As Milongas da Rainha Njinga

In : Lienhard, Martin, O mar e o mato, Luanda, Kilombelombe, 2005

O «diálogo» entre portugueses e africanos nas guerras do Congo e de Angola (séculos XVI-XVII)


Uma guerra de discursos

Entre eles não há moeda de ouro nem de outro metal, nem coisa que lhe responda, ao invés usam certas coisas que têm seus preços certos e ordinários, nas quais entram escravos, a que os nossos chamam peças… («Informação acerca dos escravos de Angola» 1989 [1576]: 118).

Destes [escravos] o número dos que são cativos em guerra não é nada em comparação aos que se compram em feiras, nas quais os reis e senhores de toda a Etiópia mandam vender seus escravos, e este trato entre eles é antiquíssimo e sempre usado, servindo-se de peças em vez de dinheiro para comprarem vestidos, e o mais que hão mister («História da residência… » 1989 [1594]: 188)

A moeda que corre nesta cidade de Loanda é de diferentes qualidades e preços, porque a melhor são peças das Índias, ou seja, escravos que se embarcam para as Índias pelo valor de vinte e dous mil reis; há outra que chamam de peças que é moleques, molecas, negros com barba e negros somenos que servem para o Estado do Brasil (Sousa 1985 [1624-30]: 310).

E as mais ricas minas que têm estes Reinos de Angola são a quantidade de peças que deste porto saem todos os anos, de sete a outo mil cabeças de escravos um ano por outro (Cadornega 1972 [1680]: II, 243).

O principal comércio dos portugueses e demais brancos com os moradores [do Congo] é o dos cativos, os quais são embarcados para as ilhas de Porto Rico, Rio Plata, São Domingos, Havana, Cartagena, e para a terra firme, particularmente o Brasil e outros lugares, onde são obrigados a trabalhar nos engenhos de açúcar e nas minas […]. E é por isso que os portugueses e os espanhóis devem ao trabalho destes cativos quase toda a riqueza que tem nas Índias Ocidentais (Dapper 1964 [1688]: 294-295).

À procura de uma rota marítima para a Índia, o navegador português Diogo Cão chegou em 1482 à foz do rio Zaire. Naquele mesmo ano deve ter começado, ainda modestamente, a «extracção» portuguesa de escravos dessa área. Nas duas décadas seguintes ocorreram, por acaso ou não, dois acontecimentos que transformariam por completo o sentido do incipiente tráfico internacional de escravos africanos: a chegada dos espanhóis ao Caribe (1492) e ao continente americano (1498), e a dos portugueses ao Brasil (1500). Desde a primeira metade do século XVI, com efeito, as necessidades da produção açucareira no Caribe e no Brasil e minéria na América continental espanhola impuseram a transferência de contingentes sempre crescentes de escravos africanos para a América. Durante mais de dois séculos, a África central foi sem dúvida a área mais devastada pelo escravismo europeu que contava - convém não esquecê-lo - com a colaboração dos senhores e outros agentes locais. Destinada a satisfazer a voracidade de um mercado escravista em expansão constante, Angola, nesse tempo, entrou na história mundial como sub-colónia do Brasil (Rodrigues 1982: cap. II).

Qual foi a reacção dos africanos a essa modificação radical de seus padrões de vida? É provável que eles, desde o início do tráfico escravista, tenham começado a elaborar, nas suas cantigas ou suas narrações orais, o trauma que não pôde deixar de significar para eles a irrupção do escravismo europeu. Talvez os mambos dos paleros cubanos, descendentes espirituais dos kongo1, sejam como que um eco longínquo de uma prática poética desse tipo. Nenhuma fonte escrita, porém, conservou exemplos explícitos de uma produção «literária» africana que permitisse fazer uma ideia da reacção discursiva dos habitantes da Área Congo-Angola ao fenómeno do comércio atlântico.

A guerra que se travou entre portugueses e africanos nos matos e nas savanas da área Congo-Angola pode ser lida, também, como uma «guerra de discursos» ou um «diálogo» - profundamente assimétrico - entre os conquistadores europeus e os seus adversários locais. Que fontes se prestam para estudar esse «diálogo»? Basicamente, as crónicas, os relatórios e as cartas redigidos por agentes da empresa escravista e colonizadora. As poucas fontes «africanas» consistem nas cartas que os senhores – chamados de mani ou muene2* no Congo e de soba3 em Angola - costumavam dirigir às autoridades portuguesas. Eminentemente diplomáticas, essas cartas - escritas em português - não revelam, porém, o pensamento verdadeiro dos chefes africanos. Felizmente para nós, nem todos os textos redigidos pelos actores da conquista escravista impõem uma visão absolutamente oficial ou unilateral dos sucessos. Como bem mostra a história do processo de conquista, os interesses dos autores dessa literatura - navegantes, emissários políticos, governadores, eclesiásticos – podiam ser relativamente divergentes. De um indivíduo para outro, as diferenças de atitude ética ou política são, por vezes, notáveis. Menos marcados pela ideologia oficial do que os seus colegas espanhóis na conquista da América (cf. Lienhard 2003), vários deles pouco se esforçaram por disfarçar as motivações dos conquistadores ou ocultar a resistência de seus adversários. Em todos estes documentos, porém, se percebem muito mais nitidamente as atitudes e a argumentação dos senhores africanos, interlocutores directos dos portugueses, do que as de seus súbditos – sempre ameaçados de serem deportados para o Brasil ou a América espanhola. Quanto aos africanos, que já sofriam a escravidão europeia na sua própria terra, as suas vozes - mas não as suas atitudes práticas - ficaram quase ausentes da documentação escrita.

Mona N’Zinga, Yonamine, 2005, técnica mista sobre tela 4 x [60 x 80cm] Cortesia Colecção Sindika Dokolo, LuandaMona N’Zinga, Yonamine, 2005, técnica mista sobre tela 4 x [60 x 80cm] Cortesia Colecção Sindika Dokolo, Luanda

A situação do pesquisador que procura rastejar o discurso dos africanos nos documentos redigidos pelos seus adversários lembra a de uma pessoa que assiste a uma conversa telefónica alheia. Nestas situações, o ouvinte indiscreto geralmente não ouve o que diz o interlocutor distante, mas pode imaginá-lo a partir do que diz a pessoa que está ao seu lado. O que permite adivinhar o conteúdo ou mesmo as formas do discurso do «interlocutor distante» é a natureza «dialógica» da linguagem (Bakhtine 1977). Enquanto elemento de uma cadeia, qualquer enunciado «responde» a um enunciado anterior e antecipa, de alguma maneira, os enunciados posteriores. Ao dizer «sim» ou «não», por exemplo, eu confirmo ou desminto o que disse meu interlocutor, obrigando-o ao mesmo tempo a reagir, por sua vez, ao que eu digo. Uma frase não ouvida ou «perdida» pode ser reconstruída, pois, a partir da que a precedeu e da que a segue. No caso dos relatórios portugueses, é o africano que faz o papel de «interlocutor distante».

A nossa documentação de base compõe-se de cartas, crónicas e relatórios, escritos principalmente entre 1580 e 1680 por diferentes actores da colonização militar, económica e «espiritual» de Angola. Dois destes textos são «clássicos»: a Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola do padre capuchinho Cavazzi de Montecúccolo (1965 [1687]) e a História geral das guerras angolanas de António de Oliveira de Cadornega (1972 [1680]). Particularmente rico quanto a «ecos» de vozes africanas revelou-se, porém, um texto muito menos conhecido, o «Extenso relatório» (publicado em 1985 por Beatrix Heintze) que Fernão de Sousa, governador português de Angola entre 1624 e 1630, dirigiu a seus filhos «pera vos aproveitardes dos sucessos que tive, como di balizas de erros do governo volos deixo escritos para escolherdes» (Sousa 1985: 217). Ao contrário da grande maioria dos relatórios produzidos na conquista da Área Congo-Angola, sem excluir os escritos mais oficiais do próprio Sousa, esse texto manifesta uma espontaneidade ou falta de premeditação pouco comum. Sua escrita mostra que se trata de uma espécie de diário onde o governador apontava, sucessivamente, o que ia acontecendo, interessando-se particularmente pelas manobras e jogadas de seus adversários como também pelas medidas tomadas por ele mesmo para reforçar a presença portuguesa na área. Trata-se, portanto, de um texto não definitivo, «aberto», frágil em termos ideológicos. Num escrito de índole mais oficial, Fernão de Sousa teria se esforçado, sem dúvida, por reinterpretar todos os acontecimentos em função da imagem «política» que ele desejava oferecer de si mesmo ao seu destinatário principal: a coroa luso-espanhola. No seu «Extenso relatório», o governador, ademais, transcreve ou resume a correspondência recebida de seus interlocutores: oficiais portugueses e senhores africanos, aliados ou inimigos. Incorporadas no texto, essas outras «vozes» contribuem para reforçar sua «dialogicidade».

Escravidão e comércio escravista

O famoso «reino do Congo» - Kóngo dia ntôtíla* (‘Kongo do rei’) - era anterior à chegada (1482) dos expansionistas portugueses na área4. A parte central desse reino de limites difíceis de estabelecer5 abrangia as «províncias» ou «senhorios» kongo de Sonyo, Nsundi, Mpangu, Mbamba, Mpemba e Mbata. Sua capital, Mbanza Kongo, logo batizada pelos portugueses de São Salvador, se encontrava no actual norte da República de Angola. Na época de D. Afonso I ou Mbemba a Nzinga (1509-1540), o reino do Congo aparecia como um Estado vassalo do império português, reservatório de mão-de-obra escrava. Nos últimos anos do século XVI, pelas dificuldades encontradas na obtenção de peças em número suficiente (Glasgow 1982: 24), os portugueses transferiram seu centro de actividades mais para o sul, para Luanda. Eles não deixaram, porém, de considerar o rei do Congo como seu vassalo. Ao exigir, na década de 1620, sua colaboração na expulsão dos holandeses, o governador de Angola, Fernão de Sousa, lhe lembra, com efeito, os «benefícios» que o reino do Congo recebeu dos portugueses, nomeadamente o «cristianismo» e, em 1571, a ajuda militar contra os guerreiros jaga* (Sousa 1985: 222).

