonialistas mortos, certamente iremos encontrar uma grande diferença.”

Entretanto falecido, um outro “histórico”, José Araújo, partilhava com Pedro Pires a opinião de que a operação de “contra-subversão” chegara tarde de mais:

“A perda de Amílcar poderia ter sido de facto um desastre, se nós estivéssemos noutra fase da luta. Mas as condições que vieram a determinar a derrota do colonialismo português já estavam criadas em vida do Amílcar. Um factor de extrema importância para a aceleração do termo da guerra foi a perda da impunidade de que beneficiavam os aviões portugueses. A tropa portuguesa só se movimentava com apoio aéreo, só podia aguentar as suas posições com apoio aéreo e logo que a Força Aérea deixou de ser invulnerável, estava determinado o termo da guerra. Ora já estavam reunidas as condições para essa mudança qualitativa no tempo de Amílcar. Evidentemente que ele deixou um grande vazio. Não é fácil substituir-se um homem como ele. Mas fez-se, e pensamos que isso foi possível ainda graças a ele, na medida em que ele soube preparar uma direcção. Trabalhou sempre em equipa, e por isso foi possível dar continuidade ao trabalho, e conduzir vitoriosamente a luta até ao final.”

Um ano e três meses depois do assassínio de Amílcar Cabral, dava-se o 25 de Abril. Seguir-se-ia a independência das colónias. Talvez nessa altura, alguns dos responsáveis militares portugueses, alguns mesmo dos que tinham estado por trás da operação que terminou com a sua morte, tenham sentido a falta de um interlocutor que muitos insistem em considerar um dos maiores dirigentes africanos de sempre: Amílcar Cabral, engenheiro agrónomo.

 

Crónica publicada no jornal Público em Janeiro de 1993, disponível em caminhosdamemoria.wordpress.com

por Diana Andringa
A ler | 21 Janeiro 2013 | Amílcar Cabral, Cabo Verde, golpe, Guiné Bissau, Independência, memória