A motivação principal para os portugueses iniciarem seus contactos com as populações da África central foi, oficialmente, a conversão dos reis autóctones ao cristianismo. De facto, a evangelização das populações autóctones fazia parte das condições impostas pelo Papa às potências ibéricas quando repartiu o «mundo» entre eles (Tratado de Tordesilhas: 1494). Ora, uma leitura mesmo superficial dos relatórios portugueses da conquista da Área Congo-Angola demonstra que as preocupações que ocupavam realmente a atenção dos conquistadores eram bem diferentes. Nos matos e nas savanas de Angola desenvolveu-se uma guerra permanente entre os portugueses, ávidos de conseguir o maior número possível de peças para a exportação, e os «reis» ou senhores autóctones, que procuravam, embora de maneira amiúde contraditória, defender a sua soberania e também, às vezes, a sua própria posição no comércio escravista. Nos últimos anos do século XVI, os jesuítas instalados em Angola assinalaram que «a quantidade de escravos que cada ano se tira de Angola é muito grande, como se vê dos muitos que levam a Portugal, e muitos mais para o Estado do Brasil, a minas das Índias de Castela, como também dos muitos contos de renda que do saque deles tem a fazenda de Sua Majestade» («História da residência…» 1989 [1594]: 188). O tráfico de escravos - e não a conversão dos africanos - foi, portanto, o contexto no qual se realizaram os primeiros intercâmbios na área considerada.

Acrescente-se que nem para os eclesiásticos a evangelização dos africanos constituía uma prioridade. No seu «Extenso relatório», Fernão de Sousa exprimiu brutalmente o que era, para ele, uma evidência: «No modo de batizar o gentio houve até agora grande falta polos não instruirem como convém para receber o Santo Batismo, porque os eclesiásticos que passam a estas partes tratam mais de comprar e embarcar os negros que de os catequizar» (Sousa 1985: 262). Cumpre lembrar que esta censura provém de um governador que nunca se opôs à prática do comércio escravista, mas que desejava integrá-la num projecto mais amplo de colonização da área. O que constituía a motivação principal da expansão portuguesa na África nunca foi, nos séculos XVI-XVIII, senão o afã de se enriquecer graças ao tráfico de escravos. Não se encontra, aliás, nenhum agente da empresa conquistadora que tenha manifestado, por escrito, escândalo perante a transformação dos homens africanos em peças. «As feiras de escravos», escreveu ainda Fernão de Sousa (ibid.: 223) com muita simplicidade, são «a sustância deste reino». A indiferença moral dos portugueses quanto à escravidão dos africanos nada tem de surpreendente: todos os povos da bacia mediterrânea, desde a antiguidade clássica, costumavam empregar mão-de-obra escrava (Saco 1853, Capela 1978, Maestri 1988 a).

É verdade que muitos dos documentos portugueses da época afirmam, como para justificar o tráfico, que a compra e a venda de escravos constituía, na África, uma prática já antiga: «este trato entre eles é antiquíssimo e sempre usado, servindo-se de peças em lugar de dinheiro para compararem vestidos, e o mais que hão mister» («História da residência…» 1989 [1594]: 188). Os historiadores modernos, europeus ou africanos, admitem também a existência da escravidão na África antiga. Ora, o que era a escravidão africana tradicional? Segundo as fontes portuguesas da época, essa se baseava, na África central, na observação de um conjunto de regras tradicionais. Os escravos se recrutavam entre os prisioneiros de guerra (várias fontes), os traidores («História da residência…» 1989 [1594]: 188) e os delinquentes («Informação…», 1989: 119), mas nem as pessoas nobres (Pigafetta / Lopes 1989: 85; Sousa 1985: 279-280) nem as «mulheres e os filhos» (D. Afonso 1992 [1514]: 29; Sousa 1985: 269, 279-280) podiam ser vendidos como peças. Ademais, a compra e a venda se realizava, em momentos e lugares precisos, nas feiras previstas para tais transacções comerciais. Também se entregavam escravos como tributo a um senhor mais poderoso, mas este tipo de operação só se realizava uma vez em vários anos («História da residência» 1989 [1594]: 189). Além do mais, os escravos passavam a fazer parte da família de seu dono e não podiam ser vendidos, regra geral, a nenhum outro.

É indiscutível que a intrusão dos europeus nessa paisagem mudou profundamente o sistema africano, transformando-o em «escravismo colonial» (Gorender 1985). Todos os documentos consultados sublinham que os intrusos não respeitavam as regras tradicionais de recrutamento nem de comercialização dos escravos. Por exemplo, eles não hesitavam em comprar - novidade na área - escravos que «eram de sangue real e de senhores principais» (Pigafetta / Lopes 1989: 85). Entre os homens embarcados para as Américas se encontravam também, segundo Fernão de Sousa (1985: 222), muitos escravos forros. A grande novidade do comércio atlântico, porém, é o carácter massivo de seu volume e a deportação dos cativos para um continente longínquo. A voracidade dos mercados americanos - e a dos traficantes - aumentou, num grau nunca visto, a pressão escravista. No século XVII, só o Brasil importava anualmente não menos de 44 mil peças (Glasgow 1982: 51). Para o «imaginário» dos cativos, ser escravo na África ou na América não era a mesma coisa. Na sua Descrição histórica…, o capuchinho Cavazzi evocou os temores dos africanos quanto à eventualidade de serem embarcados para a América:

Há […] grande diferença entre os escravos dos Portugueses e os dos pretos. Os primeiros obedecem não só às palavras, mas até aos sinais, receando sobretudo ser levados para o Brasil ou para a Nova Espanha, pois estão persuadidos de que, chegando àquelas terras, seriam mortos pelos compradores, os quais, conforme pensam, tirariam dos seus ossos a pólvora e dos miolos e das carnes o azeite que chega a Etiópia […]. A razão que eles alegam é que às vezes se encontram pêlos nos odres, e eles julgam serem pêlos de homem esfolados para este fim. Portanto, só pelo terror de serem mandados para a América, agitam-se freneticamente e, se possível, fogem para as matas. Outros, no momento de embarcar, desafiam as pauladas e matam-se por si mesmos, atirando-se à agua (Cavazzi 1956 [1687]: I, 160).

Se aqui ainda se trata de pequenos actos de resistência individual, também há notícias de verdadeiros levantes de massa. Assim, em 1798, um navegador português, Joseph Antonio Pereira, pretende cobrar de uma companhia de seguros de Cádiz «las pérdidas, y averías que experimentó dicho buque [Nuestra Señora de la Concepción y Jesús de los navegantes] en el expresado puerto de Cabinda ocasionados con motivo del levantamiento de doscientos setenta y ocho esclavos que tenía a su bordo» [grifo nosso]6. Ser transportado para fora da África, como escreveu no mesmo ano um explorador português, era «o maior de todos os castigos que se pode dar a um cafre» (Almeida 1798: 113). Mas não se tratava só de uma questão de «imaginário». O chamado «comércio atlântico» foi, realmente, algo absolutamente novo e traumático na realidade social africana. Nas palavras de Jan Vansina (1990: 197),

[…] o comércio atlântico foi um estimulante equivalente à revolução industrial. Os seus efeitos devem ter sido igualmente impressionantes. Porém, ao contrário da revolução industrial, que se desenvolvia no lugar mesmo onde nasceu, o comércio atlântico significava a penetração de atitudes, ideias e valores forâneos. Ela constituíu, por conseguinte, um desafio ainda maior às práticas antigas do que a revolução industrial na Europa.

O mato-refúgio

É nos matos da África que costuma desenvolver-se a resistência dos senhores locais à penetração portuguesa. É neles, também, que começa a escrever-se a história da resistência dos escravos «coloniais», que continuaria depois tanto na África quanto na América. Num trabalho de síntese sobre a aparição dos primeiros estados na África central, Vansina (1985) destacou a importante função da floresta na história antiga dessa área. Esses estados, afirma o historiador, formaram-se em função do meio ambiente regional, caracterizado pela existência de uma floresta tropical salpicada de savanas. Também na história da guerra entre os africanos e os seus adversários vindos da Europa, as florestas – e o mato em geral - cumpriram um papel decisivo. Fora do mato, os africanos tinham poucas possibilidades de se salvar perante a agressividade dos portugueses: nos povoados e na savana aberta, eles só podiam escolher entre a escravidão e a morte. No entanto, eles não tardaram muito em compreender que a floresta era o seu aliado mais seguro. Já nos fins do século XVI, os jesuítas residentes em Angola afirmaram que «em campo raso [os africanos] nunca levam a melhor. Mas acolhem-se a suas fortalezas, que são matos espessos em tempo que têm folha, de dentro dos quais atirando sem serem vistos, fazem comummente mais dano aos nossos («História da residência…» 1989 [1594]: 190).

Às vezes, o «mato» é uma floresta de pedras. A rainha Nzinga, «senhora d’Angola» (Sousa 1985: 223) e adversária dos portugueses, se fortificava amiúde nas zonas rochosas do interior. Lugares de acesso difícil, o mato ou as florestas de pedras, foram, na verdade, os melhores aliados dos africanos que lutavam - pelos motivos mais diversos - contra os escravistas portugueses. Para os portugueses, homens do Atlântico, a floresta tropical era um espaço impenetrável e desconhecido: um inferno militar e teológico. A História geral das guerras angolanas de Cadornega (1972 [1680]) mostra bem a verdadeira obsessão que os matos e a floresta provocavam no imaginário dos portugueses. Em virtude da abundância de suas florestas, Cadornega chama Angola de «espesso país» (ibid.: I, 102). Os matos chegam a ser, na obra deste historiador, a expressão por excelência de um continente hostil. Eles representam tudo o que obstaculiza o avanço da empresa escravista e colonial. Referindo-se aos escravos fugitivos de um antigo governador português de Angola, Fernão de Sousa (1985: 286) afirmou que eles «meteram-se no mato com ânimo de se defenderem, receosos das maldades que tinham cometido e de comerem carne humana» (ibid.). O que incomoda o governador, claro, é o facto de os escravos terem conseguido escapar ao controlo dos portugueses. Em vez de reconhecer a superioridade relativa que o conhecimento do território oferece aos africanos, ele procura desqualificá-los acusando-os de graves crimes contra a humanidade. Na sua narrativa, a floresta - O coração das trevas, como na famosa obra homónima de Joseph Conrad - aparece como a própria sede da barbárie. O mato se opõe aos espaços controlados - ou controláveis - pelos portugueses, à «civilização» - um conceito ainda não formulado, mas já presente no discurso dos europeus. Os africanos, ao perceberem o terror que o mato inspirava aos portugueses, não só faziam dele o seu refúgio habitual, como também se acostumaram a condicionar sua saída dele a uma série de exigências. A rainha Nzinga (Njinga) praticava esse jogo com grande requinte, provocando assim a raiva dos portugueses. Referindo-se aos subterfúgios inventados pelos invasores para adiar a libertação da sua irmã, prisioneira dos portugueses em Luanda, ela escreveu a 13 de Dezembro de 1655): «Por estes enganos e outros ando pelos matos, fora de minhas [sic] terra» (Cadornega 1972: II, 501). Para a rainha, a permanência nos matos não era um simples imperativo militar, mas também um meio de pressão - ou uma «linguagem» política.

Além de sua importância estratégica na luta militar e política que os portugueses e os africanos mantinham na área, a floresta também constituía, aos olhos dos últimos, um espaço «sagrado». Na História de Cadornega, como já se disse, abundam as alusões aos «espessos matos» de Angola. Reiterando a observação feita pelos jesuítas quase um século antes, o historiador português insinua a dimensão religiosa que o mato ou a floresta têm para os africanos: «vendo que não nos podiam vencer em campanha se recolheram mal do seu grado ao sagrado, que são seus dilatados e espessos matos» (Cadornega 1972 [1680]: I, 81). Já em 1586, o padre Diogo da Costa (1989: 163) tinha afirmado que os autóctones «adoram paus e pedras». Na mesma época, Duarte Lopes aludiu à «simbiose» que existia, no Congo, entre os homens e os elementos da natureza: «homens e mulheres não tinham nomes próprios convenientes e racionais, mas comuns às plantas, às pedras, aos pássaros e às bestas (Pigafetta / Lopes 1989: 65). Atribuindo-se nomes de plantas, de pedras ou de animais, os nativos manifestavam a intensidade de sua relação com o cosmos natural. O mato, concretamente, vem a ser um espaço sagrado no qual os homens recebem a protecção e a força de suas «divindades» tradicionais. É verdade que nos textos escritos pelos funcionários do império português, a qualidade da relação que os africanos mantinham com o mato ou a floresta enquanto espaço sagrado não aparece de maneira muito precisa. O que talvez permita, pelo menos até certo ponto, imaginar o conteúdo dessa relação é o que dela se «revela» nas cantigas dos paleros cubanos (veja-se o cap. I).

Criação dos escravos cubanos, os mambos não são propriamente «africanos»: seria ingénuo, portanto, considerá-los como «fonte» para uma reconstrução geral da cosmovisão kongo. É provável, porém, que os seus núcleos mais «sólidos» se apoiem ainda na cosmologia kongo. É o caso, a meu ver, das referências – obsessivas - a (n)finda. Nos mambos, como se comentou no capítulo anterior, nfinda (‘floresta’, ‘mato’) é a morada dos mortos e dos «génios da natureza»: o espaço das origens e da tradição. Podemos supor, portanto, que ao meter-se pelos matos, os africanos não só procuravam esquivar a perseguição dos escravistas, como também actualizavam os contactos com o seu passado, suas tradições e suas «forças». Na mfìnda, eles recuperavam as energias necessárias para seguir lutando contra os mindèlé (‘brancos’).

De toda maneira, para os africanos, a guerra nunca foi um assunto puramente militar. Ao contrário, eles se entregavam a ela com toda a bagagem de suas crenças tradicionais. Muitos textos portugueses sugerem que, para os africanos, todas as circunstâncias que envolviam a actividade militar eram portadoras de significados religiosos: «Se no arraial acerta algum triste sonhando de gritar itá, itá, que quer dizer guerra, guerra, daqui tomam os outros mau agouro e lhe cortam a cabeça» («História da residência…» 1989 [1594]: 190). Antes de passar à acção, os africanos consultavam suas «divindades». Assim, um grande fidalgo, «antes de passar o rio deitou sortes aos seus feitiços, e saiu-lhe a sorte que se passasse à outra banda que o haviam de matar» (Afonso 1989 [1581]: 138). Os fetiches invocados tinham, sem dúvida, razão. O fidalgo, porém, nem teve tempo para aproveitar o conselho deles, pois «não querendo ele passar, deram os nossos depois nele, e lhe tomaram quarenta mulheres, as principais de sua casa, e lhe mataram alguns homens» (ibid.).

De facto, também os europeus invocavam as suas «divindades»: Santo António (Cadornega 1972 [1680]: II, 209), a Mãe de Deus (ibid.) ou, ainda, o santo guerreiro ibérico Santiago. Tanto assim é que a batalha que se desenvolveu em Dezembro de 1622 entre os portugueses e o exército do Manibumbe, vassalo do rei do Congo, se transformou em guerra entre divindades rivais: «os nossos portugueses, no maior conflito da batalha apelidavam Sãotiago, e os muxicongos* também, o que vendo aqueles inimigos disseram ‘se o vosso é branco, o nosso é preto’; mas o nosso branco pôde mais» (ibid.: I, 105).

A linguagem da violência

O contexto fundamental para o início do «diálogo» luso-africano na área Congo-Angola foi, como já sabemos, o desenvolvimento do comércio atlântico. Para entrarem em contacto com os senhores africanos, os portugueses costumavam «propor» um pacto de vassalagem no qual eles se comprometiam a fornecer ajuda militar, exigindo em troca plena liberdade comercial e o pagamento de tributos. Seus interlocutores nem sempre mostravam grande pressa em aceitar essas condições. Quando rejeitavam a aliança proposta, os portugueses, segundo umas regras «jurídicas» estabelecidas por eles próprios, declaravam-lhes a guerra. Para eles, qualquer guerra, vitoriosa ou não, era sempre uma ocasião para obter escravos em grande número. Muito explícito neste sentido é um comentário do P. Baltasar Afonso (1583: 142): «Não há guerra em que não fiquem os nossos ricos, porque tomam muitas peças, bois, carneiros, sal, azeite, porcos, esteiras».

Além dos seus aspectos militares e económicos, a guerra era também um meio de comunicação, uma «linguagem» que se apoiava nuns códigos mais ou menos institucionalizados. Através de sua maneira de conduzir a guerra, os portugueses procuravam significar sua superioridade e suas ambições de controle total do território. O significante empregado para transmitir essa «mensagem» era a violência indiscriminada:

Aqui aconteceu que indo um pai com um filho fugindo dos nossos, vendo que não podia salvar seu filho, virou-se para os nossos e despediu quantas frechas tinha, até que o mataram sem se querer bulir de um lugar, para o filho se esconder, e o pai acabou e se foi ao inferno. Outro estava dentro em uma casa com duas mulheres e se defendeu de dentro tão fortemente sem se querer render, até lhe porem fogo à casa, e ali arderem todos os três. Pôs isto tanto espanto aos nossos inimigos que todo o Angola havia medo de nós (Afonso 1989 [1581]: 135).

A última frase dessa «estória» acerca do heroísmo de um pai angolano evidencia os aspectos simbólicos – portanto não gratuitos - da violência portuguesa. Agindo com a máxima crueldade, os conquistadores demonstravam de maneira contundente a inutilidade definitiva de toda resistência. Uma outra prática corriqueira dos portugueses, a degolação em massa dos inimigos, é o significante de uma mensagem semelhante. Por volta de 1620, «conforme o costume destes reinos», o tenente geral dos portugueses em Angola, João Mendes de Vasconcellos, convocou os sobas vassalos da Coroa para uma maca* - uma espécie de juízo público baseado na intervenção de testemunhas (bangui*). Tratava-se oficialmente de confirmar a «traição» desses senhores - no caso aliados da rainha Njinga-Nzinga. Segundo Cadornega, o objectivo verdadeiro dessa reunião foi, porém, o de fazer neles ali logo uma grande degolação, em que não lhe ganhou a que fez o Rei Xico em os Abencerragis em a Cidade de Granada, nem tão pouco a que fez o famoso Duque de Alba em Flandes, de pretos em fora, que todos ficaram ali pagando com as cabeças fora sua traição, o que ficou imemorável para os vindouros e todo o gentio destes reinos atónitos e temerosos, que só com rigor e temor é que nós conservamos com este indómito gentio (Cadornega 1972 [1680]: I, 92).

Para reforçar ainda o impacto de sua mensagem, os portugueses nem hesitavam em cometer actos de violência contra os cadáveres de seus adversários mortos em combate: «De outra guerra [os portugueses] trousseram seiscentos e dezanove narizes de cabeças que cortaram, e em outra foram tantos os mortos, que dizem não poderem andar senão por cima deles (Afonso 1989 [1583]: 142).

Os africanos compreendiam, sem dúvida, o sentido deste tipo de mensagens. Segundo as narrativas de seus adversários, eles costumavam responder-lhes com a violência verbal, que incluía expressões de sarcasmo «antropofágico» que já se comentaram no capítulo anterior. No âmbito de uma guerra no rio Kwanza, por exemplo, eles «ali nos deram grandes apupadas, dizendo que ao outro dia nos haviam de comer a todos» (Afonso 1989 [1581]: 137). Cumpre lembrar que nos relatórios europeus dessa época, as alusões ao «canibalismo» africano são frequentes. Veja-se, por exemplo, esse comentário que escreveu Jerónimo Castaño, emissário espanhol em Angola, em 1599: «Com esta já são quatro as vezes que [o rei de Angola pede para fazer a paz], e a última vez que o governador Paulo Dias mandou presentes para ele com alguns portugueses e que ele aceitou a paz, ao chegarem eles [o rei de Angola] os comeu todos» (Imperial y Gomes 1951: 60). Ainda no século passado, um emissário do governo português de Luanda em missão no concelho de Cambambe, Salles Ferreira (1968 [1880]: 193), afirmou numa nota administrativa que dois soldados portugueses «foram levados [pelos nativos] para lhes comerem a carne». Num pós-escrito, porém, ele se viu obrigado a admitir que o «soldado número cento e trinta e um» apareceu – vivo! - depois de ele ter redigido essa nota… Nas fontes coloniais europeias, a alusão ao canibalismo é sempre suspeita, porque serve de pretexto para a chamada «guerra justa» contra os povos que rejeitam o colonialismo. Amiúde, as alusões ao canibalismo africano se baseiam - mais do que na observação da prática da antropofagia - na interpretação inexata e tendenciosa de um discurso de jactância. O governador Fernão de Sousa (1985: 247) cita uma modalidade desse tipo de discurso: «Dom Gregorio Affonço, que el-rey [do Congo] Dom Garcia sospendeu [da função] di mani Bamba [‘senhor de Bamba’], veio no alcance de mani Bamba fogido e escreveu a Bumbe, onde estava, que lho entregassem, e não o fazendo o veria buscar, e que havia de senzar todos os portugueses». Nesta brevíssima narrativa, o verbo senzar aparece como uma citação literal do discurso de Dom Gregorio Affonço, ex-senhor de Bamba. Mas o que significa senzar*? Inexistente em português metropolitano, esse verbo deriva sem dúvida do verbo kikongo sánza, que significa ‘pilhar’, ‘saquear’, ‘destruir’, ‘devastar’7). Suspendido das suas funções pelo rei do Congo, D. Gregorio lança aqui um violento discurso de jactância contra os portugueses, estimando-os sem dúvida responsáveis de sua desgraça. Como sugerimos no capítulo anterior, todo o discurso de jactância oculta, na verdade, a fraqueza da posição de quem o profere e não é destinado, portanto, a ser levado à prática. A esse tipo de discurso também pertence, sem dúvida, a ameaça de «comer» os adversários.

Os exemplos citados sugerem a assimetria do diálogo da violência entre europeus e africanos. A «linguagem» dos europeus é a violência indiscriminada, enquanto os africanos, geralmente, parecem contentar-se com a violência verbal. Oficialmente, a violência portuguesa se justificava pelas necessidades de sua defesa. Alguns africanos, porém, não demoraram em descobrir nela uma motivação bem diferente. Em 1575, o jesuita Garcia Simões escreveu numa carta ao seu superior: «Soubemos que uns manicongos [senhores kongo] disseram a el-rei de Angola, em público terreiro, da parte de el-rei do Congo, como ele por seu irmão o avisava que olhasse por si e soubesse que a vinda do governador [Dias de Novais] e mais portugueses a esta terra era para lhe fazer guerra e finalmente para lhe tomarem o reino» (Simões 1989 [1575]: 104). Segundo Simões, a lúcida advertência que o rei do Congo transmitiu ao seu «irmão», o rei de Angola, assombrou os portugueses residentes em Luanda. O que provocou a surpresa deles – uma surpresa desagradável - foi sem dúvida a atitude insubmissa e a autonomia política que o rei do Congo – aliado deles - demonstrou ao se imiscuir dessa maneira nos seus projectos. Descendente de uns reis que acolheram os portugueses por volta de 1482, o rei do Congo mencionado por Simões conhecia bem, quer por tradição familiar quer por experiência própria, a prática e as intenções dos intrusos. Já o rei Dom Afonso I (Mbemba a Nzinga), nas primeiras décadas do século XVI, tinha percebido que os agentes políticos ou eclesiásticos de Portugal, apesar de se apresentarem como protectores do reino, se moviam como se fossem os donos da terra e de sua gente. Tinha comprendido também que, submetendo-se aos brancos, os senhores africanos perdiam rapidamente o respeito de seus súditos. Em uma carta de 1514, ele comunicou ao rei português o seguinte:

[…] nós vendo o seu devassamento [dos padres portugueses] lhes rogámos por amor de Nosso Senhor Jesus Cristo que se comprassem algumas peças que fossem escravos, e que não comprassem nenhuma mulher para não darem mau exemplo nem nos fazerem ficar em mentira com nossa gente do que lhe tínhamos pregado, e sem embargo disto começaram a encher a casa de putas, em tal maneira que o padre Pedro Fernandes emprenhou uma mulher em sua casa e pariu um mulato, pelo qual os moços que ensinava e tinha em casa lhe fugiram e iam contar a seus pais e mais parentes, e todos começaram a zombar e escarnecer de nós, dizendo que tudo era mentira o que lhes tínhamos dito, e que os homens brancos nos enganavam, ao qual nós então tomamos muito nojo e não sabíamos que lhe responder (D. Afonso 1992 [1514]: 29)

Embora assinassem numerosas alianças com os portugueses, os senhores da África central conheciam, pois, os graves riscos que corriam ao aceitarem a «protecção» dos brancos. Em virtude de interesses amiúde contraditórios, a «resposta» deles, porém, não foi sempre nítida. A «linguagem» que eles costumavam usar nas suas negociações com os portugueses combinava, geralmente, uma retórica da submissão com diversas práticas de resistência activa e passiva.

Linguagens diplomáticas

No contexto angolano da primeira metade do século XVII, a troca de cartas diplomáticas domina a hierarquia política dos meios de comunicação que são utilizados no «diálogo» entre o governador português e seus interlocutores africanos - aliados ou adversários. Ora bem, a correspondência entre «vassalos» africanos e europeus da coroa portuguesa não é senão uma espécie de anexo periférico de um circuito de comunicação cujo centro se encontrava na metrópole. As mensagens que se introduziam nesse circuito levavam, sempre, a marca da linguagem feudal em uso no império hispano-português. Baseada na escrita e numa retórica de tradição europeia, a comunicação epistolar era, em Angola, radicalmente alheia à tradição cultural local. Redigindo ou ditando uma carta, os senhores africanos se inscreviam num sistema de comunicação totalmente estrangeiro, reconhecendo assim, implicitamente, sua submissão à coroa europeia. Numa carta que respeitasse as regras vigentes neste circuito feudal, não cabia, é evidente, a expressão de um pensamento africano autónomo. Quando o governador, nas suas missivas, oferecia a protecção do rei aos senhores aliados e ditava suas condições, estes, caso respondessem pelo mesmo meio, só podiam manifestar a aceitação da vassalagem proposta. Única «dissidência» admitida eram as queixas ou os protestos que não transgredissem as regras do jogo feudal. Constatamos, pois, que o meio de comunicação – no caso a correspondência diplomática – determinava em grande medida o conteúdo da mensagem. A famosa teoria de McLuhan (1967) – «o meio é a messagem» - recebe neste caso uma confirmação evidente. Caso quisessem significar a recusa do sistema da dominação portuguesa, os senhores africanos, como veremos, lançariam mão de outros meios: oralidade, gestualidade, guerra.

Uma carta de Angola Aire, rei fantoche do Ndongo que tinha sido eleito por uma junta de «eleitores» autóctones sob a pressão e na presença dos portugueses (Outubro de 1626), oferece um bom exemplo do que um senhor africano devia ou podia dizer numa carta diplomática dirigida a uma autoridade portuguesa. Nas palavras de Fernão de Sousa, seu destinatário, o «rei»

[…] me dava as graças de o fazer rei, desculpando-se de me não mandar o que me devia por isso, o que faria a seu tempo por não estar ainda com posses para isso; mandou-me pedir os negros forros que andavam fugidos pera povoarem aquele reino, e descarregou-se de não abrir logo feira por não estar ainda pera isso, e por se dizer que o jaga Caza com Ginga Ambande estava entre Zungui Amoque e Andalla Quesua fazendo danos e ameaçando com guerra que pedia difensão e segurança de vida; pediu-me um chapéu de sol e um chapéu pera sua pessoa, como o traz el-rei de Congo, uns pandeiros e umas campanhas, uma alcatifa e um cobertor de seda e papel, e mandou-me uma negra de peito caído, um barbado e quatro negros (Sousa 1985: 260).

Bom vassalo, o novo «rei» Angola Aire mostra-se agradecido e disposto a pagar o preço que custa a «protecção» portuguesa. Lendo bem sua argumentação, se percebe, porém, que ele, fora de sua boa vontade, não oferece nada de muito concreto aos portugueses. Alegando a difícil situação político-militar do reino, Angola Aire rejeita, embora sem dizê-lo explicitamente, as feiras de escravos e os tributos que os portugueses esperavam dele. Sua carta é um ardiloso exercício diplomático que consiste em fingir a submissão para não dever praticá-la. Como consta das últimas palavras do resumo do governador, o rei fantoche tinha completado sua epístola com uma outra mensagem, «inscrita» desta vez na mediocridade do presente que oferecia ao governador. Sem infringir as regras da comunicação oficial, escrita, a linguagem simbólica que constitui a entrega de um presente lhe permitia exprimir, por este meio, os limites de sua boa vontade. O valor escasso do seu presente - uma «negra de peito caído», um «barbudo» e quatro outros escravos – «dizia» claramente, com efeito, que o «rei» não ia ceder à pressão escravista do governador.

No seu relatório, o governador Fernão de Sousa transcreve literalmente uma carta que a rainha Njinga (Nzinga) mandou, a 3 de Março de 1625, ao capitão-mor de Angola, Bento Banha Cardoso. Apesar do «ódio que tem aos portugueses» (Sousa 1985: 227), ela também sabia respeitar as regras da correspondência diplomática:

Na alma estimo o vir Vossa Mercê a essa fortaleza da Embaca pera que como a pai dar-lhe conta [d]e como mandando eu umas peças à feira de Bumba Aquiçanzo, saiu Aire com guerra, e me salteou umas trinta peças, das quais mandando eu tomar satisfaçaõ como a meu vassalo, acertou a minha guerra encontrar com uns nove homens que estavam com o Tigre [Estêvão de Seixas Tigre] na terra, e botando estes nove a vir encontrar-se com a minha guerra fora da Pedra [de Pungo Andongo], quis Deus que dos meus fossem vencidos, donde me trouxeram seis vivos, di que me pesou muito de que na Pedra de Aire estivessem portugueses com guerra de socorro a Aire; aos quais faço muito bom agasalhado por serem vassalos d’el-rei de Espanha, a que reconheço obediência como christã que sou (Sousa 1985: 244-245).

Esta carta é um dos melhores exemplos fornecidos pelo relatório de Fernão de Sousa para compreendermos até que ponto o meio chega a determinar, realmente, a forma e o conteúdo de uma mensagem. Através das suas ofensivas contra os portugueses, a rainha – que aqueles, intrusos de verdade, ousavam qualificar de «intrusa no reino» (Sousa 1985: 229) – já tinha «dito», na linguagem nítida da guerra, que ela não toleraria a penetração europeia nas terras dela e que dispunha, ademais, de uma capacidade militar suficiente para defendê-las. Uma vez transformada em autora de uma carta diplomática dirigida ao chefe de seus adversários militares, «D. Ana de Sousa» apresenta os acontecimentos segundo as normas da comunicação epistolar com um superior. Se levarmos a sério o que ela escreve, ela jamais teve a intenção de atacar os portugueses. Ela só mandou uma expedição punitiva contra um seu soba – o rei fantoche dos portugueses - que lhe tinha «salteado» alguns escravos. Fingindo ignorar as relações privilegiadas que existiam entre Aire (Aquiloange) 8e os portugueses, ela alega que nem podia imaginar que as tropas dela iam encontrar-se com as do governador e que, além disso, ela não fez nada para vencer os portugueses: a vitória da tropa dela ocorreu pela «vontade de Deus».

Embora a argumentação da rainha soe a ironia, formalmente, ela não deixa de «demonstrar» a sua submissão à coroa hispano-lusitana. Ao longo de toda sua contenda com os portugueses, a rainha sempre mostrou que sabia alternar os meios de comunicação e variar assim, também, a sua mensagem. Simplificando muito, o meio da escrita (diplomática) lhe servia para declarar sua submissão, enquanto a «linguagem» prática da guerra lhe permitia afirmar sua vontade de resistência.

Em Angola, o transporte da correspondência diplomática se confiava aos macunzes*, «embaixadores» dos senhores autóctones9. Os macunzes eram também responsáveis pela transmissão dos recados orais. Na corte do governador português, esses recados, recitados pelos «embaixadores» em língua bantu, exigiam a ajuda de um tradutor para sua interpretação. Em que medida ou quando, os senhores africanos recorriam aos macunzes para transmitir suas mensagens às autoridades portuguesas? Os sobas menores se encontravam, sem dúvida, na impossibilidade prática – inexistência de escreventes, de tradutores - de se inscrever no sistema da comunicação epistolar. Os «reis» amigos dos portugueses, como o rei do Congo ou o rei fantoche do Ndongo, Angola Aire, preferiam, aparentemente, lançar mão do meio escrito, uma maneira de manifestar sua vontade – real ou fingida – de assimilar-se, em termos culturais e políticos, aos portugueses. A rainha Njinga-Nzinga, como já se viu, alternava sistematicamente cartas e recados orais.

monumento dedicado à Rainha Ginga em Luandamonumento dedicado à Rainha Ginga em Luanda

No dia 17 de Dezembro de 1627, o capitão Aluaro Roiz de Sousa comunica a Fernão de Sousa a chegada de dois macunzes da rainha Njinga-Nzinga com um recado oral. Convém saber que no mês anterior, o governador tinha declarado à rainha a guerra a fogo e a sangue (Sousa 1985: 294). Nas palavras do autor do relatório,

[…] o recado continha mandalos pera em nome dela tomarem juramento da terra, a que chamaõ quelumbo* [‘ordálio’], em prova que o sucesso que houve nos Quezos das mortes e prisões de pombeiros* [‘caçadores de escravos’] e tomadia de peças e fazendas se não fizeram por ordem sua, e que caindo os ditos dous negros no juramento, ela era contente que lhe cortassem a cabeça, e não caindo no juramento se entenderia que não teve culpa no caso, porque não corria com os Quezos, nem os souas* da Lucala com ela, nem lhes fizera guerra, e que não tratava de mais que de ser peça e filha minha, e de lhe dar licença pera tungar10 [‘instalar-se’] na ilha das imbillas* [‘sepultura’] onde morreu seu irmão, e que fosse mui embora rei Angola Aire, porque se queria quietar por estar cansada de andar pelos matos (Sousa 1985: 296/7).

Tal como foi resumido pelo governador, o conteúdo deste recado não oferece, à primeira vista, elementos susceptíveis de indicar que Njinga-Nzinga, ao lançar mão da comunicação oral tradicional, pretendesse atingir outros objectivos do que quando se servia, como no exemplo anterior, do meio da correspondência diplomática. Sua maneira de justificar-se, de recusar sua responsabilidade nos «crimes» que lhe atribuem os portugueses parece perfeitamente análoga àquela que emprega nas suas cartas. Chama a atenção, no entanto, a expressão de seu desejo de tungar na ilha onde morreu seu irmão. Ela manifesta assim sua vontade de honrar a memória de seu irmão morto.

A importância que tem entre os bantu – e os seus longínquos descendentes nas Américas - o culto aos mortos é bem conhecida. Um dito kongo recolhido por Wing (1921: 285) no começo do século XX parece justificar bem o desejo formulado pela rainha: Ga k’akala nkulu aku ko, k’ulendi tunga ko (‘Onde não morar teu ancestral, tu não podes tungar’). Já sabemos – veja-se no capítulo anterior - que ela nunca se separava de um «cofre a que chamam na sua língua mosete11» (Cadornega 1972 [1680]: II, 167), receptáculo semelhante - quanto à sua função - às nganga dos paleros cubanos, no qual a rainha «encerrava dentro os ossos de seus antepassados» (ibid.). Como se desprende da Descrição histórica de Cavazzi, o culto que Njinga-Nzinga prestava à memória de Ngola Mbandi, o seu irmão defunto, continuava, trinta anos depois da negociação com Fernão de Sousa, sendo um problema sério nas relações entre a rainha – oficialmente cristã – e os europeus presentes no seu território (cf. Lienhard 1999). Numa carta diplomática, a expressão de seu desejo de seguir honrando a memória de seu irmão teria sido percebida não só como uma falta de respeito pela religião cristã que ela pretendia professar, mas também como o indício de uma vontade persistente de resistência ou autonomia cultural e religiosa. No recado oral da rainha, a mesma expressão, inserta no seu próprio contexto linguístico e cultural, não parece ter escandalizado o governador português. A tradução mais ou menos arbitrária desse recado oral pelo governador limita, obviamente, as possibilidades de análise de sua linguagem. Percebe-se, porém, o eco de uma vivacidade de expressão que não se costuma encontrar numa carta diplomática. Além da maneira bem categórica de rejeitar as acusações dos portugueses, uma frase como «que fosse mui embora rei Angola Aire», vestígio escrito de uma exclamação oral, deixa ainda imaginar o tom no qual foi proferida a mensagem original. A comunicação oral permite, portanto, a transgressão dos tabus que impõe a correspondência diplomática.

Talvez seja na encenação proposta por Nzinga para a recepção de sua mensagem oral que encontramos os elementos mais interessantes para apreendermos a especificidade da comunicação oral. Em virtude de sua natureza diplomática, a correspondência epistolar não implica, certamente, a expressão da verdade. No sistema de comunicação africano, ao contrário, uma espécie de «ética da oralidade» garante, em princípio, a sinceridade da pessoa que fala e a veracidade da mensagem transmitida. Como veremos, essa veracidade, ademais, podia ser controlada mediante uma prova ritual. Para o governador se certificar da sinceridade dela, a rainha propõe a aplicação do quelumbo12 - ordálio ou «juízo de Deus» - a seus macunzes. Caso eles morressem, «ela era contente que lhe cortassem a cabeça». Segundo Cadornega (para quem quelumbo é sinónimo de bulungo*), os gangas* encarregados de administrar o ordálio «fazem cair naquele diabólico juramento a quantos quer» (Cadornega 1972 [1680]: III, 322). Baseada pois numa prática autóctone, pagã, a prova proposta por Nzinga para acertar a veracidade de sua mensagem demonstra que a fé cristã que ela professava em suas cartas era só «diplomática». Ora bem, a fé cristã «autêntica» dos portugueses impedia que eles aceitassem, para conhecerem a verdade, a encenação pouco ortodoxa, «diabólica», que lhes sugeria a sua adversária. «Cristã», a «prova» que eles escolheram se inscrevia nos padrões de sua própria cultura: nas práticas da Inquisição. Como os réus dos tribunais do Santo Ofício, com efeito, os macunzes de Njinga-Nzinga foram considerados, de antemão, «culpados». O primeiro a pagar suas «culpas» foi o mani lumbo13 da rainha que acompanhava os dois macunzes já mencionados. Em uma junta, os portugueses decidiram que «não confessando o obrigassem com tormento pera declarar onde [a rainha] estava, e que [isso] se fizesse por portugueses pera que os negros o não digam» (Sousa 1985: 296). Numa tentativa desesperada de escapar à morte, o mani lumbo ofereceu uma «confissão» aparentemente completa. Nem por isso ele conseguiu salvar-se. Os lusitanos, declarando-o culpado de espionagem, sentenciaram-no à morte. A decisão da junta foi executada religiosamente.

Como os africanos, os portugueses dispunham, pois, de um seu quilumbo ou ordálio, quer dizer de um método - arbitrário - para avaliarem a veracidade das declarações de seus adversários. A diferença entre o ordálio africano e o europeu revela uma atitude radicalmente diferente face à oralidade. Positivo, o método africano se baseia na sacralização da palavra oral. Encenada numa situação real, ela é considerada como «verdadeira» por definição. Para os europeus, ao contrário, o discurso oral é essencialmente enganoso. Na perspectiva dos portugueses, só a violência permitia, diante de uma adversária tão «falsa» como a rainha Njinga-Nzinga, fazer surgir a «verdade».

Retóricas africanas: nongonongo

Na medida em que podemos ter acesso a elas, as mensagens orais que intercambiavam Fernão de Sousa e seus interlocutores africanos parecem apoiar-se em uma linguagem sóbria e isenta de artifícios. Não se deve esquecer, porém, que na sua transcrição pelo governador se perde a maioria de suas características linguísticas e poéticas. Praticantes exclusivos de uma língua bantu, os makunzes se serviam, com certeza, de uma retórica bem diferente daquela que lhes atribui o autor do «Extenso relatório». A não ser pelo uso de um léxico africanizado, Fernão de Sousa não mostra nenhuma sensibilidade particular pela cultura linguística que o rodeia. Não se encontra, na sua narrativa, exemplo nenhum de um enunciado completo em língua africana. Só nalguns trechos de seu relatório se alça um pouco o véu que cobre nele as formas de expressão verbal de seus adversários. Como já sabemos pela carta que Njinga-Nzinga rainha enviou ao governador em 3 de Março de 1625, ela tinha capturado seis portugueses. Num recado transmitido pelo seu mani lumbo ao capitão do presídio de Embaca, Sebastião Dias, a rainha condicionou a devolução deles a várias exigências, nomeadamente a supressão da ajuda militar que os portugueses forneciam, para combatê-la, a Aire Aquiloange, súbdito dela. Ao não aceitar o capitão as condições dela, a rainha mandou seu moenho14 - emissário privado - para reiterar suas exigências. O diálogo do confidente da rainha com o capitão se desenvolveu, segundo o governador, da maneira seguinte:

[…] o moenho disse o mesmo no recado que deu da Gingua [sic] pola comparação seguinte, ‘que houvera um chuveiro grande e que alcançara umas galinhas e as desempenara, e se acolheram a uma casa e que estavam nela pera se empenarem’, e que respondeu Sebastião Dias que ‘igual fora mandar ela os portugueses ao Governador, pois dezia que sentia levarem-nos lá e não retê-los em arreféns de Dungo Amoiza e Aire Aquiloange, porque podia armarse uma trovoada e cair um raio sobre a casa onde estavam as galinhas pera se empenar, e queimá-la’ (Sousa 1985: 243).

Uma missiva que os seis portugueses cativos mandaram ao capitão permite entender melhor o objecto desse diálogo enigmático. Eles dizem que a liberdade deles «não havia de custar mais que a entrega de Dungo Amoíza e embarcarem a Aire» (ibid.). A rainha pretendia, com efeito, trocar seus prisioneiros europeus contra um soba amigo cativo dos portugueses e obter deles, ao mesmo tempo, o afastamento de Aire Aquiloange, protegido dos portugueses. Por meio de sua «comparação» irónica, o moenho enfatizava que a rainha dispunha de toda a paciência necessária para esperar que os portugueses aceitassem as condições dela. O seu interlocutor, um soldado português familiarizado com este tipo de intercâmbios verbais, lhe respondeu da mesma maneira, evocando os riscos que corria a rainha caso não cedesse às pressões dos portugueses.

Adivinhação em cascata, o intercâmbio de ironias e sarcasmos entre o moenho da rainha e o capitão português se inscreve na tradição bantu do «diálogo enigmático». Cadornega, na sua História, se refere a esta tradição: «Este gentio da província de Quissama (…) fala oculto e por apodos, metáforas, e assim, quem sabe o seu modo e é previsto na sua língua, lhe fala e responde pelo mesmo estilo, com que os fazem dar com um pé no outro, dando, como dizemos [sic], com quem lhe sabe entender suas invenções e maranhas» (Cadornega 1972 [1680]: II, 344). A retórica «metafórica» que Cadornega atribui ao «gentio de Quissama» é muito comum na área bantu. Entre provérbios, adivinhanças, apólogos e troças, ela propicia uma ampla gama de pequenos géneros «literários». Segundo Chatelain, um dos nomes para designar a adivinha em kimbundu, língua mais provável da troca de perfídias verbais entre o emissário da rainha e o capitão português, é nongonongo* (Chatelain 1888-89: 143). Em kikongo, o termo nóngo* remete para um «dito picante», uma maneira de zombar – por apólogos – do interlocutor. Já sabemos – veja-se no capítulo precedente - que os paleros cubanos costumam praticar, nas suas sessões rituais, o diálogo irónico ou sarcástico. No «provérbio» kimbundu seguinte, recolhido por Chatelain (1888-89: 140), se capta bem o sarcasmo que oculta, amiúde, a retórica enigmática: Uanienga xitu, nguma ia jimbua (‘Quem leva carne, (é) inimigo dos cães’). Este dito serve para criticar uma pessoa cujo comportamento ostentatório suscita a reprovação social. Ora bem, se esta frase é pronunciada depois de essa pessoa já ter sofrido as consequências negativas de seu comportamento, quer dizer a dentada do cão, ela adopta um sentido claramente sarcástico. Nos relatórios seiscentistas dos portugueses, não é frequente encontrar alusões às formas retóricas empregadas pelos africanos nos seus intercâmbios verbais com os europeus. Geralmente, eles reduzem o discurso africano aos seus aspectos puramente denotativos. A troca de «amabilidades» entre o moenho de Njinga-Nzinga e o capitão português é, portanto, um momento luminoso do relatório de Fernão de Sousa, um trecho que permite imaginar melhor o que deve ter sido a realidade do diálogo verbal entre conquistadores e conquistados. Ora bem, uma ironia semelhante àquela que ouvimos no nongo do dignitário da rainha pode detectar-se, retrospectivamente, em várias das mensagens africanas transcritas pelo governador no seu «diário». Assim, se voltarmos a ler a carta na qual a rainha Njinga-Nzinga exprime sua «comiseração» com os seis portugueses que tiveram a desgraça de cair na cilada que a tropa dela lhes preparou (3 de Março de 1625), não deixaremos de perceber, apesar de sua linguagem perfeitamente diplomática, a perfídia verbal que oculta. A inocência proclamada e o pesar fingido pelo castigo «divino» que sofreram os seis portugueses - essas «galinhas desempenadas» que mencionaria o moenho no seu recado oral -, encobrem mal, na verdade, a expressão do mais profundo sarcasmo.

Retóricas africanas: milonga

O «jornal» de Fernão de Sousa contém numerosos exemplos de uma outra prática discursiva africana: a milonga15. Chatelain (1888-89: 132) explica que mulonga (pl. milonga), em kimbundu, é «palavra (boa ou má), disputa». No texto do governador, milonga aparece amiúde como um (quase) sinónimo de «recado». Às vezes, porém, este conceito remete para um uso mais específico da fala. É graças às suas milongas, segundo Fernão de Sousa, que Njinga-Nzinga consegue que populações inteiras fujam para o território controlado por ela:

[Njinga-Nzinga] foi contemporizando comigo com recados que me mandava, e da volta persuadiam seus macunzes nista cidade e polos souas por onde passavam nossos escravos e gente de guerra preta, a que chamam quimbares*, que se fossem para ela, e que lhe daria terras em que lavrassem e vivessem, porque melhor lhes era serem senhores no seu natural que cativos nossos; e de maneira os obrigou com estes recados, a que eles chamam milongas, que começaram fugir senzalas* [povoados] inteiras (Sousa 1985: 227).

No relatório de Fernão de Sousa, milonga parece designar um discurso de persuasão baseado em promessas ou ameaças. Do ponto de vista do governador, trata-se quase sempre de um discurso enganoso. Os africanos não eram os únicos que sabiam empregá-lo. Como se vê no trecho reproduzido a seguir, os portugueses, também, o praticavam com sucesso:

‘Vestir’ é um modo que se introduziu pera pedir peças aos souas pela maneira seguinte: mandavam os governadores um macunze - que responde a embaixador - com cantidade de panos de seda com suas empondas* [panos] e com farregoulos*, que é o vestido dos negros, e a cada soua dezia que era macunze do governador e que ia buscar a loanda* [tributo], e como eram sempre pessoas doutas nesta negociação despiam o melhor que podiam a cada soua, obrigando-os com práticas que chamam milongas a darem pera o governador e o macunze, língua e companheiros, as peças que não podiam dar (Sousa 1985: 279).

A milonga é, portanto, um discurso pelo meio do qual se procura persuadir o interlocutor de fazer ou de dar o que, em princípio, ele não está disposto a fazer ou a dar. No «jornal» de Fernão de Sousa, a prática da milonga se combina amiúde com recursos gestuais ou teatrais. Tanto os africanos quanto os portugueses sabiam utilizar a gestualidade para fins de persuasão.

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Linguagens gestuais

A gestualidade, aliás, parece desempenhar um papel capital no «diálogo» luso-africano. Alguma vez, lembrando-lhe os seus deveres de vassalo do rei português, o capitão-mor tenta convencer o rei fantoche Angola Aire de apoiar a guerra contra a rainha Njinga-Nzinga (Sousa 1985: 328). Bem consciente de «lhe não competir o reino» (ibid.), o «rei» se recusa a continuar essa mascarada. Para responder ao capitão-mor, ele encena uma curiosa sequência mímica:

[…] respondera que ele e Ginga eram filhos do capitão e que bem podiam metê-la no reino, que ele se iria pera as Pedras ou pera o Lembo e que ali estava, que lhe podiam cortar a cabeça, e <que> se assentara no chão e se alevantara e tomara uma palha na mão e a entregara ao intérprete, dando a entender nisso que com ela entregava o reino, e virando as costas descortesmente se fora sem dar aviamento aos carregadores, que lhe pediam pera a bagagem da guerra que em seu favor se fazia, a qual pedira, e negava pedi-la (Sousa 1985: 328).

Note-se que é no momento exacto de romper com seu papel de rei fantoche ao serviço dos portugueses que Angola Aire adopta um estilo de comunicação inspirado, sem dúvida, na tradição «autóctone». É como para expressar, assim, sua retirada do mundo dos putos* (‘portugueses’). Esses, aliás, não demoraram a apreender o sentido de sua mensagem gestual. De toda maneira, o governador - veja-se sua carta do 25 de Agosto de 1629 (Heintze 1985: II, 230-231) - já tinha escolhido a pessoa que, na sua opinião, teria a capacidade de representar o papel de rei ou rainha de Angola: D. Maria Cambo, irmã de Njinga-Nzinga e de Ngola Mbandi, o antigo rei do Ndongo.

De facto, os portugueses aprenderam a servir-se dos códigos gestuais em sua vantagem. Assim, realizando um simulacro do ritual próprio do governador, alguns deles conseguiam obter o que só o governador em pessoa tinha o direito de exigir:

Outras vezes se ofereciam pessoas aos governadores a fazer estas missões por certa cantidade de peças por contrato, e alguns eram tão devotos que se ofereciam fazê-lo à sua custa. O que fazia a viagem por qualquer destes modos se apercebia de sedas e doutras cousas, ia polas províncias, e em cada soua a que chegava se assentava em uma cadeira d’espaldas e se representava governador, e intimidando o soua o obrigava, se era poderoso, a lhe dar polo menos dez peças, e sendo menor a cinco, afora as que dava pera a companhia e mantimentos e agasalhado necessário, em que às vezes entravam mulheres e filhos dos souas, com grande desacato seu que eles muito sentiam. Isto mesmo faziam e fazem os capitães dos presídios mandando macunzes polos souas à imitação dos governadores (Sousa 1985: 279-280).

Nestes casos, a utilização fraudulenta dos códigos gestuais pelos aventureiros portugueses serve para produzir a ilusão da presença do governador. Fernão de Sousa, evidentemente, denuncia esse tipo de simulacros. Independentemente disso, as encenações realizadas pelo próprio governador não eram menos espectaculares do que as dos seus subalternos. Grande «comunicador», Fernão de Sousa sabia combinar, com grande destreza, a escrita diplomática, a gestualidade e a linguagem da violência. Na sua resposta a uma carta que lhe mandou o capitão-mor em 16 de Fevereiro de 1629, Fernão de Sousa (1985: 327) lhe deu as ordens seguintes: «[…] se os souas presos não quisessem avassalar-se […] mandasse <e> que a cada um deles pusesse nos peitos duas marcas minhas e os soltasse pelo pouco que valiam, e ser de mais importância ficarem marcados por peças minhas pera o que ao diante sucedesse». Desta maneira, a «presença» de Fernão de Sousa ficaria inscrita e «encenada» para sempre nos corpos dos sobas humilhados, obrigados doravante a se tornarem actores-propagandistas involuntárias de sua política. Ao marcar com o seu selo os corpos de seus adversários, o governador reitera um uso particularmente perverso da escrita, que também se deu em outras áreas colonizadas pelos europeus. Um cronista da colonização do México escreveu, por volta de 1541, que os espanhóis «davam-lhes [aos camponeses indígenas] por aqueles rostos tantos letreiros além do carimbo principal do rei que toda a face traziam escrita, porque de quantos fora[m] comprado[s] e vendido[s] levava[m] letreiros» (Motolinía 1985: parágrafo 50). Imitação da marcação do gado, esta prática exprime, melhor que as palavras, a mentalidade dos escravistas europeus na África ou na América.

Rumores

Em Angola, a comunicação entre os africanos e os portugueses nem sempre passava pelos circuitos «oficiais» cujos mecanismos acabamos de comentar. O relatório de Fernão de Sousa apresenta, com efeito, numerosos casos de comunicação indirecta ou «oblíqua». Refiro-me, sobretudo, às mensagens que os portugueses recebiam através dos seus prisioneiros e aos rumores que chegavam constantemente a seus ouvidos. Essas «mensagens indirectas» contêm pormenores – por exemplo sobre a vida que se desenvolve nos quilombos africanos - que nunca figuram nas mensagens oficiais dos sobas ou da própria rainha. Como é que se realiza a transmissão da mensagem nesses casos de comunicação aparentemente «involuntária»? Quem deseja comunicar-se com quem, e com que intenção? O «jornal» de Fernão de Sousa não fornece uma resposta explícita a estas perguntas. Quais são, por exemplo, os interlocutores verdadeiros na história que segue?

[…] e disse o dito negro [de Pero de Sousa Sotomayor] que [a rainha] não tinha gente de sustância, e se metera logo em uma casa, muito triste e enfadada polo caso acontecido, e não falava com ninguém, e por isso mandara os macunzes tomar o quelumbo, que é o juramento da terra, em prova que não fizera nem mandara fazer o sucedido (Sousa 1985: 299).

O governador resume aqui o depoimento «espontâneo» de um africano anónimo capturado pelos portugueses. Curiosamente, o testemunho do «negro» lembra – para não dizer retoma - os argumentos que a própria Njinga-Nzinga utilizava para demonstrar, diante dos portugueses, a sua sinceridade. Trata-se, então, de um depoimento «falso», directamente inspirado nas instruções da rainha? Vejamos. O «Extenso relatório» do governador sugere constantemente o carisma, o ascendente que Njinga-Nzinga exercia não só sobre os seus súbditos, como também sobre amplos sectores da população africana teoricamente controlada pelos portugueses. Não devia custar-lhe muito, portanto, organizar e controlar a circulação de determinados «rumores». O depoimento do escravo anónimo que aparece no «jornal» do governador bem pode corresponder, então, a um rumor espalhado deliberadamente pela rainha para reforçar sua credibilidade entre os portugueses. O trecho seguinte do «diário» do governador evoca uma outra história de «rumores»:

Sabendo a Gingua [sic] da vinda de Aire [Aquiloange] ao presídio, descubriu o humor com que estava e convocou todos os souas da Coanza pera lhe dar guerra. E fingiu que os souas lhe disseram a ela que ele [Aire] havia ido ao presídio e que da volta se intitulara rei e que por isso lhe queriam fazer guerra e lhe não queriam obedecer, e [que] lhe pediam a ela que o houvesse por bem e que lhe[s] desse cabeça que os governasse na guerra, e que a Gingua respondera que ela não [sic] mandava a guerra, mas pois a queriam fazer, lhe daria a cabeça, que foi um macota* seu dos de sua pessoa (Sousa 1985: 240).

Aos olhos do narrador, o governador, o debate entre a rainha e os sobas do Kwanza sobre a eventualidade de uma guerra contra Aquiloange Aire é pura «ficção»: é mais uma história inventada pela rainha para fazer crer que só pela pressão dos sobas ela aceitou preparar essa guerra. Ora bem, quem é que transmitiu essa «ficção» ao governador ou ao seu representante na zona de guerra, o capitão-mor Bento Banha Cardoso? A não ser que o próprio governador tenha inventado toda essa história, o que não é provável, trata-se sem dúvida, mais uma vez, de um «rumor» espalhado por Njinga-Nzinga para convencer os portugueses de sua vontade de chegar a um acordo com eles. Um rumor que talvez não seja pura «ficção», porque a atitude que a rainha, segundo o governador, atribui aos sobas, não tem nada de inverosímil. Na verdade, o próprio governador apresenta um grande número de testemunhos formais que atestam a atitude anti-portuguesa de certos senhores africanos. Assim, ele aponta que em Junho de 1629, o soba Andala Quionza do sobado de Andala Queçuba nem aceitou receber os «embaixadores» do capitão-mor português. Voltando de sua missão, os macunzes declararam ao capitão-mor em presença de várias testemunhas que indo às terras do dito Andala Queçuba chegaram à libata* (que é casaria) de um macota* (que é conselheiro) que está na fronteira das terras, [este] os não consentira passassem pera darem a milonga que levavam pera seu senhor Andala Queçuba e lhes disse lha dessem pera lha levarem de Angola, que do capitaõ [governador] que o não conheciam nem queriam nada com ele (Sousa 1985: 337).

A atitude deste makota – que pelos vistos executa ordens recebidas de seu soba - pode ser qualificada de «resistência passiva». Ao lado de atitudes deste tipo, também se encontram, no relatório de Fernão de Sousa, formas de resistência muito mais radicais. Um discurso particularmente virulento contra os intrusos é o do soba Bujlla ou (A)mbuyla. Os portugueses, considerando que seu território pertencia ao «reino de Angola», exigiam a sua submissão. Mbuyla, porém,  afirmava ser vassalo do rei do Congo (Sousa 1985: 258-259, 269). Esse litígio tomou rapidamente a aparência de um conflito «internacional», porque o rei do Congo, que apoiava Mbuyla, era naquela altura aliado dos holandeses, concorrentes dos portugueses tanto em África quanto no Brasil. Perante a gravidade da situação, Fernão de Sousa não hesitou em ameaçar o rei do Congo, lembrando-lhe em bom português africanizado que «mocanos16 entre os reis se determinavam polas armas» (Sousa 1985: 259). A transcrição que o governador oferece do discurso de Mbuyla é a seguinte:

Bujlla criou mais soberba e disse que Bento Banha [capitão-mor português] havia de ser seu macota e que [ele, Mbuyla] havia de pôr governador na Loanda, e começou a inquietar os souas vassalos persuadindo-os que se levantassem, que ele era mani Puto* [senhor ou rei de Portugal] e sua molher mani Congo [senhora ou rainha do Congo], e mandou a Mothemo [senhorio independente dos portugueses] recado aos portuguezes mandassem ouvir a resposta d’el-rei de Congo, e era que desse terras aos souas Cabonda e Cheque, porque eram seus vassalos, e logo começou a recolher escravos nossos com um filho de Gabriel de Moraez pardo, dizendo que ele havia de ser governador nesta cidade, e ameaçando Caonga Grande e aos souas vezinhos com guerra (Sousa 1985: 340-341).

Onde é que o governador ouviu o discurso incendiário que atribui a Mbuyla? Não havendo nenhuma indicação de fonte, devemos supor que se baseia em rumores que o soba difundia para criar confusão no território «controlado» pelos portugueses. A não ser que se trate de rumores falsos, Mbuyla, aparentemente, estava procurando radicalizar a luta contra os portugueses. Ao contrário da rainha Njinga-Nzinga, cuja guerra intermitente contra os portugueses era basicamente defensiva, Mbuyla parece ter chegado a formular as bases ideológicas de um movimento anti-colonial de tipo messiânico (cf. Queiroz 1977). A partir de certos dados do presente e do passado regional, ele constrói a utopia – centrada na sua própria pessoa - de uma ordem política nova. Substituindo-se ao monarca português, Mbuyla se declara mani Puto («senhor de Portugal») e atribui a sua mulher o título de mani Congo («senhora do Congo»). Um mestiço, filho de Gabriel de Moraez, exercerá a função de governador de Angola. O capitão-mor português receberá o privilégio de aconselhar, como makota, o ex-soba transformado em «imperador». Não se trata, obviamente, de um verdadeiro projecto político. Inversão imaginária da situação real, a utopia espalhada enquanto rumor por Mbuyla vem a ser um brilhante exemplo de uma prática da jactância verbal que atribui à linguagem a capacidade de performar o que não se tem a capacidade prática de realizar. O discurso messiânico que o governador atribui a Mbuyla é sem dúvida a forma mais extrema de uma «dissidência» que parece ter sido, nessa altura, relativamente geral entre os sobas «vassalos» dos portugueses. Note-se ainda que foi nos territórios do sobado de (A)mbuyla que o rei do Congo, António, tentara salvar, umas quatro décadas depois, a independência de seu estado (25 de Outubro de 1665). Com sua derrota e morte acabou definitivamente o Kongo antigo (Balandier 1965: 64-65).

O discurso da fuga

Neste ensaio dedicado ao «diálogo» ou à «guerra de discursos» entre africanos e europeus que provocou, nos séculos XVI-XVII, a penetração do comércio escravista na África central, privilegiei até agora a comunicação oficial ou oficiosa entre representantes da coroa lusitana e senhores africanos. Infelizmente, as crónicas e os relatórios portugueses oferecem poucos elementos para conhecermos com alguma precisão o «discurso» que adoptaram, neste contexto, os africanos anónimos. A não ser, ocasionalmente, enquanto testemunhas involuntárias de acontecimentos sobre os quais eles não têm influência nenhuma, os africanos comuns - súbditos ou escravos de algum soba, escravos dos portugueses, negros forros - não têm direito à fala nas páginas do «Extenso relatório» de Fernão de Sousa nem nos outros documentos consultados. Quase sempre, o papel deles se reduz ao de peças num «jogo» praticado por outros, africanos ou europeus. Com algum esforço, porém, fragmentos do «discurso» deles se revelam através dos comportamentos práticos que os textos lhes atribuem. No âmbito das guerras angolanas, há um comportamento das massas africanas cujo carácter sistemático permite que seja lido como uma «linguagem»: a fuga. Além de recurso prático para escapar ao cativeiro, a fuga, nesse contexto, é a linguagem de quem não tem a possibilidade de fazer ouvir a sua voz no espaço do poder. A mensagem que os africanos comuns emitem através da prática da fuga é a recusa da colonização portuguesa e dos efeitos perversos que ela provoca na sua vida tradicional. Fernão de Sousa, no caso, mostra-se perfeitamente capaz de entender o sentido e as implicações dessa mensagem. Os africanos, comenta com muita razão, fogem para escapar à guerra (Sousa 1985: 259), à escravidão (ibid.: 241), aos portugueses (ibid.: 227) ou, ainda, aos aliados africanos dos lusitanos (ibid.: 328). Amiúde, admite, eles procuram refugiar-se no território controlado pela rainha Njinga-Nzinga (ibid.: 263), a adversária mais consequente aos olhos deles, ou nos sobados ainda independentes (ibid.: 323). Enquanto «linguagem», esses movimentos de fuga traduzem claramente o desejo dos africanos anónimos de manter-se, antes de tudo, fora do alcance dos portugueses. Sendo o comércio dos escravos o objectivo principal de sua presença em Angola, os portugueses não demoraram a perceber a ameaça velada que continha o «discurso da fuga». Assim, Sebastião Dias Tissão, «velho soldado» da conquista, fez saber ao governador «que a Gingua [sic] tinha gente levantada e que pretendia cobrar a terra e que os nossos escravos fugiam pera ela de novo, com que se fazia mais poderosa e nos enfraquecia» (Sousa 1985: 241). Como convinha responder aos fugitivos? A esse respeito, as opiniões dos portugueses divergiam muito. Inquietos perante a erosão constante do seu capital escravo, alguns «moradores» (portugueses) propuseram a Fernão de Sousa que se «prendesse gente da Quiçama [território ainda independente] pera darem por ela os escravos que têm nossos» (ibid.: 323). O governador rejeitou categoricamente essa proposta polo que podia suceder na prisão da dita gente e dos assaltos que forçadamente havia de dar por razão das queixas, de que podia resultar um levantamento e impedirse o comércio dos mantimentos que vêm a esta cidade e a navegação das embarcações que vão pera cima com fazendas, e por outros casos fortuitos que podiam acontecer aos portugueses que vão e vêm pola Coanza e tomarem-se fazendas, em cuja defenção podia haver mortos estando o quilombo* [aqui o quartel-general dos portugueses] tão afastado [ibid.].

Chamando a atenção para as consequências catastróficas que uma razia na Quissama poderia provocar, Fernão de Sousa coloca o fenómeno das fugas no contexto mais amplo do «diálogo» entre portugueses e africanos. Ele parece intuir que os movimentos de fuga devem ser lidos como signos da única linguagem de que dispõem os africanos anónimos no âmbito do escravismo. Enquanto elemento de um discurso prático, a fuga indica uma certa disposição - para não dizer um convite - ao diálogo. O que o governador procura explicar aos donos de escravos é a necessidade de decriptar correctamente esses signos para não correr o risco de provocar o estalido de uma violência incontrolável e perigosa para a economia, as vidas e a própria permanência dos portugueses na área. Rompendo unilateralmente o «diálogo» com os africanos em fuga, os portugueses não lhes deixariam senão a «linguagem» da violência.

Um outro acontecimento referido por Fernão de Sousa ilustra bem as dificuldades que provoca a ruptura do «diálogo». Em 1627, a resposta politicamente inadequada que se deu à fuga maciça dos escravos de Luiz Mendes de Vasconcellos, antigo governador de Angola, provocou uma situação extremamente perigosa na Illamba (Sousa 1985: 286). Perseguidos, os ex-cativos se ajuntaram com um número importante de negros forros e também, ao que parece, com alguns brancos «desencaminhados». Com seus dois mil arcos e graças à dinâmica político-militar que provocaram suas actividades de guerrilha, esse exército pouco regular acabou constituindo uma ameaça séria para o poder português nessa zona. Quando o governador mandou uma tropa para evitar um «motim geral», se ausentaram os tendalas17 [‘tenentes’] e não deram cópia de si nem obedeceram aos recados de Manuel Antunes [o comandante português] e meteram-se no mato com ânimo de se defenderem, receosos das maldades que tinham cometido e de comerem carne humana (ibid.: 286).

A ruptura do «diálogo» faz surgir – um pesadelo - o fantasmo do retorno dos africanos ao mato. Se lembrarmos as conotações do mato – espaço do «mal» - no imaginário dos portugueses, a inquietação do governador não pode surpreender-nos. Caso os africanos voltassem aos seus matos, todo o trabalho de conquista e colonização deveria ser recomeçado a partir do zero. Ao contrário dos africanos recém «descobertos», ademais, os escravos, os forros ou os brancos que se deixem tentar pela liberdade que propicia a floresta dispõem, doravante, não só de um temível repertório de experiências coloniais, como também de armamento moderno.

Conclusão

Sugeriu-se no começo deste capítulo que a guerra que se desenrolou nos séculos XVI-XVII entre os portugueses e os africanos nos matos da Área Congo-Angola podia ser lida como um «diálogo» ou uma «guerra de discursos» entre os conquistadores europeus e os seus adversários locais. Espero ter demonstrado, nas páginas que precedem, o interesse e a fecundidade da leitura proposta. O objectivo principal desta pesquisa era «descobrir», numa documentação redigida sobretudo pelos agressores europeus, as «respostas» que os africanos – senhores, homens comuns, escravos - opuseram à penetração escravista. As histórias bastante enredadas que procurei evocar ao longo deste capítulo mostram que os habitantes do Congo e de Angola não se contentaram em sofrer de maneira passiva o cataclismo político, social e económico desencadeada pela irrupção dos europeus. O seu «discurso», porém, nem sempre remete para uma atitude de resistência radical à conquista europeia ou à escravidão. Muitos – talvez a maioria – dos pequenos ou grandes potentados locais mostraram-se dispostos a renunciar em boa medida à sua soberania para poder aproveitar as vantagens económicas que prometia a presença dos europeus escravistas. Outros, como a rainha Njinga-Nzinga, aceitaram o «diálogo» com os portugueses, mas sem renunciar a defender, quer militarmente que por meio da astúcia política, a sua soberania. Alguns, poucos sem dúvida, empreenderam o caminho de uma resistência mais radical. Quanto às «massas» africanas, carne de canhão e moeda de intercâmbio nas lutas que travavam os poderosos, europeus ou africanos, elas procuravam sobretudo, deslocando-se segundo a evolução da situação político-militar, sobreviver ao cataclismo e esquivar-se à ameaça da sua deportação para a América. Alguns contingentes de fugitivos, porém, conseguiram organizar-se militarmente e ameaçar seriamente o poder português.

Muito mais complexas do que aparece neste resumo esquemático, as respostas africanas à penetração escravista testemunham amiúde a notável lucidez política e a astúcia táctica dos chefes locais. Elas também deixam ver, por outro lado, a ausência de verdadeiros projectos alternativos. Os que ditam as regras do jogo são, com efeito, os portugueses. Mas com que meios os portugueses conseguiram impor a sua hegemonia política? A força comercial dos europeus deslumbrou sem dúvida muitos potentados locais e empurrou-os, em termos político-ideológicos, para os seus «braços». Pensamos, porém, que este motivo é insuficiente para explicar a relativa falta de reacção à apropriação, pelos portugueses, dos pontos estratégicos do território. Acreditamos que um factor decisivo para os portugueses demonstrarem a sua superioridade e alcançarem a hegemonia política foi o uso «racional» da violência contra os autóctones. Ao seguirem as regras tradicionais na conduta da guerra e dos negócios, os africanos se colocaram, de entrada, numa posição de inferioridade estratégica frente a uns intrusos propriamente «maquiavélicos». É provável que nas guerras do Congo e de Angola, a vantagem principal dos europeus não fosse a sua – discutível - superioridade militar, mas o terror que souberam inspirar nos autóctones através de actos de violência imprevisível, injustificada e indiscriminada. O avanço inexorável dos europeus traduz, definitivamente, o triunfo de uma «modernidade» que afasta, em nome da eficácia colonizadora e escravista, qualquer consideração baseada na tradição ou na ética - «própria» ou «alheia».  

 

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  • 1. Note-se que em Cuba, o adjectivo «congo» se refere não só aos escravos de origem kongo, mas também, amiúde, aos representantes de outros grupos bantu de uma área mais ampla que abrange, em termos actuais, o Congo-Brazzaville, a República Democrática do Congo (ex-Zaire) e Angola.
  • 2. « E na língua maxiconga Mani quer dizer Senhor, e a el-rei de Congo lhe chamam Mani Congo ou Mueni Congo (Cad. I: 353). V. glossário.
  • 3. Kmb. sôba, autoridade. «São como duques e grandes senhores» (Simões 1989 [1575]). V. glossário.
  • 4. Até hoje, a melhor introdução à história e ao dia-a-dia desse reino é La vie quotidienne au royaume du Kongo, du XVIe au XVIIIe siècle de Georges Balandier (1965).
  • 5. D. Afonso I (Mbemba a Nzinga), o rei do Kongo que aceitou a vassalagem dos portugueses e a cristianização de seu reino (1509-1540), empregava nas suas cartas ao rei português a fórmula de «Rei de Manicongo e senhor dos ambundos». Os mbundu ocupavam o Ndongo, território que os portugueses chamaram, logo, de «Angola» (ngola* era o título do «rei» desse território). Numa carta que o rei D. Afonso dirigiu ao papa Paulo III no dia 21 de Fevereiro de 1531, ele chega a se autoqualificar de «Rei do Congo Ibungo e Cacongo Engoyo daquém e dalém Zaire, Senhor dos Ambundos e de Angola e da Quissama e Musuaro de Matamba e Mulylu e de Musuco e dos Anzicos e da conquista de Panzo Alumbo, etc.» (Ferronha 1992: 63-64). Note-se que, apesar de se atribuir, em 1531, o controle de um território muito vasto, ele não deixa de estabelecer uma diferença entre sua função de «rei» (ntôtíla*) de um «Grande Kongo» e a de «senhor» (de vassalos) de uma área muito maior.
  • 6. Archivo histórico nacional (AHN), Madrid, Consejos, 20257, exp. 2, 1806, 1-5 r. e 5 v.
  • 7. Outra etimologia possível é o verbo kimbundu kúsanza, limpar, tornar (as terras) aptas para a cultura (Assis Jr. 1947). O ex-mani Bamba, nessa hipótese, dizia que ia «limpar» a terra dos portugueses.
  • 8. Convém não confundir (Aquiloange) Aire e (Angola) Aire. Precisando, perante a resistência da rainha Njinga (Nzinga), de um novo rei para o Ndongo ou «Angola», os portugueses escolheram (Aquiloange) Aire, nas palavras de Fernão de Sousa «o mais chegado parente de rei de Angola» (Heintze 1985: I, 202). Ao morrer Aquiloange Aire «no nosso arraial de bexigas» (ibidem), a eleição dos portugueses caiu finalmente em Angola Aire, «meo irmão dele» (ibidem).
  • 9. Um «embaixador da rainha Ginga» aparece, como personagem, nalgumas das danças dramáticas brasileiras chamadas de « congadas » ou « congados » (Andrade 1982 [1935] : II, 17-48 et pass.). Note-se porém que essas danças populares não dramatizam a guerra entre a rainha Njinga-Nzinga e os portugueses, mas um conflito entre a rainha de Angola e o rei do Congo.
  • 10. Tanto em kimbundu quanto em kikongo, tunga (ou túnga) significa ‘edificar’, ‘construir’. V. glossário
  • 11. Kmb. músete (classe mu-mi), relicário, bolsa, cofre (Assis 1947).
  • 12. Kmb. kilúmbu (classe ki-i), operação que consiste na aposição do ferro candente no corpo do paciente ou suspeito de delito (Assis Júnior 1947.). Segundo Cadornega (III, 320), é sinónimo de bulungo (kmb. mbulungu), o qual «é feito e preparado de uma fruta a que chamam quijualango, que é a planta que a produz dentro da maçã com umas sementes a que chamam hitro […]; estas sementes moídas feitas em farinha, a misturam com a sua bebida, que chamam oallo, que fazem do milho grosso e miudo; este chamado hitro é um veneno pelos efeitos que faz, e se tomar muito arrebentará com ele qualquer pessoa».
  • 13. Termo de origem kongo. «Muene lumbo […] é o que tem conta da Casa Real e guarda as cousas de mais estima dela» (Cad. I: 353). Veja-se também no glossário final..
  • 14. Kmb. muénhu, alma, a existência, a força espiritual
  • 15. Plural de mulónga, termo kimbundu de semântica complexa: verbo, afirmação, vocábulo, razão, causa, facto, pleito, demanda, calúnia, palavra injuriosa (Assis Jr. 1947).
  • 16. «Mocanos são pleitos e contendas que se averiguam de pé a pé sem processo de papéis» (Cad. II: 61). Veja-se também no glossário.
  • 17. «Desde o rei até o mais pequeno soba têm um governador a que chamam tendala, que ouve as partes, e lhes faz justiça» («História da residência…» 1989 [1594]: 187). Veja-se também no glossário.

por Martín Lienhard
A ler | 16 Maio 2011 | angola, Congo, escravatura, História, Rainha Ginga